segunda-feira, dezembro 01, 2014

O Rei do Rio


"Águia na Cabeça" não tinha sequer esfriado das telas quando começou a ser anunciado outro filme sobre o mesmíssimo jogo do bicho: "O Rei do Rio" (1985), com o mesmíssimo Nuno Leal Maia no papel principal, dessa vez vivendo o banqueiro Tucão. Tal obsessão com as práticas zoolúdicas é facilmente explicável no contexto da época: sob o governo Leonel Brizola, a repressão ao jogo foi aliviada e, de repente, aqueles homens com pulseiras de prata, terno branco e capangas de couro estavam na moda. 

Bom para o cinema brasileiro, que descobria no bizarro filão novas possibilidades. Mas cá entre nós, a impunidade era tanta que o diretor Fábio Barreto (então com 28 anos) não se acanhou em declarar ao Jornal do Brasil que o filme era pró-jogo do bicho (!), que gostaria de fazer uma pré-estreia em um cinema lotado de bicheiros (!!) e que gostaria de vê-los "chorando de emoção" (!!!). Ah, este Rio de amor que se perdeu!

Inspirado na peça "O Rei de Ramos", de Dias Gomes, Barreto conduziu a história de forma agradável: Tucão e Nico Sabonete (Nelson Xavier) são amigos de adolescência, trabalhando para o contraventor Cacareco (Milton Gonçalves). No dia 31 de março de 1964, ganham uma bolada em uma aposta. A partir daí, avançam nos pontos do antigo padrinho. Os filhos crescem, os negócios prosperam. Tucão arruma uma amante de boate (Amparo Grisales), que óbvio, vai traí-lo. Até que, já nos anos 80, ocorre um embate fatal entre os dois ex-amigos e sócios.

As cenas do casamento de Tucão foram gravadas em pleno Palácio Guanabara, na Capela Santa Teresinha. A prisão também é autêntica, o antigo complexo Frei Caneca. Mas quem tomaria uma dura na vida real não seria nenhum dos bicheiros, sim a atriz colombiana Amparo Grisales, que ficou meses no Rio para as filmagens e acabou confundida com uma homônima em obscuro incidente policial no seu apartamento da rua Barão da Torre, Ipanema, fevereiro de 1985. Grisales, que era um chuchu, voltou ao país de origem e está bela e ativa até hoje, embaixadora da boa vontade pela ONU e jurada em reality shows

Contando com a ajuda de Manola e Zinho, sócios de uma banca na área do Saara, centro do Rio, os diálogos parecem realmente saídos das profundezas do submundo carioca. E a tão propalada simpatia aos contraventores se trai na extrema violência com que são retratados. Por mais que a atividade do bicho seja relativizada – em contraponto ao tráfico de tóxicos, mostrado como anti-ético – o cheiro de mundo cão permanece. A filha magrela de Tucão (Andréa Beltrão) estuda na Puc, pratica boxe, até que presencie o namorado e o pai em um embate homicida na praia do Abricó (um bom e tranquilo lugar no Rio para fazerem embates homicidas sem serem incomodados. Hoje é um point naturista). Beltrão, aliás, aparece deliciosa como veio ao mundo, na flor dos 21 anos.

Tanto Fábio quanto Bruno, filhos do produtor Luiz Carlos Barreto, sempre guardaram uma qualidade inegável: quando quiseram, souberam fazer cinema popular de primeira. Aqui, Fábio tem a sabedoria de esquecer a Zona Sul e olhar sem medo para o subúrbio. O “Rei do Rio”, diferente do copacabanense “Águia na Cabeça”, é o senhor dos arrabaldes. Fabricou, inclusive, uma pré-estreia no Cine Madureira. Infelizmente começou a ter público abaixo do esperado, muito por conta da novela “Roque Santeiro”, o que adiou seu lançamento nacional e, em última instância, arrasou com o projeto de chegar às grandes massas.

Para quem (ainda?) enxergue nesses títulos somente apelo e vulgarização, vale reafirmar que o Rio de Janeiro e o país de trinta anos atrás estão melhor documentados no audiovisual que na maioria dos livros. 1985 foi um ano especial para o país: em janeiro, o Colégio Eleitoral havia eleito, pelo voto indireto, o civil Tancredo Neves para substituir o general Figueiredo na presidência. Com narração do porta-voz Antônio Britto, direto do Instituto do Coração,  Tancredo agonizou e morreu antes de assumir o cargo. Empossado o vice, José Sarney, uma onda cínica de esperança varria a nação. 

