quarta-feira, março 15, 2006

Tchau, Amor


Rumo ao fundo do poço, se o leitor acreditar ter alguma tendência suicida, não recomendo que assista a “Tchau, Amor” (1982), de Jean Garrett. Com o incrível patrocínio da Funerária Osasco, a história mundo-cão acompanha o fracassado Paulo Reys (Antônio Fagundes), radialista de sucesso nos anos 70, mas que no princípio dos 80, decadente e atormentado pela vontade de morrer, apresenta um programa de rádio mixuruca e mantém um casamento de aparências, dos quais gostaria de se livrar juntando coragem suficiente para um salto no vão do Viaduto do Chá.

O argumento de Garrett e Inácio Araújo não deixa grandes margens para dúvida: a vida não é cor de rosa. O infeliz Paulo costuma ir para a beira do viaduto de madrugada, observar os carros que passam no abismo. Tem mulher, filhos, mora em uma casa classe-média baixa. A esposa Iara (Selma Egrei), já desistiu também há muito da vida, cuidando do filhinho pequeno, ligada no piloto automático e ignorando que Paulo passa os dias e as noites fora de casa, sabe-se lá fazendo o quê.

Em uma destas incursões noturnas, debruçado de forma absurda no viaduto, Paulo conhece Rejane (Angelina Muniz), milionária, filha de empresário, que não trabalha, não estuda, mora em um apartamento nos Jardins e namora um playboy (Dênis Derkian), de quem finge gostar apenas para matar o tempo vago.

Não é preciso dizer que Paulo e Rejane se apaixonam, e que a trama desenvolve todas as outras questões envolvendo o protagonista (ímpeto suicida, ruína profissional), sob a dinâmica do relacionamento. E façamos justiça, o cinema popular brasileiro é perfeito em mostrar dinâmicas mirabolantes entre casais. Não a problemática francesa ou a tragicomédia italiana, mas a sordidez dos pares mesquinhos e comuns, onde quase se fareja o suor de um dia de trabalho e o desejo liberto na cama redonda de um motel, sábado à noite depois dos beijos furtivos no Opala 76.

Aqui, a mimada riquinha dá as cartas e o desesperado Paulo aceita tudo o que sua mestra ordena. “Seu velho, seu coroa...” – a mocinha de vinte e poucos anos humilha o homem de quarenta e ele (literalmente) beija seus pés, calçados em uma sandália de tiras de plástico. No ímpeto de se misturar ao amante, Rejane inferniza o pai até que ele lhe dê um programa na rádio, onde o casal passa a se denominar Doutor Jekyll e Sister Hyde.

O programa faz sucesso. “Sempre tem cheiro de desgraça no ar”, uma senhora, faxineira do restaurante que Rejane freqüenta, diagnostica o porquê de ser ouvinte assídua. Tocando hits esquisitíssimos e transando com o microfone aberto, a dupla de dementes vira a sensação da noite de São Paulo. Mas paralelo a isso, o casamento de Paulo acaba em divórcio e a tragédia que antes só cheirava, começa a se concretizar.

A narrativa tem quase a estrutura das fotonovelas da Revista Amiga, não fosse a direção lúgubre de Garrett, que lembra os melhores momentos do “Comando da Madrugada” – programa de tv dos anos 80, apresentado pelo repórter Goulart de Andrade. Se a nudez abundante e perfeita de Angelina Muniz colore um pouco o caso, no geral é estranho ver Fagundes, saído de “Amizade Colorida” na Globo, se digladiando com um personagem tão horrível e sinistro.

Diferente dos cineastas populares cariocas, que quase nunca mostravam o lado ruim da cidade, os paulistanos da Boca do Lixo pareciam ter orgulho de dizer que pouco havia de glamour ou bonito na metrópole que filmavam. A São Paulo dos filmes da Boca era quase sempre um simulacro de Blade Runner – ou como Blade Runner deveria ser, se não mostrasse também uma simples estilização higienizada.

É nessa São Paulo infernal, suja e caótica que Paulo Reys, louco para morrer, perseguido por um processo de divórcio e com seu caso nos finalmentes, apresenta a edição comemorativa de um ano do bizarro programa. O que não sabe é que Rejane armou com o pai para que ele fosse demitido. Quando recebe o aviso, rouba uma perua de transmissão móvel e sai pelas ruas narrando o próprio fim. Rejane escuta no rádio a narrativa desesperada e sabe para onde ele se encaminha.

Na beira do viaduto do Chá, Paulo joga uma lata de spray lá embaixo, testando a violência do impacto. A cena é inteligente, pois no exato momento em que a lata se espatifa, o carro da maligna Rejane vem passando para tentar salvá-lo. Se fosse um verdadeiro dramalhão de fotonovela, a mocinha teria salvo o amante e acabariam entre beijos. Mas como é cinema da Boca, ele ganha coragem e pula glorioso para o fim tantas vezes sonhado.

