sexta-feira, agosto 15, 2008

Uma Provocação Sobre Mojica


E eis que o coveiro alucinógeno e brasileiríssimo, Josefel Zanatas, volta com sua capa, chapéu e unhas bolorentas em “A Encarnação do Demônio”.

Como fenômeno que escapa à mera observação técnico-fílmica, o diretor José Mojica Marins criou no doentio personagem, mais conhecido como Zé do Caixão, uma lenda propriamente dita, mesclando
approach filosófico, instinto e talento naturais, que alguns classificam de naïf.

Zé do Caixão entrou para o folclore nacional desde os anos 60, engendrando marchinhas de carnaval (“Eu moro no castelo dos horrorores / Não tenho medo de assombração / Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô eu sou o Zé do Caixão”), revistas em quadrinhos, programas de tv e até mesmo candidatura a deputado federal, apoiado por Jânio Quadros.

Tudo isso cantado em prosa e verso, uma polêmica aterrissa de mansinho entre nós.

Dizendo-se injustiçado pela censura 18 anos dada a “Encarnação...”, Mojica reclama de peito aberto, diz que o filme está naufragando nas bilheterias e alerta que nem mesmo o
trailer pôde ser veiculado nos cinemas. Em seu lugar, uma chamada feita às pressas, estrelada pelo próprio.

Nascida e criada em um ambiente de satisfatória liberdade, nos anos 80-90, creio que algumas considerações devam ser feitas.

Classificar pedagogicamente os filmes não é o problema. O posicionamento do Ministério da Justiça sobressai meramente indicativo (v. Portaria MJ 1.220, de 11/07/2007, art. 3 c/c art. 18), na medida em que o poder parental é exercido pelos pais, responsáveis pela formação dos filhos. Há solidariedade – e não arbitrariedade – do Estado para o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes.

O que venho percebendo – com pavor – é a tentativa canhestra de boa parte do público de legar Mojica ao ostracismo, ou ao ridículo. Tanto os que foram e saíram com medinho do bicho, quanto os que não viram e não gostaram.

Ocorre que presenciamos, boa parte das vezes, um total desconhecimento do que existiu na ebulição artística do século XX. Equivale, por exemplo, a encararmos o urinol de Duchamp enquanto uma aberração e agressão a ser combatida, ao invés de analisada enquanto catalisador de coisas outras que dialeticamente se sucederam no tempo.

Afinal, o que aconteceu de fundante e tão obtuso com as gerações que se seguiram ao desbunde dos anos 60 e 70?

Por que essa alma
ultraconservadora que assola e infantiliza trintões e criaturas pouco além dos 20 anos que, a princípio, deveriam já ter se acostumado com o que aconteceu há x anos de seu próprio nascimento?

Assim, os marmanjos infantis de hoje em dia precisam travar contato com o mundo adulto e entender artisticamente uma vida anterior à doçura e à superficialidade que contaminaram a geração Y.

E, independentemente da idade de quem a defenda, proclamar a censura, quanto mais com base no “é feio, sujo e não gostei” acaba sendo atitude tola, retrógrada e lamentável de se ver em pleno 2008.

Melhor que se assista com calma às obras-primas de Mojica, realizadas em plena ditadura militar. Começando por “À Meia Noite Levarei Sua Alma” (1964), “Esta Noite Encarnarei no Seu Cadáver” (1966) e prosseguindo até “Ritual dos Sádicos” (1969).

A primeira exibição pública de "Ritual dos Sádicos", sem cortes, aconteceu em agosto de 1986, no antigo Cine Ricamar – onde hoje se localiza a Sala Baden Powell, Av. Copacabana 360 – durante o Rio Cine Festival. Pode parecer absurdo, mas, nos dezessete anos que separam as filmagens da estréia, "Ritual dos Sádicos" esteve proibido, e quem o exibisse ou comercializasse seria preso e enquadrado na lei.

Os que lá estiveram, naquela histórica sessão, contam que ao ser ovacionado pela platéia, José Mojica Marins agradeceu e chorou. Nada mais coerente: a proibição do filme custara os melhores anos de sua carreira. De fato, Mojica tomou rumos incertos depois que sua tour de force foi interditada e banida em todo o território nacional. Com o estigma de cineasta maldito, que mofava nos arquivos do governo e que por isso falira uma produtora, ninguém era aventureiro o suficiente para bancar novas tentativas – mesmo se tratando de um gênio, como era o caso.

