Walter Lima Jr. separou umas bananas de dinamite para transpor o obstáculo terrível, gigante. Deu tratos ao primeiro longa-metragem, “Menino de Engenho” (1965), na rebarba de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) – entidade mítica de Glauber Rocha –, em que participara como segundo diretor. Lidando com a herança recente, o batismo de fogo trouxe outro aspecto problemático: o embrião da Mapa Filmes – leia-se, mais uma vez, GR – produziu a obra. Os indícios de uma industrialidade familiar poderiam ser perigosos, sobretudo pelo casamento de Walter com a atriz Anecy Rocha – também estreante –, irmã de Glauber. No meio das prováveis acusações de nepotismo, somadas à dor e à delícia de dialogar com esposa e cunhado, o resultado final se impôs suavemente.
Fortalecido pelas batalhas na crítica – foi companheiro de redação de Antonio Moniz Vianna, no “Correio da Manhã” –, Lima Jr. decidiu adaptar, dirigir e roteirizar o livro igualmente estreante de José Lins do Rego, lançado em 1932. Fração do “ciclo da cana-de-açúcar” pretendido pelo escritor, “Menino de Engenho” invoca o naturalismo habitado no nordeste brasileiro – Várzea do Paraíba, locações do filme no exato engenho onde viveu José Lins – com o aroma firme das memórias.
Oralidade, lendas, retratos do anacronismo de sinhôs monarquistas na Primeira República tentando guardar plantações quase mortas. As narrativas, literária e cinematográfica, seguem a linha da inexorabilidade do tempo – “Pois foi essa mesma fera/ que engole moça e criança/ que fez o barão, regente/ e a baronesa, lembrança”, epígrafe de Carlos Pena Filho, escolhida por WLJ. Utilizam a infância como instrumento para demonstrar o reinado de um garoto (Carlinhos, Sávio Rolim) que se torna todos, aos olhos da platéia.
Corre de calças curtas pelo matagal, acompanha as enchentes, os relatos dos negros escravizados apesar de libertos, a cadeira de balanço estalando na varanda, a interdição adulta qualquer. Crianças não costumam assistir ao assassinato da mãe pelo pai – tal como Carlinhos –, mas independente dessa limitação no plano fático, a infância surge como imã inaugural, estendendo-se no infinito. Período às vezes triste, cruel, bárbaro, cheio de grandiosidade – o avô, Coronel José Paulino (Rodolfo Arena), espécie de semideus – e medo – do amor frustrado, talvez correspondido, como o de Tia Maria (Anecy Rocha), substituta de mãe boa.
A morte da mãe de Carlos é, aliás, resolvida de maneira extremamente hábil na montagem de João Ramiro Mello. Ênfase no silêncio, mãos do garoto roçando a parede, poça de sangue limpada pelo pano, apitos de trem, a câmera violando galpões abandonados e demonstrando o futuro de Carlos – que sabemos passado, dada a reconstituição histórica –, transformado em presente à medida em que avança.
WLJ optou por letrificar as canções – de Pedro Santos –, ritual semelhante ao de “Deus e o Diabo”, dando as senhas para o filme. Vez por outra Villa-Lobos invade o bucolismo, em tom bem menos extravasado do que o de GR. Relance de um cego sentado no meio-fio, imagem que o diretor reputa a resquício da obra anterior – apesar de nesta o cego Júlio ter uma onisciência que não cabe na métrica de Walter, centrado na interiorização e raramente aberta a apelos. Humberto Mauro ecoa de maneira categórica na construção da nostalgia, seja o da era de Cataguases, seja o dos institucionais do INCE. “Meus Oito Anos” idem, ponte com Casimiro de Abreu – Mauro lhe fez um curta – no alumbramento.
