quarta-feira, novembro 30, 2005

Cordélia, Cordélia


O ponto de partida para “Cordélia, Cordélia” – produção de 1971, adaptada e dirigida pelo grande Rodolfo Nanni – estava na peça de Antonio Bivar intitulada, quilometricamente, “No Começo É Sempre Difícil, Cordélia Brasil, Vamos Tentar Outra Vez”. Um drama amargo, fundado na relação doentia entre uma protagonista infeliz e um marido estúpido e vagabundo.

Secretária de dia, scort de luxo na noite setentista de São Paulo, Cordélia (Lilian Lemmertz) trai Leônidas (Francisco di Franco) com afinco. Vinga-se, no sexo casual, do estado medíocre em que se enfiou. Fritando um ovo, atravessando a rua a caminho do trabalho, ouvindo o rádio, respirando, Cordélia mantém o rito facial dos semi-mortos, dos homens e mulheres que, depressivos, guardam um nada interior no lugar em que, a princípio, pela juventude e beleza, deveria existir um oásis profundo e suculento.

A tensão do filme é monocórdia e agridoce. A rotina de Cordélia é entremeada com suas lembranças da infância – Lilian Lemmertz menina é ninguém menos que Julia Lemmertz, sua filha. Na intercalação entre o passado e o desespero cotidiano, a mulher de 30 anos alterna-se entre a cama, o olhar para o marido jogado na cama, o relógio, a insônia, até despertar pesadamente, tomar um banho e sair de casa. Ao fundo, a música de Rogério Duprat -- que, aliás, recebeu de Nanni um violão Del Vecchio como pagamento pelo trabalho -- e a canção-título de Bruno Padovanno, praticamente em loop. Mas se a série de eventos chega a ser entediante, o filme não faria o menor sentido sem ela.

No meio tempo, haverá espaço para um saidinha à noite – à la Khouri, em “Noite Vazia” – com dois lamentáveis chefes de repartição, que dividem-na com outra menina, sorridente, enquanto trocam passos de uma dança japonesa. A depressiva – talvez a única lúcida por ali – não resiste e pede uma dose cavalar de uísque. Enquanto isso, seu marido é visto novamente entre a cama onde vive esparramado e uma reunião de subversivos, comandada pelo próprio Rodolfo Nanni, em curta aparição.

Diagnosticável de muitos transtornos de personalidade, o pragmatismo sexual de Cordélia beira o comezinho, como ao procurar no dia seguinte o cheque com que foi paga, para levá-lo à economia do lar. Se em outros filmes que abordam a prostituição como meio de escape ao tédio – lembremos “A Bela da Tarde” ou mesmo “A Dama do Lotação” –, a mulher prostituta parece ao menos divertir-se, aqui o ato de se entregar é gelado, inútil. Destituídas de cor e carinho, as noitadas vão sendo colecionadas pela mesmice, até que – de maneira igualmente leviana –, Cordélia envolve-se com Rico (Miguel di Prieto), que conhece quando faz uma visita à loja em que este trabalha como vendedor de carros.

Talvez neste extremo de entrega, ela enxergasse um caminho qualquer de libertação. Compra comidinhas no supermercado, vai insistente ao apartamento de Rico. Há emoção de parte a parte no casal, mas frustada quando fazem a célebre pergunta: “Você me ama, eu te amo, vamos ficar juntos para sempre?” A negativa não é exprimida verbalmente, mas o olhar se distancia, e restará à secretária voltar para o inferno que chamava de casa.

Um casa tola, em que Leônidas brinca de ser genial, tramando planos e indo à pracinha ouvir as pregações de uma fanática religiosa (Célia Helena), ensandecida. Da cama para o sofá, do sofá para a cama, olha-se no espelho, faz a barba, deixa a toalha cair e sorri para a empregada doméstica, contratada por Cordélia para distrair o ambiente e afastá-lo da letargia.

O desempenho de Lemmertz, como de praxe, é de uma beleza intangível, da artista que ouve o chamado das musas, da arte, como poucas no cinema. Hipnotiza, mesmo aparecendo em mais de 90% dos quadros, salvando um filme claustrofóbico em que, com um mínimo esforço, adivinhamos o final.

E quando, comprimido após comprimido, no torpor de se distanciar lentamente, caindo sobre o tapete da sala, Cordélia morre, os olhos fixos no teto, inerte, enxergamos através dela a tortura de um alguém em sofrimento inesgotável, permanente. Não é nada marcante, apenas um obscuro drama de costumes, tão ao gosto daquela parcela do cinema paulista execrada em seu tempo, mas absolutamente deliciosa e interessante nos dias de hoje.

Um comentário:

Anônimo disse...

Tenho 54 e assistí aos filmes - todos - da Lilian, fabulosa, linda, sensual, atriz "superb"! Passeando insone pela madrugada de hoje, o Canal Brasil passava Cordélia, Cordélia, o qual atraiu-m e a atenção instantaneamente. Que filmão.