Sarney era um presidente literato, supostamente intelectual, que casava perfeitamente com a paixão nacional por folhetins provincianos, no qual Roque Santeiro se inscreveria como obra-prima.  Com o Nordeste em moda, “O Rei do Rio” parecia carioca e cosmopolita demais. Entender o contexto de sua época acrescenta ao filme uma conotação inusitada de gauche, de resistência metropolitana. Sim, o jogo do bicho era, até certo ponto, chique. E sofisticado. Perto de Asa Branca, Madureira e Ramos reafirmavam o Brasil urbano.

Como última curiosidade, no dia 16 de outubro, Fábio Barreto realizou o seu sonho e exibiu a produção em uma cabine exclusiva para bicheiros. Um porta-voz deles afirmou à imprensa que haviam gostado e que tudo parecia bastante realista. Demoraria até que caíssem em desgraça e parassem de ser tratados a pão de ló. Nuno Leal Maia, por exemplo, ainda teria nova encarnação contraventora na novela Mandala, vivendo o irritante Tony Carrado, apaixonado pela Jocasta de Vera Fisher. Talvez aquele fosse um Brasil mais tolerante. Ou mais perverso.

7 comentários:

Anônimo disse...

Andrea,este filme me soa premonitório:apesar da glamourização dos bicheiros,não se antevê nele a decadência dos bicheiros romanticos?
As guerras que se seguiram entre eles na vida real não parecem realização da profecia do bicheiro interpretado por Milton Gonçalves,na garupa do São Jorge?
Lamento o corte de sequencia(cuja foto apareceu em "Playboy" daqueles dias,em matéria ,onde Andrea Beltrão,então no "Armação Ilimitada" era entrevistada)do sonho incestuoso entre Tucão e a filha( de faro deliciosa).
Uma resenha saborosa sobre filme idem para matar a fome por textos novos do "Estranho Encontro".
Abraços do Fernando Pawwlow

ADEMAR AMANCIO disse...

Quanta reflexão e informação numa só resenha.Adorei.

Renan Esteves disse...

Olá Andreia, assisti ao Rei do Rio e também ao Águia na Cabeça. Os dois são ótimos! Realmente, o Rei do Rio remete a realidade carioca do jogo do bicho nos dias de hoje, enfraquecida pela vaidade da pessoas em querer mais em mais, pela morte e esquecimento deles e pela vista grossa da polícia em acabar com o jogo do bicho prendendo os bicheiros e querendo sempre mais e mais grana. Isso, nos dias de hoje, está se remetendo a perda de luxo do carnaval carioca, em que dizem que está caindo de produção devido à crise financeira. Mas que na verdade é fruto da manipulação do Globo no carnaval do rio, em que eles o abordam como se fosse um campeonato de futebol, e a fonte de sustentação do carnaval: exatamente o jogo do bicho. Infelizmente, está acabando a inocência, o luxo do carnaval e a época em que as coisas davam certo e se tinha orgulho de curtir todas essa coisas. Hoje, infelizmente, ficamos apenas na nostalgia.

Renan Esteves disse...

Só mais uma coisa Andreia: você poderia, nos próximos posts, fazer resenhas sobre os seguintes filmes, se não fosse pedir demais: Cidade Oculta, O Olho Mágico do Amor, Lira do Delírio e Johny Love. Até mais Andreia.

Anônimo disse...

Feliz año, Andrea.
Y gracias por tu labor de difusión del cine brasileño.
Muito obrigado pelo seu trabalho.
Por sinal, há pouco tempo assisti ao filme de W. H. Khouri 'As Amorosas', na minha opinião, uma obra-prima.
Ab.
Crusoe

Andrea Ormond disse...

Fernando, o filme pega bem isso que você falou, inclusive o flerte inicial do jogo do bicho com o tráfico de drogas. Abraços!

Obrigada, Ademar.

Renan, se você tiver interesse de se aprofundar nesse espírito de antanho, os livros do Valério Meinel são uma ótima pedida. Sugestões anotadas para os textos. Um abraço

Hola, Crusoe, cómo le va? Feliz 2015 para você. Agradeço as palavras. Há um ano novo pela frente e nele faço 10 anos de trabalho na crítica. "As Amorosas" é um filme grandíssimo e pegando outros do Khouri, sobretudo dos anos 70, podemos ver a virtuose do mestre. Abraços

ADEMAR AMANCIO disse...

Ela me agradeceu,nem tinha lido - Encontrei uma cópia do filme,vou assistir.