Cravando a tese de que o sertão possui traços míticos, entes imaginários, fábulas acima do realismo, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) solapou um gosto diferente no cinema acostumado a Graciliano Ramos e Euclides da Cunha. A contenção do primeiro – mot juste dos trópicos – e o rigor obsessivo-compulsivo do segundo – complexo de informações para um tratado – são modificadas a favor de uma linha supra-fantástica, que ao mesmo tempo desse conta da onipresente busca pela “brasilidade”.
Afinal, Glauber Rocha não escreveu, dirigiu e reorganizou diversas vezes a obra – desde fins dos anos 50 – impunemente. Queria um atestado em que coubesse toda sua geração, em que se deflagrasse a releitura da produção fílmica brasileira, em que lhe consolidasse posição de liderança e, num estampido, tornasse o movimento suprassumo internacional.
No esquema de grandiosidade, as Bachianas de Villa-Lobos são douradas pela canção de Sérgio Ricardo em acento de cordel, letra de Glauber. O primeiro instantâneo de Manoel (Geraldo Del Rey), com feições da era silenciosa, remete-se à amplidão do John Ford clássico – subvertido pela absoluta ausência de virilidade do caubói. Se tomarmos o western enquanto narrativa espetacular, fundante, a nesga de semelhança retorna. Especialmente no momento da morte da mãe por capangas – o rapaz assassinara o chefe. Enterra-a sem jurar qualquer justiça pragmática – a similitude aqui se afasta –, preferindo, não sem resistência da esposa Rosa (Yoná Magalhães), entregar-se ao protótipo de Antônio Conselheiro, o nordestiníssimo Santo Sebastião (Lídio Silva, carpinteiro que trabalhara em “Barravento”, filme anterior e estréia de Glauber). Após Sebastião, juntam-se ao bando de Corisco/Cristino (Othon Bastos, substituindo Adriano Lisboa, que não comparecera às filmagens).
Finalmente livres, não se dão conta do que fazer, correm a desembestada – à semelhança dos relatos sobre Lampião, que fascinavam Glauber: durante a matança do Corisco verídico, um casal de sobreviventes foragira. Na tela, a corrida e a aparição balsâmica do mar deixam a metáfora de o "povo" tomar a rédea da situação pela unha, desprezando os delírios alheios. Corisco, a violência anárquica; Sebastião, o excesso religioso. O filme conclama à ação prática, à tomada de posição ultra-materialista, contrariando a entourage simbólica que norteia o enredo.
Curioso notar que, por um achado das circunstâncias, Othon Bastos dublou o Beato – a falta de formação profissional de Lídio criou peso inevitável. A situação joga sutileza extra na composição dos personagens, como se a ressaltar que Corisco e Sebastião, mesma voz, fossem espectros da mesma moeda, um imbuído do outro. Guardariam igual semente de irracionalidade, punem o destino flagelado.
A homilia de Sebastião usa cânticos, preleções messiânicas, promessas da ilha “onde tudo é verde”, “tem água e comida”, “fartura do céu”. O extremismo chega à histeria na grande cena em que Manoel oferta o filho ao Beato, este o sangra, junta o líquido na faca, passa-o depois na testa de Rosa, sinal da cruz. A mulher o golpeia em seguida, aproveitando a desilusão de Manoel, mesmo instante em que os fiéis são dizimados por Antônio das Mortes (Maurício do Valle) – capanga eleito pelo Padre e pelo Latifundiário. O som desconcatenado, massa em desordem, a fotografia e a câmera de Waldemar Lima – criando jogos propositais de sombras em todo o filme – são especialmente felizes nesse entrecho.
Iniciada a segunda parte da história, Corisco surge entre citações de Padim Ciço e Lampião. Batiza Manoel de Satanás, nome másculo de cangaceiro. Pilham, saqueiam, atordoam. Entronizado por São Jorge, Corisco impõe a espada em êxtase, contra o "dragão da maldade" – expressão que, noutros termos, significa a própria miséria. O cartaz antológico – ícone pop dos anos 60 –, desenhado pelo tropicalista Rogério Duarte dá a dimensão do ato.
