Há zilhões de eons atrás, quando não fazia tempo o LSD era prescrito em consultas odontológicas e Timothy Leary balançava a cabeleira no campus de Harvard, “Geração Bendita” (1971) subiu a serra de Nova Friburgo, interior do estado do Rio de Janeiro.
A cidade dos irmãos Faria encarava agora o frenesi ripongo, um vapor totalmente diferente daquele que Roberto e Reginaldo cometeram na Guanabara, no cabalístico ano de 69. “Os Paqueras” criou um marco na comédia urbana, encheu os cofres da R.F.F. Produções Cinematográficas. Mesma empresa, aliás, que consta nos créditos de “Geração Bendita”: responsável pela parte técnica da gravação.
A trajetória de “Geração Bendita” foi na maior parte das vezes absurda. Começa com esse título em 1971, quando o Serviço de Censura e Diversões Públicas tasca-lhe mais de quarenta minutos de tesouradas. Incômodo fenomenal com os rapazes que nadavam nus, a historinha do paz e amor, a tralha de Woodstock.
Novos trechos são inseridos, para dar algum sentido depois dos cortes. Nada feito: o filme estréia e bizarramente é interditado. Surge a proposta de rebatizá-lo, driblando o adjetivo “bendito” que, afinal, era atribuído ao bando de desocupados.
O esforço matreiro de “É Isso Aí, Bicho!” (1973) não impede o problema. Novos cortes, nova proibição. A censura numas de horror. E apenas durante a década dos 2000 “Geração Bendita/É Isso Aí, Bicho!” consegue uma versão completa em dvd, acompanhada de perto por integrantes das filmagens.
“Uma geração simples, divertida, humana, bela e inteligente. [...] A curtição de um som puro. […] Você precisa conhecer de verdade o que é viver uma filosofia sem preconceitos e sadia.” O marketing incipiente do trailer deixa clara a cartada de ser “o primeiro filme hippie brasileiro”. Produzido pela Meldy Filmes – do francês Meldy Melinger –, auxiliado por Carl Kohler, “Geração Bendita” precisa ser consumido na tranquilidade, sem prestar contas sobre a lógica do roteiro ou dos atores. Necessário deixar fluir todos os “Quiabo's”, na sensorial plenitude.
Sim, os “Quiabo's”. Comunidade irmã dos “Abóbora's”, ambas radicadas em Nova Friburgo. Da “Quiabo's” saiu toda a equipe do filme, incluindo a cenografia e o artesanato, que eram gravados in loco pelo diretor-roteirista-protagonista, Carlos Roberto Bini.
Bini conta como ele, o advogado Carlos (autobiográfico), abandona o emprego. Freak out, sem piedade, vai para a Pasárgada hiperreal. Curte a patrícia (Sônia, Rita de Cássia), que mantém relacionamento de fachada com um bokomoko, do tipo que mamãe aprova.
Carlos e os amigos matam um porquinho, servem o infeliz mamífero como banquete – vegetarianos: fechem os olhos! Meditam, correm de um pastor evangélico. No meio dos baseados, da chuva, da lama, mesmo sem Michael Lang e as ovelhas da fazenda de Max Yasgur, o verde de “Geração Bendita” é mais verde que o normal. Poderiam dizer, de peito aberto, “I can hear the grass grow”.
À medida em que serve de registro interno para o cotidiano setentista, “Geração Bendita” dialoga com os palpites sobre o grupo. Imaginem as avós tricotando, comandando rodadas de biriba e conferindo da janela a passagem dos meliantes hippies. Apesar de as senhoras não aparecerem expressamente dessa maneira, é perceptível o espírito de repreensão. Havia a crença de que os Quiabo's e os Abóbora's traficariam drogas ou corromperiam menores.
Tamanho carinho era, claro, compartilhado pela polícia. Vejamos o mimoso trecho de reportagem do jornal “O Dia”, 27/11/1970:
“Ontem, aproveitando-se de uma cena mais audaciosa, onde os artistas apareciam num jipe psicodélico, de cores berrantes e desenhos avançadíssimos, o delegado entrou em cena e bradou:
- Corta! Está todo mundo em cana. Ninguém sai de cena. As representações serão, agora, no xadrez, mas com artistas carecas e todos de banho tomado, asseados e limpos.”
Como um representante da Johnson & Johnson ou da Procter & Gamble, o delegado Sr. Amil Nei Reichard assume o papel de Mamãe Dolores. Comanda um banho geral, cabeças raspadas.
Reichard não imaginou, mas aconteceria o que geralmente acontece no cinema brasileiro: o quiproquó parou no filme. Bini seguiu a linha de um Carlos Imperial – useiro e vezeiro em aproveitar as palhaçadas que aconteciam fora das telas para promover os seus caudalosos empreendimentos. É assim que, em “Geração Bendita”, um delegado manda para o xilindró o pessoal que andava de jipe, sorridente, contemplando felizes os raios de sol.