Jean Garrett, na verdade José Antônio Nunes Gomes da Silva, dirigiu quase vinte filmes, entre eles o clássico “Mulher, Mulher” com Helena Ramos e o surrealista “O Beijo da Mulher Piranha”. Profissional de fotografia bastante requisitado, na direção dos seus longas era preocupado com a qualidade do que filmava, o que pode ser comprovado nos filmes que fez na Dacar, produtora de David Cardoso, sendo “Amadas e Violentadas” (não se assustem com os títulos, eram puro sensacionalismo ingênuo) o mais bem feito deles.

“Tchau, Amor” já é de uma fase posterior, onde um Garrett mais displicente abria mão dessa qualidade pela quantidade. Seu último filme é de 1986, quando a decadência dos esquemas tradicionais de produção o obrigaram, como tantos, a tentar a vida de outra forma. Morreu de ataque cardíaco em 1996, deprimido, sem conseguir voltar a filmar. E quem perdeu fomos nós, pois seus filmes de cunho popularesco um dia serão revalorizados e o distanciamento crítico os torna mais curiosos do que indigestos.

10 comentários:

Anônimo disse...

Querida Andréa, acho q. na carreira de Jean Garret, vale destacar 02 das parcerias com Carlos Reichenbach na fotografia: "Excitação" e "A Força Dos Sentidos", o próprio Carlão gosta de destacar "O Fotografo" e "A Mulher que Inventou o Amor", filmes dos quais não sou admirador.

Sobre "Tchau, Amor", acompanhei as filmagens por 03 ou 04 dias como estagiário, sinto q. o filme era muito importante para Jean, suponho q. ele o tinha como um divisor de águas em sua carreira, a preocupação em ter um roteiro do Inácio era sinal disso. Do pouco q. vi, deu prá perceber um esmero na mise'en'scène e um cuidado de produção atípicos no 'modus operandis' da bôca, lembro q. a negociação com Fagundes foi difícil, pois ele já era um medalhão, mas não foram medidos esforços, e o lançamento foi muito cuidado, mas o filme não aconteceu como se imaginava e talvez até, tenha sido parte do começo do desencanto de Jean com o cinema, enfim...

Andrea Ormond disse...

Edú, tinha muita vontade de ver "O Fotógrafo", é um clássico da Boca :) Será que foi lançado em video? Acho "Tchau, Amor" um filme interessante, até pela presença inusitada do Fagundes, como vc disse, o cara já era um medalhão. Esses filmes do Jean Garrett são um must do cinema popular, deviam sair todos em uma caixa de dvd :)

Anônimo disse...

Requisitado, Andréa? Gente, a fotografia de "Excitação" é a coisa mais sem-graça desse mundo! Será que não é dele o enquadramento? Agora tô curiosíssimo pra ver "Tchau, Amor", porque a sinopse é maravilhosa, talvez tenha influenciado a fotografia e dado um resultado melhor. :) Um beijo!

Andrea Ormond disse...

Bem requisitado, Luiz. O Garrett começou como fotógrafo (dentro e fora da Boca), depois é que foi passar à direção. Aliás, contra-regra e ator com o Mojica. Imagina só, outra grande entrevista que se perdeu, são detalhes que a princípio a gente não desconfiaria :) Beijo!

Anônimo disse...

Olá! Por favor, onde você conseguiu a cópia de "Tchau, Amor"?
Obrigado
Gustavo

Daniel P disse...

Enfim, consegui cópia e até agora me pareceu um dos melhores do Garret. Gostei até da omissão em se revelar ao público e ao Fagundes o que disse a cartomante à Selma Egrei. Além disso só a ideia de tratar de um radialista já é interessante. E as pessoas dançando só com a música que ouviam em seus walkmans gigantes??? A frase final com spray lembra um pouco A mulher do lado, do Truffaut, que não sei se é posterior a este. Valeu a recomendação Andrea

LUIZ CARLOS LÈE disse...

meu nome e luiz carlos lee sou um dos co- produtores desse filmes fiz a trilha sonora tb trabalhei como ator e produtor pra mim o meu sempre amigo Jean Garret sera sempre um dos melhores diretores do cinema nacional eu fiz esse filme com o Jean desde seu inicio aprendi muito com ele e tivemos a honra de ter Claudio Porttioli como diretor de fotografia outro grande cineasta tenho esse video em dvd
meu e-mail é luizcarloslee2006@hotmail.com

Michael Carvalho Silva disse...

Delicioso clássico nacional do saudoso Jean Garrett cuja ex-esposa e ex-musa inspiradora Aldine Muller se tornou a parceira oficial da belíssima Maitê Proença em cultuadas novelas da Rede Globo De Televisão como "Sassaricando" e "O Salvador Da Pátria" no final dos anos oitenta do século vinte. Angelina Muniz está maravilhosa como sempre e até Antônio Fagundas está bem nesse que também foi um dos clássicos da extinta e saudosa sessão "Cinema Brasil" da CNT.

ADEMAR AMANCIO disse...

Encontrei o filme,pena que a imagem está tão ruim.

carla disse...

aonde encontro esse filme??? por favor