Corisco traz consigo Dadá (Sonia dos Humildes), que forma com Rosa um núcleo feminino. Chegam a se acariciarem, sensibilidade do roteiro ao demonstrar que a euforia de Corisco e Sebastião – para qual Manoel correu, ouvindo o soluçar da sereia – deixara Rosa como resíduo, a ponto de beijar Corisco ou, acima disto, entregar-se à solidez que representa.
Eisenstein tangenciou essa desintegração típica de Novo Mundo – pobreza, religiosidade, folclore – em “Que Viva Mexico!”. Também encontram-se em “Deus e o Diabo” reminiscências do ancestral “Encouraçado Potemkin”, além da dramaticidade que Glauber assumidamente vira em “Rocco e Seus Irmãos”, de Luchino Visconti. Além dos citados, note-se que o Cego Júlio traz uma onisciência bem mais próxima da estrutura nordestina do que de teatro grego.
Certamente o rol de influências pulula, mas temperadas por injeções do jovem GR, que concluiu o filme aos 25 anos. Alçou vôo grande, condoreiro, como a tal reencarnação de Castro Alves, idéia que defendia – faleceu aos 42, idade que previu por ser o reverso dos 24, em que o conterrâneo evanesceu. No caldo “Deus e o Diabo” percebe-se o culto ao sebastianismo, a São Jorge, além da onipresente dobradinha Igreja-Latifúndio – estes um tanto estanques, sem a relativização moral que o filme joga sobre demais personagens. Manoel, por exemplo, mente a Corisco imputando a Antônio das Mortes o extermínio de Sebastião. O bom selvagem é, antes de tudo, fraco.
A propósito da amoralidade, o corpulento Antônio das Mortes encarna uma das maiores personas do cinema nacional. O que deveria ter de monstruoso se refaz – literalmente, pois a participação de Antônio foi reescrita à última hora, construindo-o como ente dúbio. Jagunço de idéias progressistas, aniquila, espingarda em punho, com olhos na recompensa prometida e igualmente por se oprimir perante a miséria. Mexendo nos tabus retrógrados, na visão dicotômica sobre o papel da vanguarda popular – jagunço mau versus jagunço humanizado –, Antônio beijou as telas numa complexidade que escapa aos slogans míopes. Quase revolucionário, não é o vilão destrambelhado – o latifundiário o é –; antes um híbrido, vulto que dada sua magnitude retorna em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969).
Monte Santo, Cocorobó, Canudos foram locações escolhidas por Glauber. Associou-se ao Banco Nacional de Minas Gerais – de José Magalhães Lins – e às mãos eclesiásticas – agradecimentos, nos créditos, ao Monsenhor Francisco Berenguer. Produção, ainda, de Luiz Augusto Mendes, aliado ao dínamo Jarbas Barbosa. Montagem de Rafael Valverde, presença constante na filmografia cinemanovista – esta, em "Deus e o Diabo" aproveitou a assistência de direção de Paulo Gil Soares e Walter Lima Jr. Equipe mínima, multifuncional, à moda do conveniente cooperativismo.
Competindo em Cannes no ano em que Baleia e "Vidas Secas" flanavam pelo balneário, volta sem o prêmio, sequer o coadjuvante arrebatado pelo "O Cangaceiro" em 1953. Sabe-se que entre o autor e Lima Barreto existem quilômetros de distância – não em termos "evolutivos", por óbvio. Máscara ilusória, o nordestinismo pouco faz para os unirem – o que em Barreto é estruturante, em Glauber provoca bocejos e ira. Barreto deixou irrealizado "O Sertanejo", projeto que poderia avançar na temática e iluminar o ponto de vista com mais calma. Os destinos de ambos se cruzariam, mesmo tênues, depois de mortos: Walter Lima Jr. – colaborador reiterado de Glauber, membro da família – dirigiu o roteiro de "Inocência" (1983), escrito pelo totem da Vera Cruz.
