quinta-feira, junho 30, 2011

O Descarte


Zé do Burro, o neurótico-religioso de “O Pagador de Promessas” (1962), culparia o cramulhão se visse o look sombrio da esposa em “O Descarte” (1973). Isto porque Glória Menezes interpreta as duas personagens: Rosa em “O Pagador” e Cláudia Land em “O Descarte”. Se alguém comparar as fotos das moçoilas, dará um salto para trás. Glória parece ter experimentado um boot camp de fashionistas. Surge repaginadíssima como Cláudia, a locomotiva do society. A balzaquiana de vestidos vaporosos, tafetás, cílios postiços. Não lembra em nada a pobre Rosa, que tanto atormentou o beato.

Aliás, coincidências não param. O diretor, o montador e o produtor de “O Descarte” são os mesmos de “O Pagador de Promessas”. Respectivamente, Anselmo Duarte, Carlos Coimbra e Oswaldo Massaini.

Agora Massaini era auxiliado pelo co-produtor, Tarcísio Meira. O Tarcisão. O João da novela “Irmãos Coragem”, par romântico de Glória Menezes, dentro e fora das telas. Interessante lembrar que Carlos Coimbra havia acabado de dirigir Tarcísio no elegíaco “Independência ou Morte!” (1972): o filme que celebrou o sesquicentenário do acting out de Dom Pedro I, às margens do rio Ipiranga.

Com essas experiências, a equipe de “O Descarte” parte para a adaptação cinematográfica do livro “Um crime perfeito”, de Flávio Manso Vieira. Anselmo Duarte assina o roteiro, em momento difícil na carreira, após “Quelé do Pajeú” (1969, estrelado por Tarcísio) e “Um Certo Capitão Rodrigo” (1971, encabeçado por Francisco di Franco).

Em “O Descarte”, Cláudia Land vive presa em um vespeiro. Está cercada pela irmã louca (Tereza) e pelas memórias do esposo – falecido na sua frente, em um acidente de carro. Tem que aturar os falsos amigos, a corja de gente bajuladora, que inclui a empregada e o médico (Dr. Oliveiros, Fernando Torres). Cláudia dá umas escapulidas com Bruno (Ronnie Von), um rapazote bem mais novo. Talvez assim cure a rebordosa de ficar dois anos viúva.

O que era para ser mera crônica da dondoca estafada, “O Descarte” mistura com elementos espectrais. O uivo de Tereza, por exemplo, aparece do nada. Para piorar, a certa altura ela saltita, coloca flores no cabelo, uma verdadeira versão psiquiátrica do flower power de Scott McKenzie.

A montagem de Carlos Coimbra é particularmente hábil em apresentar a histeria crescente de Cláudia, o raciocínio cindido da personagem. Cortes secos, confusões na banda sonora, vozes fora de ordem. Cláudia é uma criatura manipulada, presa, sedada.

Até mesmo Bruno esconde uma sordidez de bom moço. Bom moço que se descobre mau moço pelas vias mais inusitadas possíveis. Ronnie Von está aqui na linha de michê underground, nem de longe combina com as madeixas maurícias que jogava para trás ao cantar “Meu bem”. Bruno poderia ser o amigo carioca dos “Mutantes” – banda que Ronnie batizou. Faltou pouco para queimar um bauret, o cigarro que provavelmente estava na cuca de alguns dos convidados de Cláudia, em uma festa que ela oferece na mansão.

Nesta hora, o espectador vê uma cena que Anselmo enxertou com toda ironia: cineastas e hippies se confrontam. As mãos do cineasta formam o gesto clássico, enquadrando o zoom. O cineasta (provável cinemanovista) vocifera: “Comunicação!”, “Cultura é cultura! Cinema é arte!” e outras teses do gênero. Os hippies mandam um “nada a ver” ou coisa parecida. O debate fica acalorado e é pena que acabe rápido demais.

