sábado, fevereiro 14, 2009

Gargalhada Final


Dentre os cineastas brasileiros, Xavier de Oliveira tem uma qualidade rara: seus personagens são quase sempre a razão principal da construção fílmica. Dialogando com vicissitudes econômicas e sociais, Xavier criou um cinema voltado para a individualidade exacerbada, para a busca de uma essência singular.

Artista de gênio, manifestou também um espírito contraditório nesta busca: a eterna falta de redenções, de possibilidades, e a angústia da impotência.

Já na estréia com "Marcelo Zona Sul" (1970), melhor trabalho e mais conhecido do grande público, este carioca de Benfica, 32 anos, parecia apontar a câmera para a cidade -- o bairro de Copacabana -- trazendo à tona uma crônica ideológica de classe-média, uma fábula comum sobre ritos de passagem.

Apreciado dessa forma, "Marcelo Zona Sul" foi sucesso de bilheteria, rendeu dinheiro a Xavier e propiciou uma segunda tentativa, "André, a Cara e a Coragem" (1971), com o mesmo ator principal - seu cunhado, Stepan Nercessian - e uma produção esmerada, colorida.

De impacto inferior ao de "Marcelo", "André, a Cara e a Coragem" naufragou em prejuízo, mas deixou claro que o diretor pretendia ser bem mais do que um resenhista de costumes.

Tanto André quanto Marcelo guardam entre si paralelos: ambos dotados de uma verdade interna, feroz e pacífica; e ambos despreparados para uma atitude proativa, mergulhando em um limbo de angústia, ausentes da vida real que exerce o contraditório de querer maltratá-los e cooptá-los.

O que fazem com esta angústia é quase nada, mas Xavier prossegue investigando a atmosfera que os cerca, justificando imperceptíveis atos com mesquinhos fatos, operando uma trama que para o remediado Marcelo era a conformidade, e para o desafortunado André, o abismo da indigência.

Coroando a tese de Marcelo e a antítese de André, em 1976 Xavier realizou uma dolorosa síntese em Carlos (André Valli), o protagonista de "O Vampiro de Copacabana". Filme amargo, de cunho autobiográfico, o "Vampiro" radicaliza as proposições das obras anteriores, e não deixa dúvidas de que Xavier mirava a luta pela essência perdida.

Tudo em Carlos é alheamento renitente, juntar de cacos de uma alma dispersa pela mediocridade diária e procura claudicante do que a sociedade rouba de nós, manipulando o homem como rebanho, peça substituível e descartável.

Aquilo que antes permanecia edulcorado com a poesia da juventude, em "O Vampiro de Copacabana" cobra juros na culpa adulta, consciente: Carlos trai a mulher e o casamento vira um jogo de aparências. Não paga aluguel e está ameaçado de despejo.

Ultrapassar a vertigem imposta por estes três primeiros filmes não deve ter sido tarefa simples. Esgotar-se é o perigo e temor de qualquer artista. E se enquadramos a busca pessoal no nicho da produção dos anos 70, percebemos que existia ainda a variante de ordem prática: o autor precisava guerrear com foices para juntar dinheiro, saldar papagaios e além disso tocar a vida cotidiana fora das telas.

Pois Xavier de Oliveira atingiu “Gargalhada Final” (1978) nesse momento nebuloso, premido por questões várias e rodando na mesma época o “Vampiro". Interrompeu o primeiro e continuou o segundo, garantido pela co-produção do grupo Severiano Ribeiro.

Quando finalmente retomou o projeto, Oliveira tinha diante de si a cobrança de membros da própria equipe, como a do tonitruante, shakesperiano e excepcional ator Fregolente – para quem o diretor-roteirista havia idealizado o filme desde o início. Frego se queixava do abandono imposto à película, se recusava a dublá-la, mas eis que, para o benefício de sua própria posteridade, entrou nos estúdios da Líder e cumpriu o prometido.

“Gargalhada Final” é um ente estranho para quem deseja uma aproximação a Xavier de Oliveira tomando por lamparina o endiabrado Marcelo, o melancólico André ou o Nosferatu redivivo Carlos. Trata-se da construção de um edifício novo, que nutrido pelas miragens da infância do realizador – e de seu irmão, Denoy, que ao lado de Airton Barbosa compõe a trilha sonora –, volta-se ao mistérios do circo.

