terça-feira, março 20, 2007

André, a Cara e a Coragem


Falar de Xavier de Oliveira nos traz de volta ao assunto do quanto a memória cinematográfica brasileira vem sendo jogada no ralo, pois o diretor é caso típico de artista com substância suficiente para conquistar -- em qualquer tempo -- uma multidão de fãs e seguidores, influenciados por seu estilo e universo próprios.

Verdade que alguns filmes de Xavier -- como "O Vampiro de Copacabana" -- charmosamente envelheceram; mas outros, nos quais "Marcelo Zona Sul" é o caso mais simples, são autênticos cult-movies brasileiros, no sentido estrito do termo que serve para designar títulos adorados por fiel platéia, apta a nunca deixá-los morrer, passando adiante essa adoração.

"André, a Cara e a Coragem" (1971) pode não ter sido um filme muito popular naquele início de década -- pelo menos não tão bem-visto quanto "Marcelo Zona Sul", o longa anterior de Xavier, que lhe rendeu inúmeros prêmios e elogios. Mas é tão bom quanto, ou pelo menos demonstra que o diretor e roteirista era homem coerente em seus propósitos.

Espécie de antítese do sonhador pequeno-burgês Marcelo, o André rejeitado pela sociedade (e vivido pelo mesmo Stepan Nercessian) concretiza a fuga imaginada por Marcelo e vai parar em um Rio de Janeiro proletarizado, no microcosmo da mesma região portuária onde anos depois Stepan seria Queró em "Barra Pesada". Mas, diferente de Queró, o menino André não rouba um vintém e permanece ali, no limbo existencial característico dos personagens de Xavier, para quem a investigação da atmosfera que os rodeia é mais significativa que os elementos de enredo.

André sonha, sonha sempre; porém, os sonhos são interditados pela realidade mesquinha e altamente competitiva de um lugar que tem muito pouco a oferecer. Seu esforço é detalhado: lavador de pratos, promotor de eventos, cobrador. Quando carrega um reclame da venda de terrenos na Barra é avisado para fugir da polícia -- a empresa era fantasma. Na incubência de cobrador, nunca é atendido pelos devedores. Até no bordel, que visita na esperança de atenção mínima, a prostituta com quem se deita o trata com indiferença e repugnância.

Por vezes anda tão sem dinheiro que almoça no Albergue João XXIII, caminha sem rumo pelas pistas da Av. Presidente Vargas, e, na compulsão de sonhar, o faz idealizando a terra natal, Carangola (zona da mata de Minas Gerais), para seu colega de quarto, na casa de cômodos onde moram. Em troca, o colega marinheiro relata delícias em mares distantes da Europa, que parecem a André tão somente histórias, tamanha a distância -- e impotência -- do menino diante da vida.

Quando recebe uma chance, André sabe que terá que pagar de alguma forma por ela: um carro o atropela e a ocupante do veículo, uma velha senhora de Ipanema, pretende transformá-lo em brinquedinho controlado. André foge: prefere a existência miserável à prisão luxuosa. Depois, em busca de emprego, aproxima-se de um homossexual. Sem talento para o ofício, dá no pé de novo, fugindo e sonhando.

André guarda algumas semelhanças também com outro contemporâneo, o personagem de Vianinha em "Um Homem Sem Importância", do mesmo ano. Alijados da cadeia produtiva, pormenorizados em um desespero pacífico, ambos encontram a redenção nos braços de uma mulher: Flávio, de "Um Homem...", na recepcionista divorciada Selma, vivida por Glauce Rocha; e André, na imatura, porém estruturante, Marly (Ângela Valério).

A namorada terá o poder de renomeá-lo, de fazê-lo vivo, quando os colegas de moradia já o tratavam pelo apelido de "Pé na Cova". O lumpen de dezessete anos então aprende algo inédito em seus dias: o prazer, o bem-estar, na plenitude do passeio na praia de mãos dadas e na caminhada pela Cinelândia noturna (reparem que no velho Cine Pathé, hoje uma igreja evangélica, era exibido "O Passageiro da Chuva", suspense a la hitchcock estrelado por Charles Bronson).

