domingo, outubro 25, 2009

A Morte Transparente


Esquecido nos dias de hoje,‭ ‬o argentino‭ – ‬naturalizado carioca e copacabanense‭ – ‬Carlos Hugo Christensen foi um dos cineastas brasileiros mais importantes dos anos‭ ‬60‭ ‬e‭ ‬70.‭ ‬É de se espantar que Christensen,‭ ‬nascido na província de Santiago del Estero,‭ ‬tenha chegado ao país já na idade madura,‭ ‬depois de passar pela produção e direção nos‭ ‬sets de vários países sul-americanos.‭ ‬Em‭ "‬Cinema de Lágrimas‭" (‬1995‭)‬,‭ ‬de Nelson Pereira dos Santos,‭ ‬é um filme de Christensen‭ – "‬Armiño Negro‭" (‬1946‭) – ‬que emoldura o triângulo entre o diretor Rodrigo,‭ ‬o assistente Yves e o cinema.

Inimigo do governo peronista,‭ ‬fascinado pelo Brasil,‭ ‬o diretor viveu períodos de idas e vindas,‭ ‬exílios e voltas triunfantes.‭ ‬Radicou-se inicialmente em São Paulo,‭ ‬voltando para a Argentina aos‭ ‬42‭ ‬anos,‭ ‬até estabelecer-se em definitivo no Rio,‭ ‬onde realiza uma trilogia dedicada à cidade‭ – "‬Meus Amores do Rio‭" (‬1957‭)‬,‭ "‬Esse Rio que Eu Amo‭" (‬1962‭) ‬e‭ "‬Crônica da Cidade Amada‭" (‬1965‭)‬.‭

Ao mesmo tempo,‭ ‬aproxima-se de Minas Gerais‭ – ‬e da obra do escritor Aníbal Machado.‭ "‬Viagem Aos Seios de Duília‭" (‬1964‭) ‬e‭ "‬O Menino e o Vento‭" (‬1967‭) ‬são frutos desse diálogo com o vizinho Aníbal‭ (‬morador ilustre de Ipanema‭)‬,‭ ‬assim como o episódio‭ "‬A Morte da Porta-Estandarte‭"‬,‭ ‬de‭ "‬Esse Rio Que Eu Amo‭"‬.

Quando chega na virada dos anos‭ ‬60‭ ‬para os‭ ‬70,‭ ‬Christensen nada devia,‭ ‬portanto,‭ ‬a qualquer brasileiro nascido ou criado nas cercanias do seu apartamento no Posto‭ ‬5.‭ Digo isso pois,‭ ‬durante toda a vida,‭ ‬julgavam os estúpidos de sempre que Carlos Hugo Christensen possuía uma vidraça‭ – ‬sua suposta argentinidade‭ – ‬e era lá onde de tempos em tempos lhe jogavam pedras de ignorância.‭

A década de‭ ‬70‭ ‬serviria para libertá-lo dos ufanismos e do olhar reverente e mergulhá-lo no cinismo e na crítica social.‭ ‬Neste contexto apresentam-se dois marcos,‭ ‬quase opostos:‭ "‬Anjos e Demônios‭" (‬1970‭) ‬e‭ "‬A Morte Transparente‭" (‬1978‭)‬.‭

Entre um e outro,‭ ‬percebemos muito além de uma releitura da juventude corrompida do Rio:‭ ‬o esmero artesanal que sobrava em‭ "‬Anjos e Demônios‭" ‬ganha ares‭ ‬trash em‭ "‬A Morte Transparente‭"‬.‭ ‬A sugestão de suspense clássico que permeava‭ "‬Anjos e Demônios‭" – ‬encabeçado pelos desaparecidos Eva Christian e Luis Fernando Ianelli‭ – ‬nunca encontra atenuantes na interpretação canhestra do anti-herói Wagner Montes de‭ "‬A Morte Transparente‭"‬.