Os rastilhos de pólvora em que Glauber se envolveu – o rechaço a "O Cangaceiro" é apenas fração – confirmam a trajetória colonizadora que tanto o empolgava. Entradas e bandeiras, repovoar uma Panamérica estilística, borrifar especiarias, como o mascate que impõe valores mas sobe à montanha por algum destino inebriado, guardando as tábuas da lei. Caiu no ostracismo, desfrutou de uma segunda volta, redimido pelo além. Apesar dos equívocos posteriores, a serem colocados em perspectiva, neste "Deus e o Diabo na Terra do Sol" construiu a obra fulminante, que os próximos e os afastados da "onda nova" devem conhecer com fôlego. Cogitar do contrário, fechando-se no puro preconceito ou no endeusamento leviano, implica em autofagia, esse crime déspota que o anseio crítico não deixa mais persistir.
Afinal, Glauber Rocha não escreveu, dirigiu e reorganizou diversas vezes a obra – desde fins dos anos 50 – impunemente. Queria um atestado em que coubesse toda sua geração, em que se deflagrasse a releitura da produção fílmica brasileira, em que lhe consolidasse posição de liderança e, num estampido, tornasse o movimento suprassumo internacional.
No esquema de grandiosidade, as Bachianas de Villa-Lobos são douradas pela canção de Sérgio Ricardo em acento de cordel, letra de Glauber. O primeiro instantâneo de Manoel (Geraldo Del Rey), com feições da era silenciosa, remete-se à amplidão do John Ford clássico – subvertido pela absoluta ausência de virilidade do caubói. Se tomarmos o western enquanto narrativa espetacular, fundante, a nesga de semelhança retorna. Especialmente no momento da morte da mãe por capangas – o rapaz assassinara o chefe. Enterra-a sem jurar qualquer justiça pragmática – a similitude aqui se afasta –, preferindo, não sem resistência da esposa Rosa (Yoná Magalhães), entregar-se ao protótipo de Antônio Conselheiro, o nordestiníssimo Santo Sebastião (Lídio Silva, carpinteiro que trabalhara em “Barravento”, filme anterior e estréia de Glauber). Após Sebastião, juntam-se ao bando de Corisco/Cristino (Othon Bastos, substituindo Adriano Lisboa, que não comparecera às filmagens).
Finalmente livres, não se dão conta do que fazer, correm a desembestada – à semelhança dos relatos sobre Lampião, que fascinavam Glauber: durante a matança do Corisco verídico, um casal de sobreviventes foragira. Na tela, a corrida e a aparição balsâmica do mar deixam a metáfora de o "povo" tomar a rédea da situação pela unha, desprezando os delírios alheios. Corisco, a violência anárquica; Sebastião, o excesso religioso. O filme conclama à ação prática, à tomada de posição ultra-materialista, contrariando a entourage simbólica que norteia o enredo.
Curioso notar que, por um achado das circunstâncias, Othon Bastos dublou o Beato – a falta de formação profissional de Lídio criou peso inevitável. A situação joga sutileza extra na composição dos personagens, como se a ressaltar que Corisco e Sebastião, mesma voz, fossem espectros da mesma moeda, um imbuído do outro. Guardariam igual semente de irracionalidade, punem o destino flagelado.
A homilia de Sebastião usa cânticos, preleções messiânicas, promessas da ilha “onde tudo é verde”, “tem água e comida”, “fartura do céu”. O extremismo chega à histeria na grande cena em que Manoel oferta o filho ao Beato, este o sangra, junta o líquido na faca, passa-o depois na testa de Rosa, sinal da cruz. A mulher o golpeia em seguida, aproveitando a desilusão de Manoel, mesmo instante em que os fiéis são dizimados por Antônio das Mortes (Maurício do Valle) – capanga eleito pelo Padre e pelo Latifundiário. O som desconcatenado, massa em desordem, a fotografia e a câmera de Waldemar Lima – criando jogos propositais de sombras em todo o filme – são especialmente felizes nesse entrecho.