Nossa passagem pelos sonhos (e pela fuga) de André termina na virada do ano, quando recebe mais uma negativa de emprego e prossegue seu caminho, dessa vez pela Av. Rio Branco coberta de papel picado. Meia década mais tarde, Xavier de Oliveira retornaria com outro André (Valli), em "O Vampiro de Copacabana", e "André, a Cara e a Coragem" se perderia na poeira do país esquecido de si mesmo e de todos os seus filhos, inclusive os cinematográficos. Mas não se enganem com esta temporária amnésia: André continua fugindo e um dia reencontrará os braços quentes do público, onde vai morar, menino, para sempre.


16 comentários:

Anônimo disse...

Extraordinária crítica, escrita com o costumeiro talento da autora. Se ainda existem ainda Andrea Ormond, a trajetória de personagens como Marcelos e Andrés continuará a ser contada. Parabéns pela excelente empreitada em defesa do cinema brasileiro. Uma entrevista com o Stephan seria muito legal, eu leria no ato.

Anônimo disse...

Filmes deliciosos de se assistir, tanto o MARCELO ZONA SUL quanto o ANDRÉ, A CARA E A CORAGEM. Stepan Nercessian já nos proporcionou grandes atuações no cinema como os citados Marcelo, André e Queró desta resenha quanto o Bereco em A RAINHA DIABA. Sei que ele esteve presente em outro filme de Oliveira, GARGALHADA FINAL - mas este não assisti. Parabéns Andréa por mais uma resenha de qualidade.

Anônimo disse...

Andréa, o anônimo da mensagem acima sou eu. Enviei o comentário e esqueci de me identificar.

Anônimo disse...

Xavier de Oliveira é mais um grande e injustiçado cineasta do nosso Brasil varonil. Mas estranhamente nunca consegui assistir André a cara e a coragem, ele sempre me escapa rsss. Alguém ai citou Gargalhada Final, é muito bom!
Andréa, mudando de assunto, o Carlão está fazendo um inventário das atuações antológicas do nosso cinema. Creio que sua contribuição para a lista dele é da maior importância :)
Beijos!

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Matheus. O Stephan já está na minha lista, ele reúne elementos super importantes do nosso cinema, será um imenso prazer :)

Anônimo, agora vc me deixou curiosa :) Obrigada pelo comentário, volta de novo pra postar a autoria :)

Oi, Sergio, conferi a lista do Carlão, gostei muito. Alguns detalhes mudam conforme o inventariante, mas o âmago está todo lá :) Gargalhada Final é um filme pouco lembrado mesmo do Xavier, mas tem o detalhe da saída do ambiente urbano, com um quê meio felliniano, poético. Beijo!

Anônimo disse...

Olá Andréa, tentei na segunda vez postar a autoria e cometi o mesmo engano, continuei anônimo (risos). Perdão pela confusão. Grande abraço.

Andrea Ormond disse...

Oi, Márcio. Faz parte rs, às vezes tb me enrolo pra postar nos comentários :) Abraços

Unknown disse...

Hoje 12/12/2009 23:53, tive o prazer de asistir André cara e coragem, no canal 2, impresionante, fiquei de cara. Wilson 44 - DF.

Edilson Ricardo disse...

A realidade nua e crua. A vida como ela é, nos seus pormenores. História de um jovem que tenta a sorte na cidade grande, porém ele descortina um mundo de interesse, mesquinhez, de pessoas levianas e oportunistas. O filme decepciona pois quem a asssiste espera um futuro melhor para o protagonista, pois ele perde tudo, porém felizmente consegue manter a dignidade e os princípios fundamentais do qual acredita e defende. E isto que é importante na vida de uma pessoa, ser correto e ter uma conduta altamente retilínia, em resumo, um pacato cidadão honesto e trabalhador. O que mais me impressionou são as imagens de um Rio de Janeiro antigo que eu não conhecia. É uma viagem no tempo. A fotografia é magnífica.