A tensão com o aparato estatal lembra um momento de “Os Doces Bárbaros” (1976), dirigido por Jom Tob Azulay. O réu – Gilberto Gil – coloca o braço sobre um dos ombros. O olhar hilariamente foragido, provavelmente em outra galáxia, tempo e espaço, enquanto o juiz o interroga.
Seres humanos normais assistem a mirações dessas e torcem para que um OVNI chegue logo e o desbunde rapte a todos, “numa luz a-ver-me-lhaaa-daaa” – a mesma que Rogério Sganzerla escreveu para “O Bandido da Luz Vermelha” (1968). Mas ao invés do Hendrix que encerra “O Bandido”, “Geração Bendita” usa trilha sonora local. A banda Spectrum, objeto de cobiça de colecionadores por anos a fio, sobretudo antes de a Internet possibilitar o acesso aos velhos lps.
“Geração Bendita” traz, ainda, outros aspectos interessantes. O fetiche em torno da sociedade de consumo e das “convenções sociais” – vide o prólogo que inicia o filme. Algo que é mesclado rapidamente na idéia de subdesenvolvimento. O “subdesenvolvimentismo” que o Luz de Sganzerla prega a toda hora.
Visualmente, Bini tem um achado: o grupo acende uma fogueira com eletrodomésticos – até aí, nada demais. No entanto, mistura a bandeira do próprio movimento hippie (a cruz de Nero), o que por um triz parece iconoclasta. Talvez até de maneira inconsciente. Em outro ouriço, vemos a festa dos rapazes e garotas com a presença de peões que moravam por perto. Um levante popular que o Cinema Novo não cogitou. Mudança nos meios de produção, mas sem gibão, terra seca e gritaria.
Em 1972, Carlos Roberto Bini dirigiu o piauiense “Guru das Sete Cidades”. Nele, Bini consegue espalhar melhor o enredo, os blocos de personagens, os conflitos, fora do lado quase-documental de “Geração Bendita”. Ainda assim, os filmes montam uma vertente peculiar na contracultura brasileira. Tour de force dos bichos que plantavam, colhiam, consumiam, depoimento siderado e anterior à “nova era glacial”, como diria o profeta Tim Maia.
A cidade dos irmãos Faria encarava agora o frenesi ripongo, um vapor totalmente diferente daquele que Roberto e Reginaldo cometeram na Guanabara, no cabalístico ano de 69. “Os Paqueras” criou um marco na comédia urbana, encheu os cofres da R.F.F. Produções Cinematográficas. Mesma empresa, aliás, que consta nos créditos de “Geração Bendita”: responsável pela parte técnica da gravação.
A trajetória de “Geração Bendita” foi na maior parte das vezes absurda. Começa com esse título em 1971, quando o Serviço de Censura e Diversões Públicas tasca-lhe mais de quarenta minutos de tesouradas. Incômodo fenomenal com os rapazes que nadavam nus, a historinha do paz e amor, a tralha de Woodstock.
Novos trechos são inseridos, para dar algum sentido depois dos cortes. Nada feito: o filme estréia e bizarramente é interditado. Surge a proposta de rebatizá-lo, driblando o adjetivo “bendito” que, afinal, era atribuído ao bando de desocupados.
O esforço matreiro de “É Isso Aí, Bicho!” (1973) não impede o problema. Novos cortes, nova proibição. A censura numas de horror. E apenas durante a década dos 2000 “Geração Bendita/É Isso Aí, Bicho!” consegue uma versão completa em dvd, acompanhada de perto por integrantes das filmagens.
“Uma geração simples, divertida, humana, bela e inteligente. [...] A curtição de um som puro. […] Você precisa conhecer de verdade o que é viver uma filosofia sem preconceitos e sadia.” O marketing incipiente do trailer deixa clara a cartada de ser “o primeiro filme hippie brasileiro”. Produzido pela Meldy Filmes – do francês Meldy Melinger –, auxiliado por Carl Kohler, “Geração Bendita” precisa ser consumido na tranquilidade, sem prestar contas sobre a lógica do roteiro ou dos atores. Necessário deixar fluir todos os “Quiabo's”, na sensorial plenitude.
Sim, os “Quiabo's”. Comunidade irmã dos “Abóbora's”, ambas radicadas em Nova Friburgo. Da “Quiabo's” saiu toda a equipe do filme, incluindo a cenografia e o artesanato, que eram gravados in loco pelo diretor-roteirista-protagonista, Carlos Roberto Bini.
Bini conta como ele, o advogado Carlos (autobiográfico), abandona o emprego. Freak out, sem piedade, vai para a Pasárgada hiperreal. Curte a patrícia (Sônia, Rita de Cássia), que mantém relacionamento de fachada com um bokomoko, do tipo que mamãe aprova.
Carlos e os amigos matam um porquinho, servem o infeliz mamífero como banquete – vegetarianos: fechem os olhos! Meditam, correm de um pastor evangélico. No meio dos baseados, da chuva, da lama, mesmo sem Michael Lang e as ovelhas da fazenda de Max Yasgur, o verde de “Geração Bendita” é mais verde que o normal. Poderiam dizer, de peito aberto, “I can hear the grass grow”.