Iniciada a segunda parte da história, Corisco surge entre citações de Padim Ciço e Lampião. Batiza Manoel de Satanás, nome másculo de cangaceiro. Pilham, saqueiam, atordoam. Entronizado por São Jorge, Corisco impõe a espada em êxtase, contra o "dragão da maldade" – expressão que, noutros termos, significa a própria miséria. O cartaz antológico – ícone pop dos anos 60 –, desenhado pelo tropicalista Rogério Duarte dá a dimensão do ato.
Corisco traz consigo Dadá (Sonia dos Humildes), que forma com Rosa um núcleo feminino. Chegam a se acariciarem, sensibilidade do roteiro ao demonstrar que a euforia de Corisco e Sebastião – para qual Manoel correu, ouvindo o soluçar da sereia – deixara Rosa como resíduo, a ponto de beijar Corisco ou, acima disto, entregar-se à solidez que representa.
Eisenstein tangenciou essa desintegração típica de Novo Mundo – pobreza, religiosidade, folclore – em “Que Viva Mexico!”. Também encontram-se em “Deus e o Diabo” reminiscências do ancestral “Encouraçado Potemkin”, além da dramaticidade que Glauber assumidamente vira em “Rocco e Seus Irmãos”, de Luchino Visconti. Além dos citados, note-se que o Cego Júlio traz uma onisciência bem mais próxima da estrutura nordestina do que de teatro grego.
Certamente o rol de influências pulula, mas temperadas por injeções do jovem GR, que concluiu o filme aos 25 anos. Alçou vôo grande, condoreiro, como a tal reencarnação de Castro Alves, idéia que defendia – faleceu aos 42, idade que previu por ser o reverso dos 24, em que o conterrâneo evanesceu. No caldo “Deus e o Diabo” percebe-se o culto ao sebastianismo, a São Jorge, além da onipresente dobradinha Igreja-Latifúndio – estes um tanto estanques, sem a relativização moral que o filme joga sobre demais personagens. Manoel, por exemplo, mente a Corisco imputando a Antônio das Mortes o extermínio de Sebastião. O bom selvagem é, antes de tudo, fraco.
A propósito da amoralidade, o corpulento Antônio das Mortes encarna uma das maiores personas do cinema nacional. O que deveria ter de monstruoso se refaz – literalmente, pois a participação de Antônio foi reescrita à última hora, construindo-o como ente dúbio. Jagunço de idéias progressistas, aniquila, espingarda em punho, com olhos na recompensa prometida e igualmente por se oprimir perante a miséria. Mexendo nos tabus retrógrados, na visão dicotômica sobre o papel da vanguarda popular – jagunço mau versus jagunço humanizado –, Antônio beijou as telas numa complexidade que escapa aos slogans míopes. Quase revolucionário, não é o vilão destrambelhado – o latifundiário o é –; antes um híbrido, vulto que dada sua magnitude retorna em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969).
Monte Santo, Cocorobó, Canudos foram locações escolhidas por Glauber. Associou-se ao Banco Nacional de Minas Gerais – de José Magalhães Lins – e às mãos eclesiásticas – agradecimentos, nos créditos, ao Monsenhor Francisco Berenguer. Produção, ainda, de Luiz Augusto Mendes, aliado ao dínamo Jarbas Barbosa. Montagem de Rafael Valverde, presença constante na filmografia cinemanovista – esta, em "Deus e o Diabo" aproveitou a assistência de direção de Paulo Gil Soares e Walter Lima Jr. Equipe mínima, multifuncional, à moda do conveniente cooperativismo.
