Nem sempre é fácil investigar as camadas que existem entre alter ego, sujeito ficcional e sujeito de fato. Mais ainda em um roteiro cinematográfico criado no set de filmagem pelo tal “sujeito de fato”, com uma máquina de escrever sobre o colo, dentro de um trailer, aparentemente movido a rompantes.
“O que filmamos hoje, Khouri?” “Bem... daqui a pouco está pronto.”
“Paixão e Sombras” (1977), 15o. filme de Walter Hugo Khouri, aumenta a lista de enigmas em torno do fatídico Marcelo.
Sobre ele costumam surgir as perguntas óbvias: Marcelo foi o alter ego de WHK?; Marcelo foi o sujeito ficcional criado apenas para dar a sensação de haver um alter ego?; Marcelo foi um nada?
Tudo depende, é claro, do que podemos denominar como “alter ego”. Alter ego não é necessariamente uma reprodução melhorada de um autor, para que ele possa fruir literariamente o que não consegue na vida real. Também não é fruto do escapismo, não tem origem na “timidez” do pobre roterista. Alter ego é uma possibilidade de voz narrativa, utilizada pelo criador quando e como ele preferir.
As “causas verdadeiras” dos roteiros de WHK e os motivos que levaram o argumentista/roteirista até elas não podem mais ser extraídos do entrevistado – falecido em 2003. Por isso, tomemos o Marcelo de “Paixão e Sombras” como o personagem que dá vazão a uma possível profissão de fé/ inquietação khouriana.
Apesar de inferior a “Palácio dos Anjos” (1970) ou “Eros” (1981), “Paixão e Sombras” satisfaz como acerto de contas, numa estrutura mezzo teatral – citação explícita a Eugene O´Neill, inclusive: “Amor, paixão, êxtase... em que distante vida estiveram eles vivos?” –, mezzo confessional, como se Khouri se auto-explicasse ao público e ao ambiente artístico da época.
Na epígrafe, dedicatória “à [sic] Joseph Von Sternberg”, o papa cuja papisa, Marlene Dietrich, é vista a seu lado em fotos no trailer do diretor Marcelo (Fernando Amaral). Nas paredes do trailer, inúmeras outras divas, como Barbara Laage ou Lilian Lemmertz – que em “Paixão e Sombras” é também personagem: a atriz (Lena) que não chega nunca e por quem Marcelo aguarda impacientemente.
A trama narra as peripécias do Marcelo-diretor, dentro dos estúdios – da Vera Cruz, àquela altura salvos por Khouri e seu irmão, William, que heroicamente impediram a destruição do local –, destilando problemas que vão desde a fase de financiamento e pré-produção às inquietações da equipe técnica. No meio tempo, Marcelo fala sobre o passado, sobre o futuro e sobre as parcerias onipresentes.
Dentre elas, Ana (Monique Lafond), a assistente de direção, e Buda (Carlos Bucka), o marceneiro que se descobre desenhista de esboços sado-masôs – feitos pelo próprio Bucka –, em que invariavelmente domina e fustiga as fêmeas ao seu redor.
Sem grandes contornos intelectuais ou tentativas de enredar Marcelo num exercício sádico à moda da Ana de “Eros”, a Ana-assistente é aqui a interlocutora preferencial, a quem ele explica o que pretende com o filme que tenta concluir e consigo mesmo.
Perceba-se, aliás, que ela serve de ponte para a temática khouriana fundamental: de busca da ascese e da sublimação pessoal através do cinema. “Não quero compreensão, quero recepção, se houver”, diz à moça.
Buda, por sua vez, é o empregado bonachão, descontraído, que reclama dos filmes de Marcelo serem muito parados, sem movimento, sem mulher carnuda, cheios de mulheres magrinhas, empertigadas.
Após conferir os esboços de Buda, o diretor entusiama-se e convida-o para incorporar o sádico naïf nas telas. Buda recusa, afirma que prefere o borbulhão feérico de gruas, madeiras e cantonilhas. Além do mais, a patroa não gostaria de vê-lo com ares de artista em filme de bacana, e assim dá adeus a uma possível vida no star system.
