quinta-feira, novembro 25, 2010

Vidas Secas


Pobre coitado do homem feudal, o encurralado que temia a chuva, o vizinho, o ludibriado que gritava antes de se jogar numa fogueira e, acaso retornasse vivo, considerava-se abençoado por Deus. Vá lá que a cronologia mudou essa rotina, o ocidente mascou bastante chiclete, viveu de todas as guerras, a guerra, desfez o laço de vassalagem, mas uma corrente ainda agarra o imaginário do mítico Nordeste brasileiro.

É o agreste perdido, enclave injusto, que o geist modernista ungiu à condição de Arcádia, volta ao campo, criando tipos que desaguaram fora da literatura. Lembrança rápida faz citar pérolas do cinema nacional, três delas rodadas quase simultaneamente, na mesma região, parte das equipes freqüentando-se durante o processo: “Os Fuzis” (1963), de Ruy Guerra; “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha; “Vidas Secas” (1963), de Nelson Pereira do Santos.

Somando-se os nordesterns – da Vera Cruz ou não –, as colorações diferentes, encontramos no território a oportunidade de ouro para realizadores do século passado que vez por outra engatavam uma premissa messiânica, como se a denunciar e a um só tempo combater. Colocada na lente de aumento, a denúncia atacava o servilismo do país, o “porvir” que haveria de ser construído, tal como no letreiro inicial urgido por NPS: realidade que “nenhum brasileiro digno pode mais ignorar”.

O convite ao levante não gerou qualquer desconfiança para transpor “Vidas Secas” com respeito absoluto, sem tirar nem por sequer uma vírgula do original de Graciliano Ramos – quadro do PCB, perseguido pela ditadura getulista. Fidelidade aceita ideologicamente, e sobretudo incensada, tratou de um caos que a escrita de 1938 deixou próxima de 1963. As décadas de distância entre livro e filme fizeram-nos irmãos, pressupostos similares.

Graciliano Ramos contou com José Olympio para a primeira edição. Nelson Pereira, com a produção de Herbert Richers – pacto celebrado à época de “Boca de Ouro” (1962) –, Luiz Carlos Barreto – também fotógrafo da luz propositadamente estourada, ao lado de José Rosa – e Danilo Trelles. O roteiro de Nelson passou pela consultoria de Waldemar Lima, Clovis Ramos, Rubens Amorim. Lygia Pape assina os letreiros que não trazem qualquer indício de virtuose e mantêm o minimalismo do longa-metragem. Poucas falas, gestos bruscos, inferências, a animalidade que Graciliano Ramos concedia às personagens – Fabiano sentia-se bem mais bicho do que homem.

Fabiano (Átila Iório) é o pai, Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), a mãe dos “dois meninos” que vagam pela caatinga até encontrarem um pouso, vendendo a alma ao latifundiário (Joffre Soares). Família composta ainda por Baleia, a cachorrinha acompanhada pela câmera, como na seqüência de sua morte – sacrificada por Fabiano, em razão da doença que afastava da utilidade para a tribo. O ponto de vista do animal marca o momento antológico, quando percebe que chegou perto do fim. Baleia fez sucesso considerável, a ponto de ser levada como estrela ao Festival de Cannes de 1964 – “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo” competiram –, para comprovar que não havia sido assassinada. Afinal, a artista estava viva, a personagem é quem havia falecido.

Outra estreante, Maria Ribeiro foi arrebanhada numa luta difícil, com intercessão de Richers. Maria, que trabalhava nos bastidores do laboratório da Líder, demorou em aceitar o convite, ingressar efetivamente na vida artística. Conseguiu atuação convincente, o mesmo não se diga do veteraníssimo Atila Iório, de prosódia carioca, biotipo alongado, forte, diferente do esquálido retirante. Melhor sorte lhe aguardou no clássico “Ódio” (1977), de Carlo Mossy, que subverteu o cânone da ultra-violência.