Competindo em Cannes no ano em que Baleia e "Vidas Secas" flanavam pelo balneário, volta sem o prêmio, sequer o coadjuvante arrebatado pelo "O Cangaceiro" em 1953. Sabe-se que entre o autor e Lima Barreto existem quilômetros de distância – não em termos "evolutivos", por óbvio. Máscara ilusória, o nordestinismo pouco faz para os unirem – o que em Barreto é estruturante, em Glauber provoca bocejos e ira. Barreto deixou irrealizado "O Sertanejo", projeto que poderia avançar na temática e iluminar o ponto de vista com mais calma. Os destinos de ambos se cruzariam, mesmo tênues, depois de mortos: Walter Lima Jr. – colaborador reiterado de Glauber, membro da família – dirigiu o roteiro de "Inocência" (1983), escrito pelo totem da Vera Cruz.
Os rastilhos de pólvora em que Glauber se envolveu – o rechaço a "O Cangaceiro" é apenas fração – confirmam a trajetória colonizadora que tanto o empolgava. Entradas e bandeiras, repovoar uma Panamérica estilística, borrifar especiarias, como o mascate que impõe valores mas sobe à montanha por algum destino inebriado, guardando as tábuas da lei. Caiu no ostracismo, desfrutou de uma segunda volta, redimido pelo além. Apesar dos equívocos posteriores, a serem colocados em perspectiva, neste "Deus e o Diabo na Terra do Sol" construiu a obra fulminante, que os próximos e os afastados da "onda nova" devem conhecer com fôlego. Cogitar do contrário, fechando-se no puro preconceito ou no endeusamento leviano, implica em autofagia, esse crime déspota que o anseio crítico não deixa mais persistir.
10 comentários:
Olha, O Cangaceiro é um grande filme. Entre Glauber e Lima Barreto, fico com este último, sem dúvida.
belo texto,visão que suscita interessantes debates. Duas observações. A influência de Zé Lins do Rego nesse filme é constantemente neglicenciada, no entanto,Glauber se apoiou bastante em dois livros desse grande escritor para construir o roteiro. A primeira parte deve muito a Pedra Bonita e a segunda parte bebe na sua continuação Cangaceiros, livros que podem ser lidos como um só. Portanto, o sertão literário está la. Aliás, eu Considero Deus e o Diabo um filme monumetal, entre outras coisas por se lançar nesse diálogo com formas supra-cinematográficas( Brecht, literatura de cordel, Zé Lins) que se diluem na autoria glauberiana. Sobre o intercambio com o Western, me parece que a referência do cowboy não é aquele heróico da primeira fase fordiana e sim o protagonista de Rastros de Odio, o western psicológico que surge não via Manoel, mas sim por Antonio das Mortes com sua ambivalência e inadequação que o colocam a margem da história mas como agente decisivo dela. Discordo que o nordestes de Glauber provoque bocejos. O que seus devotos fizeram dele sim,me dá sono.
Alexandre, daí a necessidade de não partir pra linha "evolutiva" entre os dois filmes.
Olá, Rodrigo, concordo com a influência do Zé Lins do Rego. Escrevi o texto pensando em colocar um parágrafo sobre a comparação com "O Cangaceiro", que teve diálogos escritos por Rachel de Queiroz, colega de geração do Zé Lins. Mas iria alongar muito, podendo perder o foco da discussão. Em breve publicarei um texto sobre o "Menino de Engenho", do Walter Lima Jr. (imediatamente posterior ao "Deus e o Diabo"), com mais espaço para aprofundar nesse campo sobre o escritor. O início do "Deus e o Diabo", o primeiro instantâneo de Manuel, me remete ao que já estava no Ford antes de "Rastros de Ódio", na fase de Harry Carey Sr. Entendo a relação com "Rastros de Ódio", o incômodo causado pelo antagonista, vide ainda "O Homem que matou o fascínora". Nele se toca inclusive na questão das fábulas criadas pelo velho oeste. Quanto à citação sobre os bocejos, toquei na celeuma entre os dois, reiterada por Glauber: o que é estruturante para Lima Barreto, em GR cria bocejos e ira. Ou seja, há uma desqualificação por parte de Glauber a respeito de Lima. "O Sertanejo" poderia ter dado uma chance de se esmiuçar melhor o ponto de vista do diretor.