Aproveitando o melodrama clássico, que sempre tratou loucura como doença hereditária, Cláudia morre de medo de ter o destino da irmã. Seguindo essa linha, os médicos são austeros. Conversam sobre “neurofibromatose” e afins.

Já na outra ponta da história – o envolvimento com Bruno –, temos as caminhadas pela relva, o casal com os braços estendidos, os riachos, as cores. Anselmo balança na corda bamba, usando elementos melodramáticos e românticos, mas escondendo um ceticismo que acaba sendo a marca do filme.

Para completar, o subtexto pop: a presença de Ibrahim Sued in person, o cafa do jet set, conhecido pelas participações bissextas no cinema. Além de Ibrahim, Célia Biar (Renata Werneck, amiga de Cláudia). Célia lembra as divas de Almodóvar. Alguém, por favor, apresente-a para ele. A voz anasalada, os gestos florais, venenosa que só. Por um tempo, Célia ficou conhecida por conversar de piteira com o gato Zé Roberto no colo, em um programa na Tv Globo. O luxo.

Jogar pedras em Anselmo Duarte já havia se tornado esporte nacional em 1973. Como o narciso não era um homem fácil, acabou piorando o ressentimento mútuo entre ele e o status quo. O fim não poderia ser outro. Veio prematuro em 1978, com “Os Trombadinhas”, último longa-metragem como diretor, sem as nuances de outras obras.

Quem quiser, experimente o exercício de abstração: imaginem a prosódia barroca de Anselmo, galã da Vera Cruz, alongando o “éle” da “Pallllma de ouro em Cannes”. Pois bem, a Palma é um bom ponto de partida para se entendê-lo. Por incrível que pareça, é também um problema, ao invés de ter sido mais um aspecto na trajetória vitoriosa.

11 comentários:

Agente X9 disse...

Andrea: embora um escrevinhador quase bissexto, continuo fã de seus textos! Outro show de comentário! Deste filme eu tenho uma dúvida, quase prosaica: quem é o dublador que deu aquela voz grave ao personagem do Ronnie Von? Você sabe? De resto, parabéns pelas suas bem traçadas linhas! Gilmar

André Setaro disse...

A inveja dos cinemanovistas foi intensa quando Anselmo Duarte ganhou a cobiçada Palma de Ouro em Cannes pelo seu filme 'O pagador de promessas'. Duarte conta, em sua biografia da Aplauso, que ficou marginalizado pelos seus colegas. Mas, mesmo assim, tentou fazer um filme para mostrar 'que era um verdadeiro cineasta', que foi 'Vereda da salvação' (1964), boicotado e impedido de ir concorrer no festival de Berlim. Excetuando-se 'Os trombadinhas' e um ou outro, a filmografia de Anselmo Duarte necessita de uma revisão urgente. Acho, por exemplo, 'Absolutamente certo' (1958), seu primeiro filme, uma comédia excelente dirigida com graça e sensibilidade.

Andrea Ormond disse...

Olá, Gilmar, obrigada. Gosto do filme e sobretudo do moçoilo que o dirigiu. Amigos do Estranho Encontro: matemos a charada para o Gilmar. Qual o nome do dublador?

Pois é, Setaro, de boas intenções o caldeirão está cheio. O que a princípio foi um "cinema novo", uma "redenção cinematográfica", descambou várias vezes para o apartheid nebuloso. E quando deram de cara com uma criatura narcísica como o Anselmo pela frente, aí mesmo é que o choque foi inevitável.

Rodrigo Pereira disse...

Andrea, vejo a atenção que vc dedica à filmografia do Anselmo e fico curioso para ler suas impressões sobre VEREDA DA SALVAÇÃO. E também fico imaginando o que acharíamos de QUELÉ DO PAJEÚ - o único filme perdido do Anselmo, enorme sucesso de bilheteria que a historiografia oficial fez questão de enterrar, talvez com uma mãozinho da próprio cineasta, meio infeliz por se tratar de um projeto de "encomenda"... Em tempo: detesto VEREDA...

Vlademir disse...

