sexta-feira, dezembro 03, 2010

Todas as Mulheres do Mundo


Correndo por fora no jóquei, balançando o chapéu no ar de vitória, “Todas as Mulheres do Mundo” (1967) entra e sai da programação do Cinema Novo com a non chalance do diretor-roteirista Domingos de Oliveira. Tijucano, migrante em Copacabana, incorpora o ideal de suavidade na produção, a câmera livre, mas renega o pragmatismo, a defesa iracunda do movimento.

Joaquim Pedro de Andrade convida-o para assistência nos curtas “Manoel Bandeira, o Poeta do Castelo” e “Couro de Gato” – este, um quinto de “Cinco Vezes Favela” (1962), em que também sua o paletó na versão ator. Rodopiou o cine Ópera, durante a exibição de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, deu um urra ao épico agreste, mas o cinéfilo deteve – como ainda detém – posição secundária. Concentrou os esforços no teatro, alguns deles ao lado de Gláucio Gil, o que justifica o bilhete-dedicatória em “Todas as Mulheres”.

Marco sensorial no trajeto, une-se a Leila Diniz, ainda ex-professora de crianças de colo, adepta intuitiva de Summerhill – dado não à toa inserido no roteiro. Quando já atriz em pequenas pontas, separam-se. Surge “Todas as Mulheres do Mundo”, e até que instância chega a fingir que é dor a dor que deveras sente, o curioso público fica na escuta; por determinadas insinuações, supõe-se que sim.

Afirmativo ou negativo o fato de ser catarse, Domingos constrói um cântico devotado, promessa de eternidade costurada em narrativa ágil, cara de pau, reflexiva nas brechas, tintas claras da Guanabara. Fotografia em preto-e-branco – câmera do múltiplo Mário Carneiro –, “Todas as Mulheres do Mundo” influenciou a vinda de outros filmes, retocados na moviola para não fazerem feio. O estrondo de aceitação, no público e na crítica, foi excepcional; abriu as ventanas para alas mais ortodoxas respirarem um pouco. Porque bode demais não dá, recitaria Hugo Bidet ao mexer as conchas da infame feijoada que o nomeou.

“Os Paqueras” (1969), quem diria, sucesso do cinema popular brasileiro, divide tulipas de chope com este clássico da Saga Filmes – comandada por Marcos Faria e Leon Hirszman –, produção associada de Cyll Farney. Exatamente: o leitor que esperava entrar em óbito sem conjugar na mesma frase Cyll Farney e Leon Hirzman pode mudar de planos, a surreal realidade se impõe.

Alterando uns graus no colarinho, digerindo um tanto do éter poético de Domingos – sobretudo escritor, antes de roteirista –, “Os Paqueras” coloca decibéis dos Mutantes, Roberto Carlos, Ronaldo Bôscoli e um lado cafa que as oficinas de Carlos Imperial lhe emprestou. Em “Todas as Mulheres” a trilha é de fanfarra, pop bubblegum, circo cínico, redesenha algo que não é chanchada porém soa cômico, o que não é intelectualizado porém soa doído. Tudo com a delicadeza fulgurante de quem encontrava Marília de Dirceu – trajando duas peças, batendo perna, sorriso no rosto amado.

Previstos para serem dois médias-metragens, o longa tomou corpo sem arredar um milímetro. Paulo (Paulo José) conta a Edu (Flávio Migliaccio) a falseta que uma pequena, Maria Alice (Leila Diniz), lhe aplicou. No segundo média, Edu lembraria ele próprio seus causos ao amigo. Eduardo Prado, autor dos contos que serviram de mote a “Todas as Mulheres”, auxiliou Domingos em “Edu, Coração de Ouro” (1968) – estrelado mais uma vez por Paulo José –, projeto que atende parcialmente à ideia da interlocução.

