domingo, junho 15, 2008

Espelho de Carne


Muito pode-se dizer da carreira de Antônio Carlos Fontoura, inclusive que dirigiu um dos melhores filmes da história do cinema mundial: "Rainha Diaba" (1974), o clássico camp que consagraria Milton Gonçalves.

Ninguém é perfeito, e também leva a assinatura de Fontoura a sandice "Uma Aventura do Zico" (1998), projeto mal fadado, da mesma estirpe de "Cinderela Baiana", que nem os próprios flamenguistas -- adoradores do eterno ídolo rubro-negro -- tiveram a singeleza de assistir.

"Espelho de Carne" (1984), baseado na peça homônima de Vicente Pereira, marcou época, e, mais do que qualquer outro, jogou o nome de Fontoura na boca do povo -- no caso, a classe-média -- que ia aos cinemas testemunhar Daniel Filho avançando na retaguarda de Dênis Carvalho -- figurões da Rede Globo, conhecidos nacionalmente por seus currículos de conquistas femininas.

Ainda que o culpado pela "recaída" tenha sido o espelho misterioso e erotizante do título, a suposta liberalização de dois machos, fortes e poderosos, servia de refrigério no país dos estertores da censura e da ditadura militar. Vicissitude típica de lugar provinciano, a realidade de quem eram valia mais do que o esforço "dramático" a que se entregavam; e toda a expectativa da audiência se imobiliza ao redor da cena, lenda urbana que atravessa gerações.

Passado o susto, "Espelho de Carne" é tentativa curiosa de ode libertária, que sobreviveria muito mais verdadeira se realizada cinco ou dez anos antes. A "fúria do corpo", o sexo vicejante, eram fenômenos típicos da década de 70, que na metade dos 80 já perdiam terreno para o egoísmo, narcisista e patológico, que sofremos até hoje.

Sinal dos tempos, a compra do espelho em um leilão, pela quantia de 2 milhões de cruzeiros, mostra o quanto abastados como Alvaro Cardoso (Dênis Carvalho) contavam zeros na escalada inflacionária galopante.

Obra de
art-déco, adorno em um bordel histórico do Rio de Janeiro, a preciosidade acaba na residência do casal, Alvaro e Helena (Hileana Menezes). O que não imaginam é que o objeto guarda forças sobrenaturais, que nem as lâmpadas de neón nem as samambaias datadíssimas do apartamento na Barra da Tijuca conseguem neutralizar.

Alvaro e Helena têm vizinhos, Jairo (Daniel Filho) e Ana de Almeida (Joana Fomm), com quem bebem e jogam cartas no fim de semana. Outra moradora do prédio, Leila Assunção (Maria Zilda), recebe a saborosa cobiça sexual dos quatro, mas é apreciada principalmente por Daniel Filho, em cena memorável.

A trama não incomoda -- são picardias de salão -- e o desejo obssessivo, induzido pelo espelho, apresenta qualidades que vêm definhando no mundo atual: os homens gostam realmente das mulheres; e as mulheres, quando se interessam pelas outras, vasculham entre si intimidades femininas, não o sofrimento mórbido de invejas, imposições ou competições.

É um amor-livre saudável, criativo; ao mesmo tempo domesticado, cariocamente esnobe. Observe-se, por exemplo, a relação de Helena e Ana, embriagadas de desejo uma pela outra -- mas burguesas ao extremo quando flagam a empregada nua, deitada na cama da patroa.

A ação teatral, que corre do quarto para a sala, e vice-versa, com externas mínimas, deve ter barateado muito a produção, ancorada em recursos fáceis, algo ridículos, já que na maior parte do tempo os atores interpretam olhando diretamente para a câmera/espelho. Talvez por castigo, um dia Helena jura que viu o diabo -- ele, literalmente o coisa-ruim -- na câmera-espelho para onde olha fixamente.

Lembra bastante aqueles mitos infantis, do estilo "não fica olhando para o espelho, menina, que o capeta aparece!". Assustada, com dois quilos de cocaína na cuca, resolve quebrar o mobiliário (sete anos de azar! diria uma avó ranzinza para assustar a criança), mas ninguém permite tamanho desvario, e o filme termina com os cinco nus, prescrutando o outro lado da tela -- um daqueles momentos em que a gente se pergunta quando o cinema brasileiro perdeu a capacidade de ser tão simplório e divertido .

O diabo, claro, é metáfora. Da culpa, do moralismo, e, profeticamente, da destruição das crenças liberais daqueles trintões, que em 84, 85 começavam a descobrir a AIDS como mazela disseminada.

Em contexto maior -- o da chamada "década perdida" no país -- "Espelho de Carne" faz belo par com "Rio Babilônia" (82): um mostrando o avesso extremo da cidade-símbolo do Brasil; outro, sua intimidade mais recôndita. Ambos, documentando a euforia que antecipava a depressão profunda dos cariocas -- e brasileiros -- de hoje. Portanto não se iludam: "Espelho de Carne" é muito mais do que o filme em que Daniel Filho e Dênis Carvalho vivem a plenitude do amor que não ousa dizer seu nome.

6 comentários:

Anônimo disse...

Prezada Andrea,
é uma imensa satisfação ver o Estranho Encontro retomando as suas atividades. Senti muito a sua falta. Espelho de Carne: ainda não tive o privilégio de assisti-lo. Contudo, por já ter estudado profundamente Rio Babilônia (grande Neville...), e pelo comentário ora trazido por você, concordo que ambas as obras têm muito em comum. Os pontos principais desta evidente fusão são a cidade do Rio e o liberalismo doce, quase inocente de então. Parabéns, Andrea. Você permanece brilhante. Prossiga! Até breve!

Agente X9 disse...

Andréa: alvíssaras!!! Ótimo reencontrá-la! Feliz retorno, e no melhor estilo. Continuo buscando e rebuscando nos baús por novi(velhi)dades do cinema nacional. Quando encontrá-las prometo partilha-las com você. Felicidades, Gilmar

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Rodrigo. Apesar de marcado pela cena "mitológica", "Espelho de Carne" tb trabalha com outos aspectos interessantes, numa roupagem diferente do "Rio Babilônia". Os dois se complementam, cada qual no seu território :) Abraços

Olá, Gilmar, obrigada. Voltei e já coloquei post novo :) Abraços

Anônimo disse...

bem, sou um leitor recente do "estranho encontro" pq eu adoro o cinema nacional...
Parabéns! Gosto muito dos seus textos, consegue ir bem além da nossa simples percepção imediata.
Por exemplo, espelho de carne é um filme pavoroso de ruim (pra mim isto não é problema, eu o adoro), mas vc consegue enxergar beleza e alguns méritos nesta tosca filmagem.
Queria te perguntar uma coisa: existe possiblidade de se adquirir uma cópia deste filme com vc? Vc tem todos em casa?

Anônimo disse...

O filme não é lá essas coisas, porém a resenha deste blogueiro, permeada de vocábulos em desuso na língua portuguesa, sem entretanto parecer pedante agradou-me bastante.

Ademar Amancio disse...

Vi na tela grande,estou revendo na xvideos.