Mas,‭ ‬percebam,‭ ‬não era Christensen que piorava ou se brutalizava.‭ ‬Era a cidade,‭ ‬o país.‭ ‬A elite carioca,‭ ‬que migrava da Zona Sul para a Barra da Tijuca,‭ ‬deixando para trás seu refinamento humanista e comprando a tese do consumismo fútil e desenfreado.‭ ‬O Rio‭ – ‬a velha Montparnasse dos trópicos‭ – ‬que começava a sucumbir e se transmutar em uma Miami decadente e histérica.‭ ‬Na urbe que virava lixo,‭ ‬Carlos Hugo Christensen declarou,‭ ‬ao lançar o filme em entrevista no jornal‭ "‬A Tribuna da Imprensa‭" ‬de‭ ‬29/08/78,‭ ‬que a atmosfera de outrora morrera.‭ ‬E que aquele deveria ser um documento sobre essas modificações.‭

Beto‭ (‬Wagner Montes‭)‬,‭ ‬figura ambígua,‭ ‬líder de uma turminha classe-média,‭ ‬michê de homossexuais nas horas vagas,‭ ‬envolve-se com uma pantera:‭ ‬Marlene‭ (‬Bibi Vogel‭)‬,‭ ‬moradora de uma mansão na Barra,‭ ‬sustentada pelo amante velho e rico a quem devota infidelidade burocrática.‭ ‬Não demora,‭ ‬estão todos aprisionados em‭ ‬thriller frouxo,‭ ‬em que a paisagem,‭ ‬os maneirismos e a dinâmica do casal Montes-Vogel parecem mais interessantes do que o roteiro.

Sorte nossa,‭ ‬Wagner Montes fez sucesso na TVS de Silvio Santos,‭ ‬lançou discos populares e esqueceu a carreira no cinema.‭ ‬Apresentador de grande carisma,‭ ‬casado com uma das mulheres mais lindas do Brasil‭ – ‬a ex-Miss Osasco,‭ ‬Sônia Lima‭ – ‬este fluminense de Duque de Caxias implode Christensen o tempo todo com sua sabotadora canastrice.‭ ‬Não bastasse ele,‭ ‬o próprio diretor desautoriza o filme nos pequenos detalhes,‭ ‬inserindo,‭ ‬por exemplo,‭ ‬uma mesma cena de veículos toda vez que há transcorrer de tempo.

Curioso é que,‭ ‬apesar do esforço vulgar,‭ "‬A Morte Transparente‭" ‬dissocia-se dos fabulosos policiais de sua época‭ – "‬Eu Matei Lúcio Flávio‭" ‬e‭ "‬República dos Assassinos‭" ‬tiveram as filmagens no mesmo período.‭ ‬Faltou-lhe certa integridade amoral,‭ ‬certo desamparo ético,‭ ‬o que prova ser Christensen um nobre,‭ ‬um príncipe entre plebeus,‭ ‬mesmo quando de propósito sentava o pé na jaca e abraçava a estética marafona.‭

Profético,‭ ‬o diretor viveu até‭ ‬1999‭ ‬para ver seu desencanto de‭ "‬A Morte Transparente‭" ‬metaforizado.‭ ‬O Rio padece,‭ ‬tem Wagner Montes todo dia na tv a vigiar o trabalho da polícia‭ (‬o querem prefeito ou governador‭) ‬e,‭ ‬mesmo mulheres como a desclassificada Marlene,‭ ‬hoje nos soam de um chiquê extravagante.‭

Em meio ao caos,‭ ‬escreveu livros e adaptou para o cinema seus conterrâneos Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo.‭ ‬O filme baseado no conto da escritora,‭ "‬A Casa de Açúcar‭" (‬1996‭)‬,‭ ‬permanece inédito e causou enormes transtornos financeiros ao diretor no final da vida.‭ ‬Pouco depois do lançamento de uma coletânea de poesia‭ – "‬Poemas Para os Amigos‭" ‬--‭ ‬faleceu no Rio‭ – ‬a cidade amada,‭ ‬tão amada como qualquer outro lugar do continente.‭ ‬Pois foi,‭ ‬antes de tudo,‭ ‬um homem cosmopolita que,‭ ‬pelo destino,‭ ‬veio adotar terras brasileiras.‭

9 comentários:

Luis Santos disse...

