quarta-feira, setembro 21, 2005

Muito Prazer


“Muito Prazer”, de 1979, é o melhor filme de um gênio chamado David Neves. Advogado que nunca exerceu a profissão, apaixonou-se pela arte cinematográfica e foi diretor, produtor, assistente e roteirista. O amor de David Neves pelo cinema era tão grande que, conta a lenda, mesmo depois de se tornar diretor consagrado, continuava a aceitar cargos de assistência em filmes de amigos e colaboradores, apenas para fazer aquilo que gostava.

Foi também o mais carioca dos diretores nacionais, dedicando a maior parte da sua filmografia a traçar um painel, rico e generoso, dos hábitos e da gente da Zona Sul da cidade.

“Muito Prazer”, primeira parte de uma trilogia de filmes que inclui ainda “Fulaninha” e “Jardim de Alah”, mostra ao mundo uma espécie de paraíso antes da chegada da serpente. A cidade cordial, relaxada, irreverente, abriga o escritório de arquitetura de três sócios.

Ivan (Otávio Augusto), Aquino (Cecil Thirré) e Chico (Antônio Pedro) são homens de temperamentos diferentes, constantemente observados e postos em cheque por um trio de pivetes de rua, vendedores de amendoim.

A relação destes extremos sociais em princípio não é tensa, não amedronta -- pelo contrário, é amistosa e calorosa. Os arquitetos protegem os meninos e perdoam sua existência errática no bairro de classe média alta. Os meninos, por sua vez, olham os arquitetos apenas como as crianças olham os adultos: num misto de curiosidade, deboche e admiração.

Em outro plano da história temos a relação dos arquitetos com suas respectivas esposas. Ivan (Otávio Augusto) é alcoólatra; Aquino (Thiré) reprimido e metódico; Chico escorregadio e solteirão, o que desperta suspeitas sobre sua sexualidade. As esposas de Ivan e Aquino literalmente vagam em torno do trio, até que Nádia (Ítala Nandi), esposa de Ivan, dá o bote em Aquino e passa a ter um caso com o sócio do marido.

Nenhum outro cineasta brasileiro parece captar melhor o espírito de um microcosmo social, com seus valores e coloquialismos. Estamos de fato no Rio no final da década de 70, do princípio ao fim da trama. Todas as gírias se fazem presentes; todos os hábitos, conversas e símbolos. Neves, um homem sedutor e cheio de amigos, nos faz cúmplices de sua aventura, qualquer que seja ela.

“Muito Prazer” rende cenas poéticas e hilárias: Ivan, bêbado, vaga pelos botequins e encontra Nelson Cavaquinho. O pivete tenta vender amendoins para um executivo de Mercedes (Carlos Kroeber) e o executivo, assim que o farol abre, rouba os amendoins do pivete.

A vida dos três sócios vai degradando à medida que o alcoolismo de Ivan se agrava e que a mulher o trai. Por outro lado, os pivetes abandonam sua postura pacífica, de vendedores ambulantes, e assaltam Nádia. A confiança da relação cordial é quebrada. Arquitetos, esposas e pivetes não se entendem mais e apesar da promessa de civilidade, está esgotada a capacidade de diálogo, em qualquer combinação.

“Muito Prazer” foi perfeito em metaforizar o ocaso do Rio e o término das convivências pacíficas no espaço urbano. Ivan sabe que sua mulher o trai com Aquino; a amizade e a sociedade nunca mais serão as mesmas. Os homens agora sabem que não podem confiar nos meninos; eles assaltam e trabalham para um bandido mais velho.

Está encerrada a era da inocência para todos. A cidade-paraíso onde harmonizavam, em pouco tempo virou um grande inferno paranóico. “Muito Prazer” não é só uma obra-prima, é também o documento final de um estilo de vida.

8 comentários:

Anônimo disse...

ola...estava passando pelo blog do Carlos e vi seu link...dei uma olhada no seu blog e devo dizer...ótimo, naum pare, vc tem o dom do cinéfilo, e é ótimo ter a presença feminina nesse nosso mundo...passarei sempre por aki...qt ao filme em questão, naum posso falar muito, pois naum conheço, mas seus comentários sobre ele sao ótimos, entaum é mais um pra mim ver futuramente...de qualquer forma, a gente se fala...e como o titulo do filme..."muito prazer"...

