segunda-feira, janeiro 23, 2006

Inquietações de Uma Mulher Casada


"Inquietações de Uma Mulher Casada" (1979) inaugura aqui no site uma pequena série de filmes brasileiros sobre a condição feminina. Naquela década em que Betty Friedan ajudou a virar o foco da mulher para longe do trinômio casa-marido-filhos, os ecos do feminismo que se faziam ouvir no mundo todo também chegaram ao Brasil, produzindo filmes deliciosos e interessantíssimos.

Em "Inquietações" Luísa (Denise Bandeira) era casada com Luiz Antônio (Otávio Augusto), que era amante de Vera, que era casada com Davi (Jonas Bloch), que não conhecia Marcos (Nuno Leal Maia), ex-namorado de Luísa, que volta para reacender a história.

Escrito e dirigido por Alberto Salvá, ressuscita a “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade em uma espiral “cabeça”. Trata de Luísa, mulher semi-emancipada que a poucos metros dos anos 80 vigiava a empregada doméstica, fazia compras no supermercado e voltava para casa com a obrigação de se perfumar, tomar banho e esperar o marido.

Soa incômodo para as mulheres contemporâneas de hoje, assistir à naturalidade com que esta rotina é detalhada. Mas como em todo bom polaróide de uma época, a vida comezinha de Luísa requer uma imersão nos costumes antigos. E mais: obriga o espectador a entender o que está na superfície e o que está prestes a explodir.

Neste sentido, o close inicial em Denise Bandeira olhando-se no espelho do banheiro é significativo. Dali por diante as suas “inquietações” varridas para debaixo do tapete tomariam a forma de agressões verbais ou físicas, externalizadas para cima da mãe, da sogra ou do esposo. Esse pequeno prefácio visual que dura poucos segundos, sem ser pronunciada uma palavra sequer, explica a solidão da confusa dona-de-casa.

Como conseqüência natural, Salvá quebra a normalidade do cenário de classe média. Luísa surta, inventa soluções implausíveis, despacha a filha no apartamento da avó, pega o carro e segue para o Nordeste com o marido, Luiz Antônio, na melhor linha “adolescentes”.

Mas antes do Nordeste, dão um pulo em Jacarépagua, onde revêem amigos, Vera e Davi, bichos-grilos que propõem troca de casais e banho nus, na piscina do quintal. Lula, o caladão hospedado por lá, excita os pensamentos de Luísa, como um bichinho de estimação que, por ser mais novo, encarna as idealizações da ex-universitária – que largou a faculdade para casar e ter filhos, mas anos depois ainda não se acostumou com a idéia.

Lula, porém, é passageiro. Um flerte, não liberta definitivamente o tédio sexual de Luísa, tarefa para outro princípe encantado, Marcos. Os dois se encontram num apartamento usado como locação para um filme brasileiro – o cineasta e professor da Puc-Rio, Pedro Camargo, interpreta a si mesmo, como diretor do filme que está sendo rodado. Impossível não se sensibilizar com as cenas da filmagem desse filme-dentro-do-filme. Trazem aquela naturalidade de happening, que leva o espectador para dentro do set, à moda de David Neves.

Marcos e Luísa saem dali, bebem umas e outras, conversam, transam, tudo muito sofisticado, na crista da onda, como se esperaria de adultos conscientes e modernos, na era da pílula anticoncepcional.

Bem mais civilizado seria o momento em que Luísa chega em casa e conta para o marido o que aconteceu. De início apenas irritado, aceitando a condição de enganado, Luiz Antônio acaba não suportando o afã ninfomaníaco da mulher e descamba para a grosseria.

Na verdade, Luiz Antônio reage dentro da armadilha criada por Salvá: o que faz é imperdoável -- bater na mulher, mesmo que depois de chifrado --, mas corta naquele momento o ciclo neurótico que nutria o casal. Pinicando, cutucando e querendo palestrar sem ouvir, Luísa também erra egoísticamente. Tal qual Nora de “Casa de Bonecas” – peça de Henrik Ibsen, escrita cem anos antes –, larga a filha pelos cantos, em uma tentativa urgente de encontrar a si mesma. Um princípio de road-movie é ensaiado, mas nem Luísa nem o filme tem condições de ir muito longe.

Mesmo assim, Salvá caminha por um realismo inteligente. Explora as contradições comuns de cidadãos absolutamente comuns. Já em “Um Homem Sem Importância” (1971) e depois em “Menina do Lado” (1987) – para citarmos apenas os exemplos comentados neste site e apontarmos uma tendência –, Salvá consegue o resultado pretendido com vários corpos de vantagem.

Em “Inquietações de Uma Mulher Casada”, a música de Miguel Ortiga aumenta a intensidade do produto final. Idealizado por quem sabe muito, é a prova de que Alberto Salvá desde sempre compreendeu que escrever histórias simples não é apelar para o maniqueísmo de fácil digestão. "Inquietações" pode ser trivial, mas resiste ao olhar atento de quem se interessa pelas batalhas do cotidiano.

Um comentário:

Anônimo disse...

Vi hj e estou gostando bastante. Otávio Augusto é ótimo. Solidão a dois e liberdade sexual com ares datadíssimos, mas importante para refletir sobre aqueles tempos.