Dizemos “mistérios” porque cabem neles não apenas a pantomima, mas a pobreza humana – circos à beira de estrada, paisagens maltratadas, sem um pingo de infra-estrutura –, o companheirismo e, sobretudo para este filme, a relação entre pai e filho.

Vejam, portanto, que o circo não é apenas circo, é um amálgama de circunstâncias que evidenciam o amor entre Trombada (Fregolente) e Marreco (Stepan Nercessian) sem sentimentalismos apelativos, sem choros ou velas.

Falam de si, demonstram preocupação um pelo outro, e permanecem ao longo de todos os 77 minutos sem revelarem seus nomes de batismo. São simplesmente “Trombada” e “Marreco”. É parte deles, indissociável, na química que o circo desenha na alma de cada um.

Fotografia de Ruy Santos; montagem de Jaime Justo; produção da Lestepe – de Xavier – e da Palmares; assistência de direção de Armênia Nercessian – esposa do diretor, irmã de Stepan –, também responsável pela cenografia, figurinos, adereços, maquiagem. O espírito mambembe do roteiro se encontra igualmente na sua concretização: equipe reunida, pegaram um ônibus, subiram pelas estradas e descobriam as locações à medida em que apareciam na janela.

Assim, aborda-se em “Gargalhada” a mistura de folclore, modinhas, elementos do campo – aspecto absolutamente dissociado do cenário urbano de Marcelo, André e Carlos. Lavar roupa no rio, roubar laranja no pé, ir à casa de prostituição, ouvir as mentiras brancas do pai, como a de inventar um irmão bastardo de Marreco porque o velho lembra-se com saudade do tempo em que o filho era pequeno.

A comunicabilidade entre Trombada e Marreco passa por estes chistes, por um implicando com o outro, com seus causos. Dentre estes, perceba-se a reinvenção da lenda de São Jorge, colocada de maneira bastante sensível. Outro momento engenhoso, a morte da esposa de Trombaba, é narrada pelos dedos de Fregolente que demonstram a queda da mulher, do trapézio.

Sobrevive a fixação por São Paulo – mote visto em “Marcelo Zona Sul”, como território prometido e do qual o angry young man voltava porque tinha fome. É uma idéia retomada para delimitar as expectativas de cada personagem. Marreco quer a vida de galã na tv; Trombada, ventríloquo cansado, carregando no colo o boneco Aflito, quer mais da mesma rotina. Até que ponto ele terá a espinha quebrada pelo filho, até que ponto serão felizes fugindo da polícia após a tentativa de assassinato de um dos seus ex-patrões?

Não se sabe, se presume. O boneco de madeira estirado na estrada, no delírio de liberdade e de vida nova que se apossa de Trombada, enquanto uiva na moto surrupiada por Marreco. O boneco interage com o espectador enquanto signo. O silêncio, o vento, as partes espatifadas no meio do asfalto, ele é a consciência inanimada de que surge a partir dali para os dois um ponto sem retorno.

“Gargalhada Final” deixa o sabor de um doce, encantado, servindo
para a compreensão desenraizada de Xavier de Oliveira. Apreciar a obra do diretor é assistir a "Gargalhada Final", para depois mergulhar nos três filmes iniciais, que se desdobram em um contexto único.

4 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, acho que esse é um dos seus maiores (e melhores) textos, Andrea!

Esse filme é muito emocionante, e o Xavier de Oliveira um injustiçado.

Beijos :)

Unknown disse...

Sim, um injustiçado. "Marcelo zona sul" é um filme precioso, assim como "André, a cara e a coragem". O Cinema Novo foi perverso com ele.

Adilson Marcelino disse...

Eu tenho um carinho especial pelo Vampiro. É um filme interessante o tempo todo, mas que CRESCE enormemente no desfecho.
E tem as interpretaçãoes maravilhosas de André Valli e Angela Valério - UMA DEUSA.
Abs

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Sergio :) A obra do Xavier não pára no Marcelo, isso é um erro tremendo com ele. Beijos!

Pois é, Setaro, essas barbaridades míopes. Uma revisão crítica nestes casos é urgente.

A cena final ecoa, apesar das dificuldades do filme. Tb gosto do trabalho da Angela, Adilson. Em "O Último Êxtase" do WHK ela está inspirada. Bjs