quinta-feira, setembro 13, 2007

Cara a Cara


Primeiro e um dos melhores filmes de Júlio Bressane, "Cara a Cara" (1967) é típica produção juvenil, no melhor sentido que a palavra pode ter: belo, imperfeito, cheio de idéias pela metade -- e fundador de uma obra que ultrapassa as vicissitudes do Cinema Marginal e chega intacta ao século XXI.

De família militar, apaixonado por cinema desde a infância, Bressane vinha da experiência de dois curtas, um sobre Lima Barreto e outro sobre Maria Bethânia. Aproveitando a equipe -- Eduardo Escorel na montagem, Affonso Beato na fotografia -- realizou em poucos dias esta pequena tragédia sobre Raul (Antero de Oliveira), obscuro burocrata, fascinado à distância pela jovem grã-fina Luciana (Helena Ignez), filha de um político corrupto, Hugo Castro (Paulo Gracindo).

Não fosse pela citação aborrecida a "Terra em Transe" -- de Glauber Rocha -- durante as longas passagens do político, "Cara a Cara" seria uma deliciosa revista sessentista, quem sabe patrocinada pela Rhodia. Observamos Luciana na aula de ballet (ao som dos Swingle Singers -- existirá coisa mais anos 60 neste mundo do que Swingle Singers?), e, posteriormente, no alegre convescote com dois amigos (Maria Lúcia Dahl e João Paulo Ardour), experimentando roupas para uma festa em ritmo de cinema mudo, outra citação fácil ("Jules et Jim", de Truffaut).

Contraste à alegria nouvelle vague de Luciana, o moço-velho Raul fenece, cuida da mãe doente -- lê para ela Machado de Assis, "Relíquias de Casa Velha" -- e escritura longos meandros burocráticos, até que finalmente revolta-se contra a realidade que o oprime. Na simbologia do pobre que espreita a burguesia -- para, no final, promover um maoísta acerto de contas -- vêm à tona os datadíssimos ânimos pré-1968, intoxicados pelo conceito marxista da luta de classes.

Não importa. Também não importa muito a trama paralela, de Hugo Castro, que termina discursando para um plenário vazio, ao som de Maria Bethânia. O que fica dos curtíssimos 75 minutos de "Cara a Cara" são fragmentos de beleza, de experiência melancólica e voyeurística, que oculta mais do que mostra, na bela fotografia branco-e-preto de Affonso Beatto.

Principalmente quando pensamos que a amiga doidivanas de Luciana é Maria Lúcia Dahl, uma legítima representante dos grã-finos cariocas. Herdeira do (então) famosíssimo Rhum Creosotado ("Veja ilustre passageiro/ o belo tipo faceiro/ que o senhor tem a seu lado/ e no entanto, acredite/ quase morreu de bronquite/ salvou-o o Rhum Creosotado") via naqueles anos a fortuna da sua família desaparecer, e trocou um casarão aristocrático por carreira incerta no cinema brasileiro.

Se o Rio perdeu uma dondoca, ganhou uma atriz profícua -- e escritora talentosa, já que Dahl nos últimos anos também passou a escrever crônicas no Jornal do Brasil, e talvez seja hoje a melhor cronista em atividade no país. Sem a mesma sorte, o protagonista Antero de Oliveira, que estreava ali no cinema, morreu muito jovem, em 1977, aos 46 anos.

Já Helena Ignez, ex-mulher de Glauber, recém-chegada da Bahia, estava a um passo de tornar-se ícone maior do udigrudi nacional -- a se rever, por exemplo, sua performance hilariante no esquecido "Os Monstros de Babaloo", de Elyseu Visconti; além de todas as produções da Belair -- companhia fundada por ela, o marido Rogério Sganzerla e Bressane.

Por "Cara a Cara" estes símbolos de uma época circulam serelepes, tão imaturos que perdoam-se todos os desencontros que a transição entre o engajado Cinema Novo e a anarquia do Cinema Marginal, logo ali na esquina, provocavam. Híbrido, quase não lembra o Bressane que vemos até hoje, em "Cleópatra" (2006), ao mesmo tempo que anuncia o artista, eternamente questionador e cronicamente questionado, dono de uma verdade cinematográfica particular e incômoda.

6 comentários:

Anônimo disse...

Andrea,
Tudo bem?
Eu adoro esse filme. Já faz muito tempo que assisti, mas não me esqueço do personagem do Antero seguindo o da Helena, e, vez ou outra, se escondendo atrás das àrvores.
A Helena está linda e ótima atriz como sempre. Agora que beleza que era o Antero de Oliveira, né? Um grande ator e tão pouco lembrado.
Aliás, o cinema nacional está cheio de atores assim, como o Rodolfo Arena, o Paulão, e tantos outros.
Em tempo: eu sou dos que gostam, e muito, do cinema do Cláudio Assis.
Um grande abraço,
Adilson Marcelino
Adilson

Anônimo disse...

Meu Bressane preferido. Chegou aos 40 anos com uma vitalidade de 20 :)
Beijos!

Andrea Ormond disse...

Oi, Adilson, tudo bom? Tb gosto muito do Antero no "Em Família", aliás, um dos casos em que todo o elenco está excepcional. O "Amarelo Manga" divide mesmo, só o tempo para nos dar a dimensão certa, colocar as coisas em perspectiva :) Conferi as atualizações no Mulheres, em especial o texto do Alfredo Sternheim sobre a Sandra Graffi, um depoimento refinado feito por quem entende, e muito, de cinema. Um abraço!

Sergio, está aí um filme do Bressane sempre muito bem cotado. Pau a pau com O Anjo Nasceu :) Beijos!

MARCELO MENDEZ disse...

Olá... Andréa, vistei seu blog e adorei. Falas de um cinema que me interesso que ficou no ostracismo uma pá de tempos. Vou deixar aqui meu e-mail e trocaremos então umas idéias sobre esse teu trabalho. Aproveito e te apresento o meu. O meu e-mail é marcelxx@hotmail.com

Carlos C. G. (aliascrusoe@gmail.com) disse...

Olá. Eu estava procurando informações sobre esse filme, e eu acho que eu apenas convencer. O filme brasileiro da década de 1960 é uma área de difícil acesso, mas deu algumas obras memoráveis, mais, na minha opinião, 'Trance de em Terra', um dos melhores filmes da história do cinema mundial. Eu tento documentar-me tudo o que eu puder sobre sua cinematografia (ainda na semana passada eu descobri 'pai e uma Moça', de Andrade).Com mais tempo, vou tentar dar uma olhada em seu blog. Atenciosamente.
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Hola.
Estaba buscando información sobre esta película, y creo que me acabas de convencer. El cine brasileño de los años sesenta es un territorio de difícil acceso, pero que dio algunas obras memorables, la que más, en mi opinión, 'Terra em trance', uno de los mejores filmes de la historia del cine mundial. Trato de documentarme todo lo que puedo sobre vuestra cinematografía (todavía la semana pasada descubrí 'Padre e a Moça', de Andrade).
Con más tiempo, trataré de echarle un vistazo a tu blog.
Saludos

ADEMAR AMANCIO disse...

Acabei de encontrar uma cópia - Andrea como sempre dando aula de como escrever sobre cinema.