Acompanhamos o casal andando pelo centro do Rio, Cinelândia, praias, boates, apartamentos, desfile de cocotas que inclui Maria Gladys e Marieta Severo pós-púberes. A cobiça de Paulo, o flagrante do beijo, Don Juan que se perde no ar, estatelado pela Maria Alice então namorando a sério o boa-praça Leopoldo (Ivan de Albuquerque) – “Você não acha chato não, Maria Alice, namorar um cara chamado Leopoldo?” Paulo faz o impensável, o que nem Erasmo Carlos suportaria: dá um tchau para o caderninho. Rasga da memória as meninas antigas. Uma delas, que fazer?, o traía com Edu, paciência. Outra, figurante escondida na novela “O Sheik” – em que Leila, aliás, trabalhava.

É de Leila todo o subtexto do filme, todo o agrado em ser e dizer-se independente – a personagem pigarreia um toco, confessa o desejo de casar, véu e grinalda. “Todas as Mulheres” lançou-a, de maneira irreversível, no cotidiano brasileiro. Pularia vedete, namoradinha televisiva, entrevistada do Pasquim, asterísticos à solta para contornar os palavrões que saíam em cascata, na naturalidade de quem escova os dentes e choca por querer ou por instinto. Alvo de feministas encalacradas, futura mãe do ano – eleita no programa do Chacrinha – é figura inevitável em qualquer escavação sobre os anos 60. Dentre os destroços do acidente que a matou, os resquícios do diário, pensando na filha, reforçam a tragédia e a elegia ao seu redor.

De solaridade, canalhices perdoadas, fossa homérica – Leopoldo morre –, nucas e encucações, o filme se enche, frenesi que agrada ainda hoje. Espaço para trisal, brincadeirinhas sutilmente lésbicas, prima Bárbara (Joana Fomm) e Dúnia (Isabel Ribeiro) num clima vamp, saborosíssimo, além da amante argentina – um quê da diva italiana Mina Mazzini. Reparem que a montagem de Raimundo Higino e João Ramiro Mello – assistência de Nazareth O'Hana, mãe de Cláudia – contribui para a esperteza no encadeamento das imagens que espocam por todo o filme, incluindo um close da carteira de identidade de Flávio Migliaccio e fotos vintage. “Ilha das Flores” (1989), de Jorge Furtado, mantém esse ritmo duas décadas depois – na era Collor –, coincidentemente narrado por Paulo José.

Logo em seguida da experiência no Serro, em “O Padre e a Moça” (1966), Paulo adere ao espírito aloprado do xará fílmico, embarca no que parecia alienação de cineasta pequeno-burguês, frequentador das mesas do Veloso. Fauzi Arap – o bêbado arauto de “O Padre e a Moça” – aparece como o paulistano obcecado, do tipo lenda urbana, encurralando Maria Alice durante um almoço.

Cartaz desenhado por Jaguar, sacerdote do decathlon nas revoadas noturnas, “Todas as Mulheres do Mundo” instalou-se em um gomo da afetividade. Alimenta-se ali, convive com os demais, diz uma graça que caia bem e acena para o dia seguinte mais tranquilo. Estratégia de abraçar o possível – dúvidas e ceticismos no meio do processo, como os de Edu, incrédulo na festinha entre crianças e adultos. Acredita no amor – pleno, tanto quanto der – e consegue a proeza, indisfarçável, de tornar imbecil quem, se opondo, levantar o indicador em riste.

2 comentários:

Roberto Pepino disse...

Como sempre, belo e delicioso texto. Cá comigo penso que Todas as Mulheres do Mundo é, como O Homem Que Amava as Mulheres, um canto de liberdade e pureza cinematográfica que nos faz ver que a paixão é sentimento cinematograficamente imbatível em sua beleza e leveza.

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Roberto. O Domingos deixa um carinho tão grande no filme, a ponto de ele não destoar, ser tudo vital, nevrálgico. O Truffaut é mais soturno (lida com a morte), mas também faz essa apologia ao amor, ao feminino.