Naquele tempo, a criação era cerceada pelas armas burocráticas; hoje, parte do público faz o trabalho voluntariamente – com moralismo, falso espanto e ignorância.

Ano passado, polêmica parecida foi gerada por “Batismo de Sangue”, obra de Helvécio Ratton, cujo teor de reflexão sobre a tortura foi eclipsado por considerações que martelavam a “violência excessiva” das cenas. Respondam: mas não eram os torturadores cruéis? Não feriam, não matavam? O padre da história não enlouquece justamente por conta disto?

Tanto destaque deram, que muita gente caiu na esparrela e preferiu ver “Turistas” como antídoto. Ou agora, no caso de Mojica, surge “The Dark Knight”. Violência falada em inglês magoa igualmente. E não há nada em “Encarnação” que o cinema brasileiro ou mundial já não tenha feito, sem qualquer chiadeira. Para os padrões de Mojica – vejam “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” (1968) – é até bem comportado.

Lutar pela liberdade de criação e contra a mediocridade intelectual é dever de todos, impregnado na sociedade. Do contrário, estaremos negando conquistas artísticas, estéticas, filosóficas. Quem ignora Mojica, quem critica Khouri, Garrett – pelo erotismo – e quem prega uma assepsia indigente no cinema brasileiro atual, se encaixa na bela (e injusta) definição de Salvyano Cavalcanti de Paiva para os admiradores de “Terra em Transe”: vociferantes nenéns neofascistas. Reacionários.


18 comentários:

Anônimo disse...

É isso aí, Andréa. Os supostos bem pensantes desse país parecem ter vergonha dele no que ele tem de mais espontâneo e original.
Aqui em BH, "Encarnação" estreeou na semana passada. Não pude ir vê-lo, e tão cedo não verei, porque já saiu de cartaz.
Mojica é alvo do tipo mais sórdido de discriminação: aquela do risinho irônico, do suspiro, do olhar "superior". Superior a quem?, seria o caso de se perguntar...

Agente X9 disse...

Andréa: o pior que se faz com uma obra artística é defini-la, enquadrá-la, reduzi-la tão somente à amplitude de quem se permite criticá-la. Entende-la ou não, é uma segunda questão; a primeira é rejeitá-la nos limites do "não vi e não gostei", como que a obstruir as mentes pensantes - pode parecer, mas não é um pleonasmo...
Zé do Caixão, ou seu alter ego José Mojica Marins, não são de compreensão e aceitação obrigatória, mas, em favor da
oportunidade do conhecimento e do aprendizado com a contradição, é dever assisti-lo, e, tanto quanto possível, posicionar seus filmes na perspectiva histórico-política na qual foram concebidos e realizados.

Parabéns pelo seu libelo em favor da liberdade de expressão. Gilmar

Tânia N. disse...

E viva a liberdade de expressão!

Anônimo disse...

Assim como o Mauro Teixeira não consegui assistir "A Encarnação do Demônio" em BH devido à sua exibição relâmpago. Absurdo dos absurdos e desrespeito não só com o cineasta, mas com o público cinéfilo.

Anônimo disse...

A mais lúcida análise que li sobre o fracasso (de público, bem entendido) do filme do Mojica. Parabéns, Andréa!

Anônimo disse...

Márcio,
O absurdo e desrespeito foi de quem? É claro que o mercado exibidor tá interessado é em lucro, mas no caso do filme do Mojica ele programou o filme, quem não foi assistir foi o público. Inclusive o "público cinéfilo" do qual você deve se sentir fazendo parte.
O desrespeito no caso foi de vocês.

Andrea Ormond disse...

Pois é, Mauro, nada mais tosco do que o risinho superior sobre assuntos que muitas vezes se desconhece...

Exatamente, Gilmar, como eu falava no texto, essa história do "não vi e não gostei" é uma das coisas mais atrasadas e sem sentido que alguém pode defender. O problema é que um círculo vicioso se perpertua, e as falsas verdades vão se multiplicando.

Dá-lhe, rostinhos bonitos! rs É o mínimo que se pede.

