domingo, dezembro 11, 2011

Super Xuxa Contra Baixo Astral


Quando o SBT atendia pela alcunha de TVS e exibia comerciais milagrosos, como o das Piscinas Tone e da Bola Porco do Mato, Xuxa Meneghel era uma tosca promessa, no meio de tantas. Reza a lenda que até Sílvio Santos, no alvorecer dos 80, a jogou para escanteio, preferindo contratar Sérgio Mallandro.

Vida que segue, Xuxa e Mallandro depois formariam dupla em “Lua de Cristal” (1990). Mas aí já haviam passado para uma nova década, gloriosa, que apenas consolidou o corso de crianças, velhos e criaturas alucinadas, fãs de Meneghel. Capa da revista Status, namorada de Pelé, coadjuvante escolhida por Walter Hugo Khouri em “Amor Estranho Amor” (1982) – o “proibidão” do cinema brasileiro –, a suposta adoradora de Lúcifer experimentou em dez anos uma intensa virada profissional.

Desabrochou, floresceu. Encontrou Marlene Mattos, empresária maranhense que tosou-lhe algumas liberdades, ensinou-lhe outras, torneou o corpo exuberante e formatou-a como uma boneca, objeto de consumo. Poucos poderiam compreender como a jovem estrela de “Fuscão Preto” (1983) – ao lado do cantor Almir Rogério – se consagraria em arquétipo da moralidade ecologicamente correta dos anos 80 e 90. Mulher (suburbana, como ela reitera), de beleza européia e incrivelmente infantilizada para a idade.

A chegada das vassalas Paquitas (que renderam histórias hilárias de maus-tratos às crianças) juntou uma outra camada ao mito. Afinal, se não podíamos ser Xuxa, que tal pelo menos Paquita? O fato é que Maria da Graça Meneghel desbancou a Turma do Balão Mágico, colocou um speed mercadológico na água do universo infanto-juvenil e cruzou fronteiras. Encantou Adolpho Bloch na Tv Manchete, migrou para a Globo, envolveu-se com Ayrton Senna e, num tour pela América Latina, exerceu o colorido para Carlos Menem e Marcelo Tinelli (o galã da Telefe argentina).

No "Xou da Xuxa" a apresentadora saía toda manhã de uma nave espacial rosa e ia ter com dois bichos, animadores de auditório: Dengue e Praga. Curiosamente, quando decide recomeçar sua trajetória no cinema brasileiro, abandona os colegas de palco. Vejam que o caso é grave, praticamente uma profissão de fé. Como se, imitando Zé Bonitinho, dissesse “câmeras, close”, foco em mim. Apenas em mim.

E é sozinha que ela aparece em “Super Xuxa Contra Baixo Astral” (1988). Centro e estrela de tudo, reiniciando do zero, aproveitando o banho de loja que sofreu ao chegar à televisão. Vestida, ma non troppo. As belas pernocas saltavam longilíneas do shortinho branco. Pelas conversas dos tempos de escola (e que me divertem até hoje, com amigos ora barbados), posso colocar a mão sobre o Guia 1989 de Vídeos e jurar: nem todos os meninos a viam como uma santa intocável. Digamos que ela foi um “rito de passagem”, para muitos.

Nesta nova fase cinematográfica, o enredo de “Super Xuxa Contra Baixo Astral” não poderia ser melhor. Um sururu ambientalista, com a colaboração de Antonio Calmon (completando metamorfose que o abduziu do cínico policial brasileiro para o pop deslavado de “Menino do Rio” e "Armação Ilimitada”). Traz ainda um aspecto “musical”, que deve bastante a Lael Rodrigues, o homem que, qual Busby Berkeley, dirigiu “Bete Balanço” (1984) entre ruidosas coreografias, cheias de mullets e ombreiras. Paulo Massadas e Michael Sullivan ficam por trás das canções que reforçam a “tese” da história.

Em resumo, o seguinte: a moça é pureza, a moça é amor. Xuxa conta uma fábula que se enrola toda. Jabás explícitos de grandes marcas – os conglomerados macro econômicos da geopolítica ocidental –, o capitalismo que ela própria critica (“Tudo é dinheiro! Muito lucro!”) enquanto espeta uma bonequinha com a mesma roupa e cara da apresentadora, algo para lá de esquizofrênico. O discurso desafia a prática, que desalmada.