A fidelidade ao livro não bateu nos extremos, na mera transcrição do texto. Apoiado na consultoria do jornalista Virginius da Gama e Melo, bem como em entrevistas feitas com a tia de José Lins, Walter Lima Jr. criou um recorte seletivo. O desespero do menino, solitário, filho do louco homicida, criado pelos Tio Juca (Geraldo Del Rey) e Tia Maria, se altera perante o livro. Além de cortejar o cangaceiro Antônio Silvino – trecho intocado por Lima Jr. –, cai de maneira muito mais brutal no clamor do sexo. Os exibidores cercaram o filme de uma curiosa estratégia, dando ênfase aos escândalos que não são vistos em cena. Contam-se selinhos, cenas breves de acasalamento entre, digamos, vegetais e os moleques. Estranho que a libido infantil ainda aterrorizasse – ainda aterroriza –, mesmo sendo constatação demodê.
Piques pelos corredores, convívio de Carlos com os primos. Invadem a igreja, profanam santos, fingem confissão entre si, tiram umas com o aloprado Primo Vitorino – idoso, gordote andando a burrico. Espuma de barba imaginária, balanço na rede, idas à escola, nova morte – da prima Lili –, antes de chegar à terceira: a despedida de tia Maria, que sai do engenho para o casório. Sacrifício do carneiro prometido por Tio Juca como animalzinho de estimação. Quebra de confiança, ensimesmamento do guri roceiro que vê as primas de Recife passarem temporada. Uma delas comete uma estripolia bem pueril, continuando o processo de iniciação amorosa do menino.
Os primos se vão, Carlos partirá. Hora aguardada, clímax em que o adeus não é só aos que acenam ou correm pela colina, esgueirando-se para verem o trem. A pá de cal fica para a estabilidade conquistada nos modos, nos lugares, na fase enterrada, que se abre para uma nova.
Os equívocos em “Menino de Engenho” devem-se a questões de continuidade – compartilhadas com a montagem, como na rápida transição entre o luto pela prima e as brincadeiras com os demais garotos. A dublagem carioca prejudica um tanto – em especial quando misturada à prosódia da região –, aspecto porém afastável, submergindo no intento do diretor. O filme vence ao driblar a pieguice, concretizar a saudade. Saudade que toma o futuro em “Brasil Ano 2000” (1969), projeto seguinte, no córner do ascenso setentista, quando Walter Lima Jr. migra para o desbunde, mescalina de uma nova ficção.
Fortalecido pelas batalhas na crítica – foi companheiro de redação de Antonio Moniz Vianna, no “Correio da Manhã” –, Lima Jr. decidiu adaptar, dirigir e roteirizar o livro igualmente estreante de José Lins do Rego, lançado em 1932. Fração do “ciclo da cana-de-açúcar” pretendido pelo escritor, “Menino de Engenho” invoca o naturalismo habitado no nordeste brasileiro – Várzea do Paraíba, locações do filme no exato engenho onde viveu José Lins – com o aroma firme das memórias.
Oralidade, lendas, retratos do anacronismo de sinhôs monarquistas na Primeira República tentando guardar plantações quase mortas. As narrativas, literária e cinematográfica, seguem a linha da inexorabilidade do tempo – “Pois foi essa mesma fera/ que engole moça e criança/ que fez o barão, regente/ e a baronesa, lembrança”, epígrafe de Carlos Pena Filho, escolhida por WLJ. Utilizam a infância como instrumento para demonstrar o reinado de um garoto (Carlinhos, Sávio Rolim) que se torna todos, aos olhos da platéia.
Corre de calças curtas pelo matagal, acompanha as enchentes, os relatos dos negros escravizados apesar de libertos, a cadeira de balanço estalando na varanda, a interdição adulta qualquer. Crianças não costumam assistir ao assassinato da mãe pelo pai – tal como Carlinhos –, mas independente dessa limitação no plano fático, a infância surge como imã inaugural, estendendo-se no infinito. Período às vezes triste, cruel, bárbaro, cheio de grandiosidade – o avô, Coronel José Paulino (Rodolfo Arena), espécie de semideus – e medo – do amor frustrado, talvez correspondido, como o de Tia Maria (Anecy Rocha), substituta de mãe boa.