Anônimo disse...

muito bom esse filme,vi faz um tempão,por acaso um dos pivetes não é o Irwing São Paulo?

Anônimo disse...

Parece que você Andréa, fez uma das maiores justiças da história da pesquisa do cinema brasileiro. Sou fã de carteirinha, de carterinha mesmo do grande DAVID NEVES, homem especial no nosso cinema. Sempre quando o Cinema Novo é lembrado, o nome de David passa despercebido. Acho ele, o Saraceni, o Joaquim e mesmo o Glauber os melhores do movimento. Não vi Muito Prazer, mas vi Flamengo Paixão, Luz del Fuego (não gosto desse) e mesmo Lúcia Mc Cartney, que é uma obra-prima. Por isso mesmo Andréa, você faz um pouco de justiça, já que muitos professores e pesquisadores sempre esquecem o grande cronista que foi David. Aliás não só ele mas milhares de grandes cineastas brasileiros. Aparece qualquer hora no meu blog: www.cineterceiromundo.zip.net, porque eu não irei parar de vim aqui.
Parabéns pela empretada !

Anônimo disse...

David era um gênio, ele era o cineasta novista que mais foi influenciado pelo poeta, pelo gênio, pelo tudo: HUMBERTO MAURO, maior cineasta desse país, um Deus, um Apolo do cinema brasileiro. Existe uma foto maravilhosa de David, ao lado de Mauro, do lado ainda dos grandes Alex Vainy e Paulo Emílio Salles Gomes, com dona Baby, companheira de Mauro. Acho essa foto a melhor do cinema brasileiro em todos os tempos e a que melhor ilustra a grandeza dos personagens brasileiros.

Andrea Ormond disse...

oi Rafa, pode deixar, não vou parar não, obrigada pelos elogios :)
dr. lorax, ótima lembrança, é o Irwing São Paulo sim, ele é o Leléu, o "chefe" dos pivetes :)
matheus, adorei seu comentário, obrigada pelos elogios! verdade, o David Neves anda esquecido e precisa de uma revisão urgente...Não sou muito fã do Cinema Novo, mas acho q no rastro do movimento se produziu muita coisa boa e se deu oportunidade a muita gente talentosa, uma dessas pessoas foi o David. "Lúcia McCartney" é realmente genial, mas "Muito Prazer" é melhor, tente assistí-lo :) Conheço a foto do David com o Humberto Mauro sim, vou ver se em um próximo post a coloco aqui :)

Victor Rodrigues disse...

Filme muito bonito! A abertura desse filme em especial não me sai mais nunca da cabeça. Simples, generosa e tocante, me trouxe uma sensação de visitar o sonho, hoje perdido, de um belo país que estava por vir, a partir da inocência e esperança do menino. A melodia do Nelson do Cavaco ainda está intacta na mente, e olha que eu tenho uma memória fraca viu! :P

Engraçado que conheci seu blog agora por conta deste post. Estava vendo a programação de uma mostra de cinema (www.cinedireitoshumanos.org.br) e tinha um curta lá chamado Pivete, o que me fez reviver na memória esse filme. Daí foi só botar no google cavaquinho e pivetes pra lembrar do nome, quem sabe até ver um pedaço no youtube, o que não rolou, só deu você de primeira :D

Seus textos são ótimos, Andrea! Tenho muita coisa a ler por aqui ;)

PS: Vi que você fala muitos de filmes 70~80s. Não te interessa muito o que os diretores brasileiros fazem ultimamente, ou é apenas uma abordagem de seleção para comentar mesmo? Sei que tem muita bobagem sendo produzida, mas estou muito empolgado com vários trabalhos recentes...

Abração!

Raphael Campos disse...

Alguém tem o link de download do filme? não consigo encontrar em lugar algum.

ADEMAR AMANCIO disse...

Encontrei o filme disponível no youtube,vou ver se vejo.