Márcio, os programadores devem ter tido os seus motivos, essa escassez de público e a censura 18 prejudicaram bastante. Mas entendo o que vc quer dizer, ficar com água na boca, sem poder ver um filme do Mojica, é terrível mesmo.

Obrigada, Sérgio. Esses fatores extra-cinematográficos contam bastante, é preciso ficar atento pra eles e não fazer a crítica fácil sobre a falta de público.

Anônimo, não sei se vc me incluiu ou não com o "vocês", mas vamos lá. Pelo que eu entendi, o que o Márcio quis dizer é que o Encarnação ficou pouquíssimo tempo em cartaz. Esse fato, de não ter tido tempo para o público assistir, foi o que ele achou desrespeitoso. Tb acho que vc deveria ter assinado o comentário e lido o texto acima, já que nele estão apontadas algumas causas para essa "fuga" do público.

Anônimo disse...

Andrea,
É claro que não estava falando de você, pois li o post e entendi perfeitamente. O que eu disse foi para o Márcio e o suposto público-cinéfilo, que só reclama, reclama, reclama, mas não vai ver os filmes. Recentemente, Murilo Salles fez um apelo para que o público fosse logo ver "Nome Próprio" na primeira semana, pois já é mais que sabido que é essa primeira semana que define o destino do filme. Como disse, pelo menos o mercado exibidor programou o filme, mas é ingenuidade esperar que ela vá manter o filme em cartaz à espera do público. Nesse ponto, o público do cinema arrasa- quarteirão é que nada de braçada, afinal bastou o "Batman" estrear para quase 1 milhão de pessoas correr para os cinemas no primeiro final de semana. Enquanto isso, o público-cinéfilo que sabe que os filmes mais artísticos têm muito menos chance de permanecerem em cartaz, isso quando nem são lançados, e, no entanto, ficam esperando para assistir o filme sei lá que hora. Por isso, entendo que o desrespeito, no caso do filme do Mojica, foi desse tal público-cinéfilo que adora reclamar mas não faz a sua parte - vide as bilheterias vergonhosas do cinema brasileiro no primeiro semestre, pois de 3milhões de público, 2 e 100 ficou com Meu Nome Não É Johnny e o resto dividiu o resto.
A propósito, desculpe-me por não me identificar: meu nome é Olavo.
Abs,

Anônimo disse...

Já que fui citado pelo anônimo, explico: moro em Belo Horizonte mas passo semanas e às vezes até meses fora da capital, dependendo para onde vou, desenvolvendo pesquisas. O azar foi meu que não estava em BH na semana de exibição de "Encarnação do Demônio".

Pois é Andréa, fiquei com água na boca mesmo! Agora é aguardar o lançamento em DVD ou torcer para que o filme seja exibido na mostra "Passou Batido" que sempre ocorre por aqui nos finais de ano.

Andrea Ormond disse...

Faz sentido, Olavo. Sempre existe quem reclama e não faz nada de concreto. Mas se formos quantificar o "público cinéfilo" será que atinge o total a ponto de arruinar a bilheteria do filme? Acho que o Encarnação poderia ter lucrado com um público nem tão cinéfilo assim, que se sentiria atraído pela mitologia em torno do Zé do Caixão. Adolescentes em geral, por exemplo, como diz o Mojica. Além disso, o contexto de alienação, como apresento no texto, é claustrofóbico. Batman vira um exemplo de explosão cinematográfica. São questões de fundo, e esta que vc apontou tb está lá no meio do caldeirão de problemas. Abraços

Essas mostras são salvadoras, Márcio rsrs Tb já peguei alguns filmes na rebarba, e que não gostaria de ter perdido.

Anônimo disse...

Acho que eu também não me fiz entender. Não quero que o exibidor mantenha o filme em cartaz sem público, só me esperando. A questão é do fechamento de espaços de divulgação ANTES do lançamento. Mesmo sem ter assistido, é fácil perceber que o filme teria potencial para três ou quatro semanas, no mínimo, desde que tivesse uma acolhida mais calorosa dos exibidores (no tocante ao trailer) e da imprensa.

Anônimo disse...