Acho esse filme bem decepcionante, Andrea. Não sei se por não gostar de Glória Menezes, mas ele me parece muito com cara de novela das oito e também diluição daqueles melodramas mais antigos com Bette Davis. Mas tenho curiosidade em conhecer Vereda da Salvação e Quelé do Pajeú.

Roberto Pepino disse...

Como sempre, texto delicioso, citando sempre o pop e o erudito. Concordo com o André Setaro, "Absolutamente Certo" é um filme muito bom! Há boas décadas, estudante, quando o cinema paulistano ainda respirava aquele ar mundano da Rua do Triunfo, fui à Cinedistri e, respeitosamente recebido por Aníbal Massaini, ouvi-o dizer claramente o seguinte: a Palma de Ouro havia sido dada ao Pagador de Promessas como para desempatar uma disputa entre a mesa com filmes de diretores que monopolizavam paixões naquele festival. Como a dizer: ao não se decidirem por um Kurosawa ou por Felini, deram a Anselmo. Até hoje discordo disso. Porque O Pagador de Promessas é simplesmente fantástico! Um abraço.

Marco Antonio disse...

BAURET? Feve ser daí que a maconha é chamada de BAURA aqui no RS...

Anônimo disse...

Olá Andréa, é sempre um prazer enorme passar por aqui e ler suas críticas, que eu considero legítimas aulas de como assistir filme brasileiro. Eu vi este filme há uns dois anos no Canal Brasil e o que mais me impressionou,fora o roteiro foi a sensacional trilha sonora, composta e executada por Guto Graça Mello. Com belas orquestrações, são arranjos que sintetizam a atmosfera tensa do filme...se esta trilha fosse lançada em CD, seria sonhar demais? Finalizando, só uma dúvida: você saberia me dizer se este filme ainda continua na grade do mesmo Canal Brasil?

Abs, Cassiano (POA-RS)

Andrea Ormond disse...

Rodrigo, em breve eu escrevo sobre o "Vereda da Salvação", é uma boa pedida.

Entendo, Vlademir. Mas "O Descarte" tem várias sacadas interessantes, como a própria crítica a quem criticava o diretor (durante a festa, os hippies versus os cinemanovistas). A pitada de Warner Brothers/Bette Davis rs aparece para dar a liga.

Roberto, se a gente colocar no papel a quantidade de histórias sobre essa tal dessa Pallllma de Ouro, compilamos uma bíblia. É um dos cases mais bizarros do cinema nacional... Abraços

Marco Antônio, depois procura o lp dos "Mutantes e seus Cometas no país dos Baurets". Chega a ser auto-explicativo o nome do disco rs

Obrigada, Cassiano. Uma trilha do Guto Graça Mello de que eu também gosto é a do "Roleta Russa". Tem muito do estilo do Braúlio Pedroso, que escreveu e dirigiu o filme. O Canal Brasil tem variado a programação, alguns filmes não passam tanto quanto antes. É preciso ver com calma no site, mas creio que "O Descarte" ainda está lá.

Anônimo disse...

Vou nem contar para ninguém que aqui:

http://cinemacultura.com/?p=9742

há um torrent ativo (20-jan-2014) para Vereda da Salvação que estou a baixar. Parece-me que o rip foi feito a partir da tv , logo não me responsabilizo pela qualidade do áudio e vídeo.
Não obstante por tratar-se de uma raride , o que vier é lucro.

xiiii ,contei!!!
Boa diversão.

ps.: por favor confirmar a informação que o filme QUELÉ DO PAJEÚ , está de fato perdido.
Nâo sobreviveu nenhuma cópia ?

Fabio Ramos disse...

No programa Todo Seu (gravado em 01/06/11, com a presença da Glória Menezes), Ronnie Von explica a situação: na época, ele tinha um show para fazer na Espanha e tal compromisso o impossibilitou de dublar seu personagem em "O Descarte". A tarefa - segundo o próprio Ronnie - recaiu sobre Daniel Filho, que lhe empresta a voz no filme.