A morte da mãe de Carlos é, aliás, resolvida de maneira extremamente hábil na montagem de João Ramiro Mello. Ênfase no silêncio, mãos do garoto roçando a parede, poça de sangue limpada pelo pano, apitos de trem, a câmera violando galpões abandonados e demonstrando o futuro de Carlos – que sabemos passado, dada a reconstituição histórica –, transformado em presente à medida em que avança.
WLJ optou por letrificar as canções – de Pedro Santos –, ritual semelhante ao de “Deus e o Diabo”, dando as senhas para o filme. Vez por outra Villa-Lobos invade o bucolismo, em tom bem menos extravasado do que o de GR. Relance de um cego sentado no meio-fio, imagem que o diretor reputa a resquício da obra anterior – apesar de nesta o cego Júlio ter uma onisciência que não cabe na métrica de Walter, centrado na interiorização e raramente aberta a apelos. Humberto Mauro ecoa de maneira categórica na construção da nostalgia, seja o da era de Cataguases, seja o dos institucionais do INCE. “Meus Oito Anos” idem, ponte com Casimiro de Abreu – Mauro lhe fez um curta – no alumbramento.
A fidelidade ao livro não bateu nos extremos, na mera transcrição do texto. Apoiado na consultoria do jornalista Virginius da Gama e Melo, bem como em entrevistas feitas com a tia de José Lins, Walter Lima Jr. criou um recorte seletivo. O desespero do menino, solitário, filho do louco homicida, criado pelos Tio Juca (Geraldo Del Rey) e Tia Maria, se altera perante o livro. Além de cortejar o cangaceiro Antônio Silvino – trecho intocado por Lima Jr. –, cai de maneira muito mais brutal no clamor do sexo. Os exibidores cercaram o filme de uma curiosa estratégia, dando ênfase aos escândalos que não são vistos em cena. Contam-se selinhos, cenas breves de acasalamento entre, digamos, vegetais e os moleques. Estranho que a libido infantil ainda aterrorizasse – ainda aterroriza –, mesmo sendo constatação demodê.
Piques pelos corredores, convívio de Carlos com os primos. Invadem a igreja, profanam santos, fingem confissão entre si, tiram umas com o aloprado Primo Vitorino – idoso, gordote andando a burrico. Espuma de barba imaginária, balanço na rede, idas à escola, nova morte – da prima Lili –, antes de chegar à terceira: a despedida de tia Maria, que sai do engenho para o casório. Sacrifício do carneiro prometido por Tio Juca como animalzinho de estimação. Quebra de confiança, ensimesmamento do guri roceiro que vê as primas de Recife passarem temporada. Uma delas comete uma estripolia bem pueril, continuando o processo de iniciação amorosa do menino.
Os primos se vão, Carlos partirá. Hora aguardada, clímax em que o adeus não é só aos que acenam ou correm pela colina, esgueirando-se para verem o trem. A pá de cal fica para a estabilidade conquistada nos modos, nos lugares, na fase enterrada, que se abre para uma nova.
Os equívocos em “Menino de Engenho” devem-se a questões de continuidade – compartilhadas com a montagem, como na rápida transição entre o luto pela prima e as brincadeiras com os demais garotos. A dublagem carioca prejudica um tanto – em especial quando misturada à prosódia da região –, aspecto porém afastável, submergindo no intento do diretor. O filme vence ao driblar a pieguice, concretizar a saudade. Saudade que toma o futuro em “Brasil Ano 2000” (1969), projeto seguinte, no córner do ascenso setentista, quando Walter Lima Jr. migra para o desbunde, mescalina de uma nova ficção.
Um comentário:
Quando jovem li o livro,espero um dia ver o filme,principalmente o acasalamento,digamos,entre vegetais e os moleques.
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