Em certos momentos o expressionismo khouriano se materializa. Não apenas na atmosfera lúgubre, na derrocada, no ceticismo de um Marcelo cada vez mais trágico, solitário e abandonado.
Expressionismo enquanto fusão com o total, com o absoluto, também aparece no jeito abrupto de Buda – “ele é uma força da natureza” –, no seu olhar viril que alcança a mesma plenitude de uma gravura de Rossetti mostrada a Lena. Aparece nos fungos que se colam nas telhas dos estúdios, para onde Marcelo e a câmera vez por outra miram fixamente.
E se a interação com a natureza foi total em “O Último Êxtase” – rodado quase todo ele em externas –, “Paixão e Sombras” optou pela interiorização, pelo negrume, por ambientes fechados. Apenas uma réstia da ação se dá fora dos estúdios a que Marcelo se apega fusionalmente, lembrando cenas do passado e se abismando com a possibilidade de seu útero/estúdio virar supermercado em futuro próximo.
A função dos cenários, por sinal – cuja decoração está a cargo de Hugo Ronchi, possivelmente o próprio Walter Hugo Ronchi Khouri –, remete "As Feras”. No longa de 2001, a locação dentro de um teatro era inseparável do clima de estar-fazendo artístico, acompanhando de fora e de dentro a construção de uma peça tetral.
Por outro lado, como a trilha sonora é significante peculiar das obras de WHK, reparem que em “Paixão em Sombras” além de Rogério Duprat, Coltrane e Schubert, vemos a assinatura de “Marcelo Rondi”: novamente o personagem arquetípico, desta vez assinando os créditos do filme em que aparece. Nas câmeras, o irrequieto “Rupert Khouri”, de sempre.
Lena recusa o convite de participar no filme, a crise galopa cada vez mais pelos estúdios, e de frustração em frustração, Marcelo teve apenas poucos momentos em que vislumbrou um mundo ideal.
No primeiro deles, duas cocadinhas pedindo emprego – atenção para Aldine Müller, quase bebê –, reavivam a faceta lobo narcísico do quarentão; no segundo, uma bela jornalista surge, apesar de fazer perguntas óbvias: o por quê de tamanha excentricidade, de filmes incompreensíveis, longes do que seja “socialmente válido”.
Marcelo poderia ter lhe respondido com o monólogo de minutos antes, quando pensava sobre o que seria feito de seus filmes, sobre a falibilidade da criação e os limites da atuação humana. “O que vai acontecer com todos os filmes? Os meus, inclusive. [...] Basta uma radiação, um calor maior, uma alteração violenta de temperatura, e pronto. Foi-se tudo. Como tanta coisa já se foi. [...] E talvez nem seja preciso esperar por fenômenos físicos e metereológicos. Basta uma revolução cultural qualquer e pronto. Tocam fogo, queimam tudo. E acabou.”
Acaba e se renova, poderíamos acrescentar. Porque qualquer rastilho de pólvora, por mais que seja escondido e disseminado o fato de seu desaparecimento, continua a ser um rastilho de pólvora. Neste sentido, cabe aos espectadores a prova dos nove em relação a determinados filmes: repetir os chavões antigos ou examiná-los com maior cuidado? Uma sobrevida desta envergadura o cético Marcelo de “Paixão e Sombras” não poderia prever.
“O que filmamos hoje, Khouri?” “Bem... daqui a pouco está pronto.”
“Paixão e Sombras” (1977), 15o. filme de Walter Hugo Khouri, aumenta a lista de enigmas em torno do fatídico Marcelo.
Sobre ele costumam surgir as perguntas óbvias: Marcelo foi o alter ego de WHK?; Marcelo foi o sujeito ficcional criado apenas para dar a sensação de haver um alter ego?; Marcelo foi um nada?