O imaginário de Nelson Pereira dos Santos adequa-se, conforme ressaltado pelo autor , à estrutura conferida por Graciliano para o texto; os plano físico e psicológico sem adornos. Grande estratégia de Nelson ao usar o zumbido duro das rodas do carro de boi, fazendo-o presente – bem como o que evoca – sem estar exatamente no centro das ações. Em quebra de expectativa para a pureza de determinada cena, Sinhá Vitória mata um papagaio que corrupiava por perto, ao tomá-lo de estalo.

Claro está que as nuances típicas da esfera literária – aquela em que há co-autoria individualizada entre escritor e leitor – se perdem, algo aliás esperado. Baleia, a atriz, não consegue traduzir o desconforto pelo carinho excessivo de um dos garotos, que apertava-lhe na falta de carinho dos pais. No texto, Graciliano comenta que o bicho sente antes de mais nada o cheiro de um osso, com alguma carne, vindo da cozinha. O espectador pode ceder ao encanto romântico do afago.

Quanto à solidão das crianças, sabe-se que elas sofrem da liturgia da caatinga, a ausência de pedagogia que “Infância” – livro autobiográfico de Graciliano – deixou clara. Maus tratos, atos duros, destituídos de complacência, piorados no caso pela pobreza absoluta, aspecto que o escritor não vivenciou. Pelas tantas, Fabiano e Sinhá monologam, a fala de um sobrepondo-se à do outro, os olhares vidrados, a loucura surgindo pelo desgaste fisiológico, a fome, o sol, os pés curtidos. Nesta sensação de inferno, o menino maior conhece a palavra ao ouvi-la da curandeira chamada para tratar do pai, que havia sido esfolado pelo volante (Orlando Macedo). “O que é inferno? O que é inferno? Inferno. Inferno”. Em uma tomada de consciência, filosoficamente o menino associa o conceito ao lugar, circuito de pensamento que o diretor apresenta nitidamente à platéia.

A intolerância se espalha na corrupção estatal, no achaque de impostos, nas chibatadas em Fabiano ao abandonar um carteado, quando aguarda a esposa sair da novena na igreja. O fazendeiro (Joffre Soares) complementa a ladinice que o rapaz sofre por todos os lados, dando-lhe a noção típica do conceito de “mais valia” – em alta na geração de Graciliano –, com o cálculo feito para roubar o vaqueiro. No casarão, a filha tem aulas de violino, o café da manhã é lauto, para lá migram os pífaros, os folguedos, numa pajelança ao chefe. Ponto positivo, Fabiano não é tão puro quanto o bom selvagem, não sofre da injustiça sem grunhir alguma truculência – “não sou negro” é o clamor para que o patrão lhe respeite. Essa confusão de disciplinas, de atraso sepulcral, recheada por elementos antropológicos – a igreja, a violência, a seca – fazem do livro-filme um documentário que se quis primor de força, de agressividade. Adotada pelo Brasil afora, a idéia subjacente chega com facilidade após anos de reportagens, incluindo o mercado livre da televisão.

Malogrado de início, “Vidas Secas” enxergou a luz depois de uma parada meteorológica, devido às chuvas que estragaram o cronograma de Nelson e fizeram-no improvisar “Mandacaru Vermelho” (1961) em seu lugar. Inevitável que tenha se tornado um ícone, por conta das referências que manipula, caríssimas à ordem do dia. Em termos estilísticos, está em sua obra como episódio imediatamente anterior ao “ciclo de Paraty” – “Azyllo Muito Louco” (1969-1971), “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1970), “Quem É Beta?” (1973), rodados na cidade fluminense – com alegorias e poesia diferentes, refrescantes em relação ao neorealismo fundamental que estabeleceu os primeiros passos do diretor. Enquanto o futuro não vinha, os agradecimentos da equipe à população do Minador do Negrão e de Palmeira dos Índios – terra natal de Graciliano Ramos – deixam o pacto com o entorno que se multiplicou exponencialmente nas engrenagens do audiovisual brasileiro.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Quando eu li vidas secas eu achei de um coloquialismo tão simplista,que jamais pudesse imaginar que se tratava de um clássico.quanto ao filme não tive acesso ainda.