À medida em que serve de registro interno para o cotidiano setentista, “Geração Bendita” dialoga com os palpites sobre o grupo. Imaginem as avós tricotando, comandando rodadas de biriba e conferindo da janela a passagem dos meliantes hippies. Apesar de as senhoras não aparecerem expressamente dessa maneira, é perceptível o espírito de repreensão. Havia a crença de que os Quiabo's e os Abóbora's traficariam drogas ou corromperiam menores.
Tamanho carinho era, claro, compartilhado pela polícia. Vejamos o mimoso trecho de reportagem do jornal “O Dia”, 27/11/1970:
“Ontem, aproveitando-se de uma cena mais audaciosa, onde os artistas apareciam num jipe psicodélico, de cores berrantes e desenhos avançadíssimos, o delegado entrou em cena e bradou:
- Corta! Está todo mundo em cana. Ninguém sai de cena. As representações serão, agora, no xadrez, mas com artistas carecas e todos de banho tomado, asseados e limpos.”
Como um representante da Johnson & Johnson ou da Procter & Gamble, o delegado Sr. Amil Nei Reichard assume o papel de Mamãe Dolores. Comanda um banho geral, cabeças raspadas.
Reichard não imaginou, mas aconteceria o que geralmente acontece no cinema brasileiro: o quiproquó parou no filme. Bini seguiu a linha de um Carlos Imperial – useiro e vezeiro em aproveitar as palhaçadas que aconteciam fora das telas para promover os seus caudalosos empreendimentos. É assim que, em “Geração Bendita”, um delegado manda para o xilindró o pessoal que andava de jipe, sorridente, contemplando felizes os raios de sol.
A tensão com o aparato estatal lembra um momento de “Os Doces Bárbaros” (1976), dirigido por Jom Tob Azulay. O réu – Gilberto Gil – coloca o braço sobre um dos ombros. O olhar hilariamente foragido, provavelmente em outra galáxia, tempo e espaço, enquanto o juiz o interroga.
Seres humanos normais assistem a mirações dessas e torcem para que um OVNI chegue logo e o desbunde rapte a todos, “numa luz a-ver-me-lhaaa-daaa” – a mesma que Rogério Sganzerla escreveu para “O Bandido da Luz Vermelha” (1968). Mas ao invés do Hendrix que encerra “O Bandido”, “Geração Bendita” usa trilha sonora local. A banda Spectrum, objeto de cobiça de colecionadores por anos a fio, sobretudo antes de a Internet possibilitar o acesso aos velhos lps.
“Geração Bendita” traz, ainda, outros aspectos interessantes. O fetiche em torno da sociedade de consumo e das “convenções sociais” – vide o prólogo que inicia o filme. Algo que é mesclado rapidamente na idéia de subdesenvolvimento. O “subdesenvolvimentismo” que o Luz de Sganzerla prega a toda hora.
Visualmente, Bini tem um achado: o grupo acende uma fogueira com eletrodomésticos – até aí, nada demais. No entanto, mistura a bandeira do próprio movimento hippie (a cruz de Nero), o que por um triz parece iconoclasta. Talvez até de maneira inconsciente. Em outro ouriço, vemos a festa dos rapazes e garotas com a presença de peões que moravam por perto. Um levante popular que o Cinema Novo não cogitou. Mudança nos meios de produção, mas sem gibão, terra seca e gritaria.
Em 1972, Carlos Roberto Bini dirigiu o piauiense “Guru das Sete Cidades”. Nele, Bini consegue espalhar melhor o enredo, os blocos de personagens, os conflitos, fora do lado quase-documental de “Geração Bendita”. Ainda assim, os filmes montam uma vertente peculiar na contracultura brasileira. Tour de force dos bichos que plantavam, colhiam, consumiam, depoimento siderado e anterior à “nova era glacial”, como diria o profeta Tim Maia.
4 comentários:
nao vi o filme mas adoro a trilha sonora do Spectrum, folk psicodélico de primeira. Tanto que esse disco chegou a valer 2 mil dólares no exterior até ser relançado por um selo alemão.
Agora tô com medo de ver o filme e ele ser menos brilhante e psicodélico que a resenha. Minha parte preferida: "Mudança nos meios de produção, mas sem gibão, terra seca e gritaria". Genial, podia ser o título da resenha. :D
Rodrigo, também adoro a trilha do Spectrum. Por sorte eles foram parar no filme, o que acabou aumentando a lenda em torno do "Geração Bendita".
Luiz, quando assistir, não procura atuações maravilhosas ou uma produção impecável. Aliás, meu sonho em relação ao filme era encontrar o Antônio das Mortes no Quiabo's, passando para tomar um chá de cogumelo. Aí sim teríamos uma revolução diferenciada...
Ficando fa dos textos da Andrea sobre esses filmes de 1970. Primeiro li sobre Anjos e Demônios e hj, sobre É isso aí, bicho! parabéns por entregar conteúdo cultural com alto nível de excelência!
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