Andrea, assisto hoje em dia muito menos cinema que gostaria, e praticamente zero de filmes nacionais. Mas um filme nacional que me marcou muito foi um de Christensen: "A Intrusa". Que tal um post sobre ele?

Abraços,
Luis Santos

Andrea Ormond disse...

Bela pedida, Luis. Vou procurar "A Intrusa" nos meus alfarrábios e revê-lo para um post. Abraços

Sergio Andrade disse...

Excelentes os textos de retorno, Andréa :)

Também gostaria de ler sobre "A Intrusa". Aliás, você poderia aproveitar e fazer logo um dossiê sobre o Christensen rsss

Beijos!

Andrea Ormond disse...

Olha a pressão, Sergio, um dossiê! Mas não é que a idéia é boa? rsrs Beijos!

Francisco Marques disse...

Olá, Andrea, vim parar neste seu blog por indicação de um amigo e fiquei surpreso com a precisão de suas informações, o que não é muito comum hoje em dia. Fui assistente de Christensen durante 39 anos (desde 1961 até sua morte, em 1999) e participei de todos os filmes realizados nesse período. Achei muito lúcido de sua parte perceber quanto preconceito houve com relação a ele e ao seu trabalho, justamente por um grupo que reivindicava, na época, política social avançada e pensamento libertário. Mas isso são águas passadas, embora Christensen tenha curtido na sua última fase da vida um bom tempo de amargura, mesmo que sem ressentimentos. Foi um prazer conhecer o blog para aplaudir suas palavras gentis, e as de seus leitores também, sobre esse profissional tão injustiçado (neste país, pelo menos).
Abraços.
Francisco Marques

Andrea Ormond disse...

Francisco, obrigada pelo comentário, quanto mais pelo conteúdo elogioso. A obra de Christensen é daqueles elos perdidos na filmografia nacional. Como ocorre na maioria das vezes, é mal compreendida e vítima dos preconceitos mais chinfrins. Aos poucos vencemos as batalhas e uma nova compreensão sobre este e outros tabus vai se disseminando. Abraços

Anônimo disse...

Bom Dia Andrea, eu assistir esse filme hoje pela madrugada e gostei muito, queria ver se você poderia me ajudar quanto ao nome de uma musica que é internacional cantada quando ele esta na discoteca, e é tocada novamente no final do filme, so sei o começo que é Help me pleser ( ou coisa parecida rsss ) muito legal seu blog, parabens. vou ficar aguardando, meu imail é rubenstbk25@gmail.com

Luís Fernando disse...

Assisti outro dia a Morte Transparente e o que consigo sentir é uma total sinergia da película com uma certa face daquela época. Nesse sentido o personagem que Wagner Montes interpretou conseguiu plasmar a canastrice típica de um protagonista que, naquele momento, era comum numa fotonovela, num anúncio de cigarros ou numa novela brasileira. Bibi Vogel não ficou atrás. Tenho descoberto a filmografia do Cristensen recentemente. Há um naturalismo nos seus filmes, uma simplicidade. Quase um filme dentro de uma realidade falsa de um documentário. Num de seus filmes Suzana Freyre, sua esposa, interpreta uma argentina apaixonada por nosso país que ganha uma semana no Brasil após tirar o segundo lugar num progama de TV. Filme delicioso também porque revela uma argentina apaixonada pelas coisas nossas. A presença de Rodolfo Mayer e de seu filho em seus filmes, o fato de filmar os contos de Anibal Machado, de revelar seu vizinho Luiz Ianelli, entre outras coisas, me fez lamentar não ter conhecido esse olhar "estrangeiro" anteriormente.

ADEMAR AMANCIO disse...

Achei que tivesse alguma citação a Osmar de mattos,o homem mais lindo que já vi.Não é do seu tempo,e teve carreira curtíssima.