Tudo depende, é claro, do que podemos denominar como “alter ego”. Alter ego não é necessariamente uma reprodução melhorada de um autor, para que ele possa fruir literariamente o que não consegue na vida real. Também não é fruto do escapismo, não tem origem na “timidez” do pobre roterista. Alter ego é uma possibilidade de voz narrativa, utilizada pelo criador quando e como ele preferir.
As “causas verdadeiras” dos roteiros de WHK e os motivos que levaram o argumentista/roteirista até elas não podem mais ser extraídos do entrevistado – falecido em 2003. Por isso, tomemos o Marcelo de “Paixão e Sombras” como o personagem que dá vazão a uma possível profissão de fé/ inquietação khouriana.
Apesar de inferior a “Palácio dos Anjos” (1970) ou “Eros” (1981), “Paixão e Sombras” satisfaz como acerto de contas, numa estrutura mezzo teatral – citação explícita a Eugene O´Neill, inclusive: “Amor, paixão, êxtase... em que distante vida estiveram eles vivos?” –, mezzo confessional, como se Khouri se auto-explicasse ao público e ao ambiente artístico da época.
Na epígrafe, dedicatória “à [sic] Joseph Von Sternberg”, o papa cuja papisa, Marlene Dietrich, é vista a seu lado em fotos no trailer do diretor Marcelo (Fernando Amaral). Nas paredes do trailer, inúmeras outras divas, como Barbara Laage ou Lilian Lemmertz – que em “Paixão e Sombras” é também personagem: a atriz (Lena) que não chega nunca e por quem Marcelo aguarda impacientemente.
A trama narra as peripécias do Marcelo-diretor, dentro dos estúdios – da Vera Cruz, àquela altura salvos por Khouri e seu irmão, William, que heroicamente impediram a destruição do local –, destilando problemas que vão desde a fase de financiamento e pré-produção às inquietações da equipe técnica. No meio tempo, Marcelo fala sobre o passado, sobre o futuro e sobre as parcerias onipresentes.
Dentre elas, Ana (Monique Lafond), a assistente de direção, e Buda (Carlos Bucka), o marceneiro que se descobre desenhista de esboços sado-masôs – feitos pelo próprio Bucka –, em que invariavelmente domina e fustiga as fêmeas ao seu redor.
Sem grandes contornos intelectuais ou tentativas de enredar Marcelo num exercício sádico à moda da Ana de “Eros”, a Ana-assistente é aqui a interlocutora preferencial, a quem ele explica o que pretende com o filme que tenta concluir e consigo mesmo.
Perceba-se, aliás, que ela serve de ponte para a temática khouriana fundamental: de busca da ascese e da sublimação pessoal através do cinema. “Não quero compreensão, quero recepção, se houver”, diz à moça.
Buda, por sua vez, é o empregado bonachão, descontraído, que reclama dos filmes de Marcelo serem muito parados, sem movimento, sem mulher carnuda, cheios de mulheres magrinhas, empertigadas.
Após conferir os esboços de Buda, o diretor entusiama-se e convida-o para incorporar o sádico naïf nas telas. Buda recusa, afirma que prefere o borbulhão feérico de gruas, madeiras e cantonilhas. Além do mais, a patroa não gostaria de vê-lo com ares de artista em filme de bacana, e assim dá adeus a uma possível vida no star system.
Em certos momentos o expressionismo khouriano se materializa. Não apenas na atmosfera lúgubre, na derrocada, no ceticismo de um Marcelo cada vez mais trágico, solitário e abandonado.
Expressionismo enquanto fusão com o total, com o absoluto, também aparece no jeito abrupto de Buda – “ele é uma força da natureza” –, no seu olhar viril que alcança a mesma plenitude de uma gravura de Rossetti mostrada a Lena. Aparece nos fungos que se colam nas telhas dos estúdios, para onde Marcelo e a câmera vez por outra miram fixamente.