Querida Andréa, não precisarei mais me preocupar com a mostra "Passou Batido". Zé do Caixão reencarnou em duas salas de BH nesta última sexta-feira e pude, enfim, assistir o filme. É certo que este está sendo exibido em uma única sessão em cada sala e no último horário, sendo que uma das salas se localiza em um shopping de difícil acesso. Estes são elementos que também explicam o afastamento do público. De toda maneira o filme tem beleza plástica, ótimo elenco e a emblemática constatação do Zé do Caixão gritando "40 anos de resistência!" ao sair da prisão. Grande abraço

Anônimo disse...

ah, quer dizer que o pessoal aí tá achando ruim o filme do josé?! pôrra, e eu aqui doido pra ver e tenho certeza que não vou ver tão cedo, porque moro no estado mais pobre da federação, pois olha, eu e meu grupo apresentamos filmes fora do mainstream (um cão andaluz, estamira, anemic cinema, etc.) para jovens do interior do estado e sabe o que acontece? muitos deles gostam dos filmes e pedem para ver de novo, e veja: jamais entraram em um cinema na vida! gostei das suas considerações!

Anônimo disse...

Olá Andrea.

Te mandei um email (esse assinalado aqui no blog). Você recebeu?
Tenho tido um pouco de problemas com isso, e algumas várias pessoas não receberam meus convites.

Abraço.

Anônimo disse...

Olá Andrea.

Te mandei um email (esse assinalado aqui no blog). Você recebeu?
Tenho tido um pouco de problemas com isso, e algumas várias pessoas não receberam meus convites.

Abraço.

Andrea Ormond disse...

Essa é realmente uma parte bem delicada do problema, Mauro, como a gente pôde ver nesse bate-papo rápido entre os comentários. A censura 18 e o fato de o filme não ter deslanchado de cara, na primeira semana, são argumentos bem fortes para se cortar a exibição, mesmo com o lançamento marcante, em algumas cidades.

Esta cena é ótima, Márcio, bem simbólica. No filme todo, gosto bastante da solução dramatúrgica do final, os filhos perfeitos se espalhando pelo mundo, em mulheres diferentes. É a maior praga possível pra quem não gosta do Zé! rsrs Abraços

Pelo jeito, Ítalo, ainda há esperança rs Acho que mostrando filmes diferentes e quebrando as expectativas dá para se formar um público menos domesticado ao cinemão americano. Parabéns pela sua iniciativa.

Gabriel, recebi o email e já respondi. Um abraço

Anônimo disse...

"Naquele tempo, a criação era cerceada pelas armas burocráticas; hoje, parte do público faz o trabalho voluntariamente – com moralismo, falso espanto e ignorância." Que maravilha. :) Por isso que a nação cinéfila se ufana do seu texto.

Ah, mas não é injusta não, pô. O filme é que é uma injustiça com a sétima arte. Hoje mesmo lembrei do Salvyano pra parabenizar uma amiga minha e conterrânea dele que ajudou a salvar o Cine Nordeste, em Natal. Vociferantes nenéns neofascistas, piedosas damas da esquerda festiva, psiquiatras psicopatas e... quais eram os outros dois? :))

Eduardo Abreu disse...

Concordo em gênero, número e grau. E essa geração Y, medrosa de tudo, se relaciona (superficialmente) também assim com música e outras formas de arte. Tudo tem que ser asséptico, de impacto e transgressão comercialmente calculados. Só tem uma coisa que me reconforta: a vida toda de Mojica foi um filme. A censura, a incompreensão, as falências, os fracassos, o status de cult, a redescoberta por outras gerações e por estrangeiros... Enfim, o fato de "Encarnação do Demônio" ter tido uma bilheteria pífia, um trailer "censurado", ser enquadrado para o público de 18 anos e outras bizarrices, só complementa a biografia de Mojica com coerência. Não adianta querer que o mundo mude e entenda o homem. Agora é tarde. Já me dou por muito satisfeito - e espero que ele também - de ter esse longa-metragem muito bem escrito e realizado para encerrar a trilogia, e talvez a carreira do cineasta. Ele merecia isso, como realizador. E seu público será o de sempre: aquele pequeno grupo de cinéfilos e fãs de terror sem falso moralismo. O filme foi feito pra essas pessoas. Pena que outras não embarcaram na onda. Mas só pela existência do filme e todo esse auê, já valeu.