Oubi Inaê Kibuko disse...

Salve.

Tem hora que praguejamos a televisão e tem momentos em que se não fosse ela, alguns diretores e suas obras estariam condenados ao esquecimento. Decerto também que não estamos falando de qualquer emissora. "André, a cara e a coragem" foi exibido ontem na TVE Brasil. Eu nunca tinha ouvido falar de Xavier de Oliveira. Busquei, como primeira fonte de pesquisa, o acervo da midiateca do Itau Cultural, e pasmem: nada. Nem filme(s) nem arttigo(s). Gostei do filme, apesar de algumas observações, porém não diminutivas. Os anos 70 geraram e os anos 2000 certamente devem ainda estar gerando muitos Andrés. Em 1971, quando o filme foi lançado, em contava 16 anos. Algumas situações retradas me soaram familiares. Vi um retrato quase fiel da minha adolescência e por extensão das de muitos dos meus amigos, vizinhos, colegas de classe na época. Max Gehringer, colunista da radio CBN, em 29/10/2010, veiculou um dos seus comentarios de orientação a carreiras este pertinente titulo: Perseguir um sonho ou buscar carreira de sucesso? É assim que vejo o filme de Xavier de Oliveira. Caso alguém possa me indicar aonde conseguir este e os outros demais filmes, agradeço. Fiquei com gosto de quero assistir e saber mais.

Oubí Inaê Kibuko, www.oubifotografias.blogspot.com, Cidade Tiradentes para o mundo...

Barão Ricardo Lhkz disse...

Olá Andréa. Comentário perfeito. Uma gota de água no oceano do cinema brasileiro dos anos 70, afogado pelas pornochanchadas. "André..." não tem um final feliz, mas essa continua sendo a realidade do brasileiro que vem jovem do interior, sem experiência nem qualificação técnica, buscando um lugar ao sol na cidade grande. A única diferença entre André e Flávio é que Flávio já reside na cidade grande, que também lhe fecha as portas.
Um abraço!

Anônimo disse...

Andre, a cara e coragem, vi esse filme ontem, ja nem ia assistir, pois acho stepan um ator medíocre. Parei naquela cena que ele quase mata um gay...HOMOFOBIA PURA...CENA PATÉTICA, de um filminho fraco....
Sou LAURA, UMA CINÉFILA!

Luiz Alexandre disse...

Assisti hoje, depois de ter baixado sei lá quantos anos. Um belo filme mesmo. Teu texto dá a ele uma justiça que merece e a ausência desse tipo de louvor, curiosamente, o torna similar ao próprio protagonista do filme. Saudades de visitar esse espaço. Forte abraço!

Feuerstahl disse...

Há traços (ainda que muito vagos) da lispectoriana Macabéa em André (e vice-versa); lembrando que "A Hora da Estrela" foi escrito anos depois do filme. Curiosa coincidência de Xavier e Clarice estarem antenados em relação à miséria social do Brasil nos anos 70.

Fatima disse...

Andrea, que reconfortante ler esse seu post sobre um filme que adoraria ter visto e sonho ainda um dia poder ver. Nesses tempos de redes sociais, em que a profundidade, a seriedade, a visão crítica, o conhecimento e o amor pelas artes, pelo mundo, pelas gentes anda tão escasso, dá gosto encontrar você pelo caminho.
Agora que conheci seu texto, vou procurar sempre por ele quando estiver pesquisando sobre cinema.
Receba meu abraço, acompanhado das mais calorosas saudações cinematográficas.
Fátima Valença
PS: sabe onde poderia ver esse filme?

ADEMAR AMANCIO disse...

Uma ótima resenha,como sempre,não vi o filme - ''Laura'' está misturando as estações,se até hoje a ''homofobia'' é uma realidade,imagine em 1971,o cinema precisa retratar e não camuflar,abraços.