Sempre tive cá comigo que a bronca do Glauber com o Lima se devia a uma questão muito simples: Lima fez antes algumas coisas que o Glauber sonhava fazer desde a infância: 1) um western sobre cangaceiros; 2) um enorme sucesso de bilheteria: 3) um filme premiado em Cannes. Claro, pesa também essa vontade de recontar a história do cinema brasileiro do ponto de vista dele. Inconscientemente, Glauber acabou fugindo dos itens 1 e 2 em DEUS E O DIABO, e acabou se concentrando no item 3. Não sou partidário dos paralelos de DEUS E O DIABO com o western, seja da primeira fase ou não de John Ford (lembrando, de qualquer forma, que o western é muito mais que isso). Para mim, Antonio das Mortes acabou parecendo uma figura de western meio por acaso, algo que brotou do inconsciente do Glauber, algo que ele não conseguiu represar. Acho que Antonio das Mortes é a grande criação do Glauber, e ela é uma criação do acaso (pelo menos como acabou se manifestando na tela). Em O DRAGÃO DA MALDADE, aí sim a coisa muda de figura. É quando Glauber se dá conta que após o fracasso de TERRA EM TRANSE e do próprio DEUS E O DIABO, não poderia mais fugir da sua criação mais popular. Aí sim Glauber entra no jogo do Lima, fazendo 1) um western com cangaceiros; 2) um enorme sucesso de bilheteria; 3) um filme premiado em Cannes. Tenho cá comigo que o sucesso desse filme enlouqueceu Glauber, o cineasta que queria conscientizar "o povo" e acabou lucrando com um filme maniqueísta que "o povo" acabou curtindo. Há de se observar os títulos: DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL não põe o bem contra o mal para brigar numa terra sem lei (a definição lapidar do western). Manuel se junta a deus, depois ao diabo, e segue em frente. É um drama. Já O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO traz o confronto em seu título. O bem contra o mal numa terra sem lei. Um western. Pouca gente lembra, mas o Glauber fez um artigo nos anos 1980 chamando Lima de "o maior cineasta vivo". Um reconhecimento tardio, mas válido. Mas obviamente, as víúvas glauberianas preferem sempre se lembrar dos ataques enciumados a O CANGACEIRO. Perdoem-me pelo post longo, mas taí uma relação (Glauber x Lima) que realmente mexe comigo. Parece-me exemplar sobre os descaminhos da historiografia oficial do cinema brasileiro...
Rodrigo, a pendenga Glauber x Lima é clássica e ressaltada pelo Glauber no "Revisão crítica" com todas as cores. David Neves enviou uma carta no leito de morte para Anselmo Duarte. Aproximações tardias fazem parte da vida, mas a crítica deve ter um olhar pragmático às etapas. Como ocorreram, por quê, tirando delas o caldo do que se possa estudar e dizer. Em relação ao western, mantenho a aproximação, sem reduzi-lo a confrontamento puro e simples entre bem e mal na terra sem lei. Como apontei no texto, trata-se de narrativa fundante, marcada pela morte, pela renovação através da força, pela solidão, pela simbiose com a paisagem. Este material John Ford soube traduzir, tornou-se epítome. A ele se juntam outros que também não viram o tema de forma estanque: o dúbio D. W. Griffith é um deles, nos lembra que o cinema não começa no sonoro. GR subverteu Ford, influência específica que assumia abertamente, trazendo características próprias no caminho da transcendência, da Panamérica. As razões que levaram Glauber ao desespero no fim da vida, sentindo-se injustiçado, perseguido, não podem ser reputadas ao fenômeno de Antonio das Mortes ou à crise com Lima Barreto. O momento político não era dos mais favoráveis, as crises pessoais também não resumiam a Lima (vide Ruy Guerra) e o papel da liderança foi se esfacelando à medida em que cada peça individual tomava seu rumo, resultado afinal de todo movimento artístico. Ao menos podemos concordar no básico: ambos gostamos do filme rs Ainda que por motivos e orientações diferentes.