Caminhando pelo bosque onírico, a guria encarna uma seguidora de Freud. A tradução perfeita de “A Interpretação dos Sonhos”, livro polêmico que chocou gerações: “O que eu não sei, lá vou saber./ Vem sonho, vem/ vem me responder”. Pena que não encontre o "Homem do Ratos" ou "Anna O." dando sopa, para aterrorizá-la numa interminável psicanálise.

A esta altura, o cãozinho Xuxo apareceu em versão pelúcia, com voz estranha e afeminada. É a gota d'água para os estudiosos do tema, que geralmente o associam ao ocultismo, colocando-o como peça-chave na trajetória de riqueza e sucesso de Meneghel. Sem adentrar nessas altíssimas especulações filosóficas, a Xuxa do filme combate a burocracia, o alvo número 1 de babyboomers como Calmon, que nasceram inconformistas e se acalmaram com o tempo. Também luta pela natureza com os brinquedos “Lango Langos” (sabe-se lá por quê) e associa pichações à violência (o grafitismo ainda não era moda).

O vilão Baixo Astral (Guilherme Karan) habita o mais escuro esgoto. Com lágrimas nos olhos, a emoção toma conta e lembramos que por lá andava o jacaré “Alligator”, a mais querida mutação nuclear que já se teve notícia e que celebrizou os domingos, após o "Show de Calouros" do canal de Sílvio Santos. Apesar de não encontrar o amigo selvagem, Baixo Astral faz de tudo para achincalhar a alegria da loira que (é claro) atende pelo “alto astral” da humanidade. Rafa (Jonas Torres) até que ajuda, meio sem querer, pois é rebelde, do tipo que desobedece os pais. Muito baixo astral.

Karan faria sucesso na "Tv Pirata", Jonas Torres era do clube da "Armação Ilimitada". Xuxa usou esses ganchos e ainda embarcou em outros, como "Os Trapalhões" (vide, por exemplo, “A Princesa Xuxa e Os Trapalhões”, 1989). Nos idos de 2001, envolvida com a filha Sasha e dando um slow motion nos pulos pelo palco, Xuxa assistiria à nave rosa arder em chamas. A destruição do papel crepom, do celofane, as paredes caindo no estúdio, a fumaça quase matando as crianças que estavam por perto. Choque de realidade. Não deixa de ser a concretização de um pesadelo dos meninos e meninas, a fantasia da mãe boa que se evanesce num sopro e os coloca, súbito, no inferno.

4 comentários:

Luiz com Z disse...

Andrea, confesso aqui publicamente que foi o único filme que lembro de ter visto na Roxy antes da di(tri?)visão da sala. Fui acompanhando minha irmã, uma amiga de infância e a mãe dela, nos meus tenros 13 anos, em plena época de identificação com o pós-Bacana que era o Jonas Torres.

E se eu ainda tinha alguma dúvida do que era vergonha alheia, aprendi nesse dia, enquanto meu ex-herói de pré-adolescência, agora com todos os dentes permanentes, naquela tela imensa, todo sujo de esgoto cenográfico ou coisa desse subgênero (o trauma apagou parte da lembrança), mete o dedo numa pasta Colgate, enfia na boca e sai escovando os dentes SEM ESCOVA.

Apaguei quase todas as outras cenas da mente, me concentrando naquela pinta redentora que a Maria da Graça carregava - espero que ainda - entre o ombro e o sovaco, o que aos 13 anos funcionava muito bem. Saí de lá sem contar nada pra ninguém e pensando qual seria a função daquela pasmaceira pra vida das pessoas. Descobri hoje que a função era envelhecer e permitir a existência dessa resenha, a mais divertida que já li. "proibidão do cinema brasileiro" "vassalas", "a moça é pureza, a moça é amor", talvez a maior concentração de expressões antológicas num único texto seu. Presentão de natal. Beijos,
Luiz.

Luiz com Z disse...

P.S.: O Guia da Nova Cultural de 89 foi o primeiro que eu tive e foi ali que comecei a descobrir as pornochanchadas. Pelas sinopses. Decorei muito nome antes de ver o rosto. Cheguei perto de ter pesadelos com "A Deliciosa Gaiola de Ouro".

Andrea Ormond disse...

Luiz, acho que o de 89 também foi o meu primeiro. As cotações e sinopses dos guias (êpa rei!) eram altamente reacionárias e preconceituosas. Mas ajudaram a formar uma geração de cinéfilos.

Lucio Vargas disse...

Parabéns, você escreve muito bem e eu gosto de ler o que você escreve, mas esse filme é muito ruim.