E se a interação com a natureza foi total em “O Último Êxtase” – rodado quase todo ele em externas –, “Paixão e Sombras” optou pela interiorização, pelo negrume, por ambientes fechados. Apenas uma réstia da ação se dá fora dos estúdios a que Marcelo se apega fusionalmente, lembrando cenas do passado e se abismando com a possibilidade de seu útero/estúdio virar supermercado em futuro próximo.
A função dos cenários, por sinal – cuja decoração está a cargo de Hugo Ronchi, possivelmente o próprio Walter Hugo Ronchi Khouri –, remete "As Feras”. No longa de 2001, a locação dentro de um teatro era inseparável do clima de estar-fazendo artístico, acompanhando de fora e de dentro a construção de uma peça tetral.
Por outro lado, como a trilha sonora é significante peculiar das obras de WHK, reparem que em “Paixão em Sombras” além de Rogério Duprat, Coltrane e Schubert, vemos a assinatura de “Marcelo Rondi”: novamente o personagem arquetípico, desta vez assinando os créditos do filme em que aparece. Nas câmeras, o irrequieto “Rupert Khouri”, de sempre.
Lena recusa o convite de participar no filme, a crise galopa cada vez mais pelos estúdios, e de frustração em frustração, Marcelo teve apenas poucos momentos em que vislumbrou um mundo ideal.
No primeiro deles, duas cocadinhas pedindo emprego – atenção para Aldine Müller, quase bebê –, reavivam a faceta lobo narcísico do quarentão; no segundo, uma bela jornalista surge, apesar de fazer perguntas óbvias: o por quê de tamanha excentricidade, de filmes incompreensíveis, longes do que seja “socialmente válido”.
Marcelo poderia ter lhe respondido com o monólogo de minutos antes, quando pensava sobre o que seria feito de seus filmes, sobre a falibilidade da criação e os limites da atuação humana. “O que vai acontecer com todos os filmes? Os meus, inclusive. [...] Basta uma radiação, um calor maior, uma alteração violenta de temperatura, e pronto. Foi-se tudo. Como tanta coisa já se foi. [...] E talvez nem seja preciso esperar por fenômenos físicos e metereológicos. Basta uma revolução cultural qualquer e pronto. Tocam fogo, queimam tudo. E acabou.”
Acaba e se renova, poderíamos acrescentar. Porque qualquer rastilho de pólvora, por mais que seja escondido e disseminado o fato de seu desaparecimento, continua a ser um rastilho de pólvora. Neste sentido, cabe aos espectadores a prova dos nove em relação a determinados filmes: repetir os chavões antigos ou examiná-los com maior cuidado? Uma sobrevida desta envergadura o cético Marcelo de “Paixão e Sombras” não poderia prever.
4 comentários:
Com a sua presença novamente em blog, Andrea Ormond, o cinema brasileiro volta a ter a sua memória recapitulada pelas suas lúcidas análises. Órfãos ficaram seus admiradores com a sua ausência de meses e meses. E "Paixões e sombras", de Khoury, é um dos filmes mais belos do cineasta de 'Noite vazia'
Setaro, obrigada. Voltar ao "Estranho Encontro" representou uma necessidade pessoal, tb aguardada por mim, há muito tempo. Um forte abraço.
Quando estive com o grande Miro Reis, amigão e confidente do Khouri ele me falou que ficou puto quando viu Paixão e Sombras. Isso porque o personagem dele era o Bucka: o técnico que vive reclamando e reclamando. Aí o Khouri falou: "Mas Miro, convenhamos você reclama bastante". E o Mirão foi em cima: "Eu sei Khouri, porra. Mas eu não sou tão gordo quando o Bucka pô!". Genial!
Matheus Trunk
www.revistazingu.blogspot.com
Andrea, fui amigo do André Setaro no Facebook. Infelizmente ele ficou doente e se recusava a seguir dietas. Quis viver a vida ao máximo. Saudades de nossas conversas. Inclusive, passei uma lista a ele de filmes que considerava grandiosos. pouco comentados. Ele gostou bastante.
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