Andrea, não sou familiar com os filmes mudos do John Ford por isso nao poderia opinar sobre o Harry Carey pai,mas concordo sobre o Homem que Matou o Facinora. Acredito que essa interface se resolve até melhor em o Dragão da Maldade, entre outras coisas na mobilidades dos conceitos nos títulos, quem é afinal o Dragão da maldade e quem matou Liberty Valance? a aliança entre o matador de cangaceiros e o professor, pode ser vista como uma paráfrase da ligação entre John Wayne e James Stewart, inclusive nos antagonismos. É curioso que tanta gente se lembre daquela frase como emblema da filosofia fordiana (quando a realidade torna-se lenda imprima-se a lenda) porque Ford imprimiu a realidade. Ele mostra simbolicamente como uma civlização inteira se ergueu em cima de mentiras e nesse processo esvaziou mitos que ele próprio criou. Glauber também confronta a fábula de um nordeste mítico com simbolos de uma modernidade onde não existe lugar nem para Antonio das Mortes, nem para Coyrama.
Rodrigo, quanto mais dúbios, os personagens acabam ganhando mesmo uma sobrevida impressionante. Esse é o nó que o cinema água com açúcar não consegue desenrolar e fica patinando, sem criar empatia (que não necessariamente significa simpatia). O Antonio das Mortes desconstruiu o bandido óbvio, apesar do aspecto sombrio, matador de arruaceiro, embalado no pacote de mitos. Acima da realidade que costumava ser um dogma para o cinema. Vejo a frase do Ford nesse sentido. Bater na realidade pela transversal, mexendo primeiro em símbolos que diziam muito sobre os conflitos que à primeira vista pareciam fáceis demais.
Interessante o debate que o post rendeu, o Rodrigo levantou questões pertinentes, mas como a Andrea afirmou, o Glauber assumia abertamente essa influência do Ford e de westerns no Deus e o Diabo. Num debate com outras figuras importantes da época (e que seria reproduzido em livro), o cineasta declarou: "Para desgosto de muita gente e de você (Alex Vianny), a fita tem muita influência do western. Tem muita coisa de John Ford, que vocês não gostam mas eu adoro, e o Antonio das Mortes é uma figura de citação fordiana mesmo: a forma de ele aparecer, a forma de ele andar, o uso da paisagem, a aplicação da balada. Até o massacre tem muita gente metida." Vejo Deus e o Diabo com influências do faroeste clássico de Ford, enquanto que O Dragão da Maldade tem mais do faroeste revisionista da época, de Peckinpah (também influência confessa) e do western-spaghetty, com suas cores fortes e doses mais fartas de sangue e violência. Sem dúvida foi o grande momento do baiano, pena que em seguida ele partiria para um exílio que o tornaria errante em todos os sentidos, com muitas vezes dali em diante a polêmica suplantando o próprio cinema.
Abs.
Bela lembrança, Vlademir. O livro, provavelmente "O Processo do Cinema Novo", do Alex Viany, é uma boa introdução sobre o tema. Essa dupla com o "Dragão da Maldade" é um prolongamento que vou aprofundar no texto sobre o filme. E gira em torno da construção do Antonio das Mortes, que marcou a trajetória do Glauber antes de ir pros anos 70 e ser enredado na própria lenda. Até porque nada no Glauber foi sussurrado, nem os erros, nem os acertos. Eram em grande escala. Abs
"pena que em seguida ele partiria para um exílio que o tornaria errante em todos os sentidos, com muitas vezes dali em diante a polêmica suplantando o próprio cinema."
O Leão de Sete-Cabeças, Câncer e Di são alguns dos filmes mais impressionantes assinados por um brasileiro..
Postar um comentário