No nos une el amor sino el espanto; a frase, de um poema de Jorge Luís Borges, poderia muito bem ter sido ruminada por Gustavo Brás Martins (Eduardo Tornaghi), protagonista de "O Príncipe" (2002), o melhor filme do diretor Ugo Giorgetti. Marco introdutório para uma nostalgia doce, auto-contemplativa, "O Príncipe" se esforça para fundar -- ou ampliar -- na alma paulistana uma dor que se costuma associar mais aos cariocas ouvindo "Carta ao Tom 74", ou aos argentinos, como Borges, que viveram de ser a expectativa secreta de voltar a ser o que um dia foram.
Gustavo retorna ao Brasil como um estrangeiro -- como, no fundo, uma parcela significativa dos brasileiros gostaria de passear em São Paulo ou no Rio. Parte do encantamento inicial do filme é mantido por este aspecto lúdico, já que o homem, quarentão e seguro de si, não crê que possa estar na rua de sua infância e juventude. A Mourato Coelho -- "esta é a Mourato Coelho?" -- rua de nome bandeirante na Vila Madalena, virou um lugar que certamente ele preferiria observar através de vidros blindados e com insulfilm. Ao desembarcar, um homem armado faz as honras da casa, e Gustavo, o "francês", mais de duas décadas em Paris, é abraçado pela mãe como o filho pródigo.
O que vem a seguir é uma teia de considerações ora cínicas, ora melancólicas, sobre aquilo em que a cidade (o país) se transformou na sua ausência. O sobrinho, Mário (Ricardo Blat), foi parar em uma clínica psiquiátrica por inventar fatos históricos. A passagem de suas aulas, assistidas por Gustavo em um vhs, ilumina um dos pontos altos do filme. Mário tem uma filha com Hilda (Márcia Bernardes), fotógrafa de um jornal "pinga-sangue", que sente pelo marido supostamente louco aquele tolerante desprezo do matrimônio arrependido. Em repetição, quanto mais interagir com os seus, mais Gustavo descobrirá que ninguém é feliz.
Também não são felizes os ex-colegas de faculdade, que ele rememora em uma foto na garagem. Parte em busca deles, como o Alain Leroy de "Le Feu Follet", e em cada um há uma miséria nova. Marino Esteves (Ewerton de Castro), vende com sorriso Colgate uma São Paulo mercadora de cultura, provincianamente globalizada, que o humanista Gustavo dispensa com curiosidade e horror. Já Renato (Otávio Augusto), continua tão impregnado de humanismo que tornou-se um dublê de filósofo clown e pária social. É com ele que Gustavo faz seu passeio pelas praças e ruas degradadas do Centro, pela "feérica" Galeria Metrópole, onde gritam por Luiz Carlos Paraná e Paulo Vanzollini -- na esperança de que o passado os ouça, e se possível, resgate-os.
Como em toda trajetória romanesca de vida, Gustavo deixou na cidade um amor, a linda Maria Cristina (Bruna Lombardi), poetisa fracassada e diretora de patrocínio em uma multinacional. Entre as idas e vindas pela cidade, é o fantasma de Maria Cristina que Gustavo persegue. Quando finalmente estão frente a frente, um apagão no escritório transforma o encontro em sombras.
A conversa é tensa, os helicópteros fazem barulho no alto do edifício e os dois concluem que não há muito o que dizer. Gustavo não é mais o rapaz que uma vez escreveu um ensaio sobre Maquiavel, e Maria Cristina -- o paradoxo ambulante, da artista sem talento que distribui benesses financeiras para artistas de verdade -- sabe que o que fizeram naquelas décadas foi só inutilidade. As promessas e as vocações não se cumpriram -- e se a cidade e o país pioraram, o preço a pagar está na consciência de cada um.
"O Príncipe" é um filme a ser revisto de tempos em tempos, não apenas por este esforço de provocação, de questionamento -- mas também pelas sutileza e sobriedade, raras de se encontrar nos filmes brasileiros do século XXI. É uma história cujo entendimento soa universal, ainda que seu ponto de vista radicalmente paulistano e de classe-média, crie certa curiosidade sobre o "pré-apocalipse" da maior cidade brasileira.
Apocalipse que os últimos cinco anos aumentaram exponencialmente: um fictício Gustavo de 2007, com certeza já acharia sua visita em 2002 um tanto nostálgica. Nostalgias sobrepostas, a trilha-sonora de Mauro Giorgetti alimenta o clima; e se a São Paulo -- Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte -- de trinta anos atrás foi só felicidade, porque chegamos ao caos que chegamos?
O dvd, recheado de extras e depoimentos, esclarece um pouco este mistério e alimenta outros, que talvez motivassem novas investigações fílmicas na mesma linha. Sempre bem-vindo, o cinema paulistano, de temática cosmopolita, sofisticada e madura, representa um sopro de inteligência na cultura brasileira, em qualquer tempo. E o cinema de Ugo Giorgetti, uma continuação desta tradição virtuosa.
Gustavo retorna ao Brasil como um estrangeiro -- como, no fundo, uma parcela significativa dos brasileiros gostaria de passear em São Paulo ou no Rio. Parte do encantamento inicial do filme é mantido por este aspecto lúdico, já que o homem, quarentão e seguro de si, não crê que possa estar na rua de sua infância e juventude. A Mourato Coelho -- "esta é a Mourato Coelho?" -- rua de nome bandeirante na Vila Madalena, virou um lugar que certamente ele preferiria observar através de vidros blindados e com insulfilm. Ao desembarcar, um homem armado faz as honras da casa, e Gustavo, o "francês", mais de duas décadas em Paris, é abraçado pela mãe como o filho pródigo.
O que vem a seguir é uma teia de considerações ora cínicas, ora melancólicas, sobre aquilo em que a cidade (o país) se transformou na sua ausência. O sobrinho, Mário (Ricardo Blat), foi parar em uma clínica psiquiátrica por inventar fatos históricos. A passagem de suas aulas, assistidas por Gustavo em um vhs, ilumina um dos pontos altos do filme. Mário tem uma filha com Hilda (Márcia Bernardes), fotógrafa de um jornal "pinga-sangue", que sente pelo marido supostamente louco aquele tolerante desprezo do matrimônio arrependido. Em repetição, quanto mais interagir com os seus, mais Gustavo descobrirá que ninguém é feliz.
Também não são felizes os ex-colegas de faculdade, que ele rememora em uma foto na garagem. Parte em busca deles, como o Alain Leroy de "Le Feu Follet", e em cada um há uma miséria nova. Marino Esteves (Ewerton de Castro), vende com sorriso Colgate uma São Paulo mercadora de cultura, provincianamente globalizada, que o humanista Gustavo dispensa com curiosidade e horror. Já Renato (Otávio Augusto), continua tão impregnado de humanismo que tornou-se um dublê de filósofo clown e pária social. É com ele que Gustavo faz seu passeio pelas praças e ruas degradadas do Centro, pela "feérica" Galeria Metrópole, onde gritam por Luiz Carlos Paraná e Paulo Vanzollini -- na esperança de que o passado os ouça, e se possível, resgate-os.
Como em toda trajetória romanesca de vida, Gustavo deixou na cidade um amor, a linda Maria Cristina (Bruna Lombardi), poetisa fracassada e diretora de patrocínio em uma multinacional. Entre as idas e vindas pela cidade, é o fantasma de Maria Cristina que Gustavo persegue. Quando finalmente estão frente a frente, um apagão no escritório transforma o encontro em sombras.
A conversa é tensa, os helicópteros fazem barulho no alto do edifício e os dois concluem que não há muito o que dizer. Gustavo não é mais o rapaz que uma vez escreveu um ensaio sobre Maquiavel, e Maria Cristina -- o paradoxo ambulante, da artista sem talento que distribui benesses financeiras para artistas de verdade -- sabe que o que fizeram naquelas décadas foi só inutilidade. As promessas e as vocações não se cumpriram -- e se a cidade e o país pioraram, o preço a pagar está na consciência de cada um.
"O Príncipe" é um filme a ser revisto de tempos em tempos, não apenas por este esforço de provocação, de questionamento -- mas também pelas sutileza e sobriedade, raras de se encontrar nos filmes brasileiros do século XXI. É uma história cujo entendimento soa universal, ainda que seu ponto de vista radicalmente paulistano e de classe-média, crie certa curiosidade sobre o "pré-apocalipse" da maior cidade brasileira.
Apocalipse que os últimos cinco anos aumentaram exponencialmente: um fictício Gustavo de 2007, com certeza já acharia sua visita em 2002 um tanto nostálgica. Nostalgias sobrepostas, a trilha-sonora de Mauro Giorgetti alimenta o clima; e se a São Paulo -- Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte -- de trinta anos atrás foi só felicidade, porque chegamos ao caos que chegamos?
O dvd, recheado de extras e depoimentos, esclarece um pouco este mistério e alimenta outros, que talvez motivassem novas investigações fílmicas na mesma linha. Sempre bem-vindo, o cinema paulistano, de temática cosmopolita, sofisticada e madura, representa um sopro de inteligência na cultura brasileira, em qualquer tempo. E o cinema de Ugo Giorgetti, uma continuação desta tradição virtuosa.
4 comentários:
Andréa, excelente retorno!
Adoro "O Príncipe". A sequência do Gustavo e Renato passeando por uma Praça Dom José Gaspar de pesadelo é antológica.
Não seria má idéia o Giorgetti promover uma volta do Gustavo, passados 5 anos de sua última visita!
Beijos!
Belo retorno, Andréa!! A saudade de vc e dos seus escritos só não foi maior pq sempre que pude (tb retornei ao mundo virtual na semana passada...) saí devorando o que ainda não tinha lido em seu blog. Só peróla... :)
Bjos e aquele abraço
Obrigada, Sergio. Uma continuação do Príncipe seria interessantíssima, vamso ver o que o Giorgetti vai fazer depois do Boleiros 2 :)
Oi, Osvaldo, obrigada! os dois meses em que o Estranho ficou fora do ar aumentaram a vontade de escrever. Pode deixar que agora atualizarei com freqüência :) Beijos
Ándrea, desculpe, mas esse filme é inferior ao Boleiros 1. E ainda fico com Sábado em segundo lugar na preferência...
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