segunda-feira, dezembro 11, 2006

Os Desclassificados


Para Matheus Trunk e Jorge Rubies


"Se a profecia não falhar / O ano 2000 vai encontrar / Por sobre a Terra se arrastando/ O que restou de um mundo mau / Que entre guerras se perdeu / A bomba H fez o seu Deus / Que sem piedade destruiu / Os filhos seus...!"


A virada do milênio já passou faz tempo, nenhuma previsão catastrófica se confirmou (fora do Brasil, digamos), mas "Os Desclassificados" (1972), que contém a apavorante e kitsch trilha-sonora acima -- e a estréia de Clery Cunha na direção -- chegou ao distante ano de 2006 ileso da bomba H.

Brincadeiras à parte, "Os Desclassificados" é um filme simples, barato, mas que já guarda todos os elementos que fazem o diretor e sua singela obra um mundo novo a ser redescoberto. Ex-cabo man da Tv Tupi, ator ocasional, Clery foi um daqueles típicos casos de quem se esforçou na carreira, trabalhando em várias funções, aprendendo na prática -- e chegando à direção, com 33 anos, usufruindo de conhecimento suficiente para obter o resultado que desejasse.

No caso de "Os Desclassificados", para o qual também escreveu argumento e roteiro com Darcy Silva, há uma clara superposição de plots: o amor (quase) incestuoso de Berto (o próprio Darcy) por sua madrasta, Lara (Joana Fomm), e a consequência disso: um assalto promovido pelo jovem problemático, que resultará em tragédia.

No relacionamento do enteado com a mãe postiça encontramos explicações para seu comportamento, mas o desenrolar do assalto é a parte mais bem acabada do filme, que, como quase tudo o que Clery realizou, começa morno, evoluindo em frenesi crescente até o desfecho final.

A história ganharia, e muito, com dez ou quinze minutos a mais de tensão erótica e edipiana entre Berto e Lara. Quando o pai de Berto (Araken Patusca) viaja a negócios, os dois ficam sozinhos e saem pela noite em busca de diversão. Então apreciamos uma das obsessões típicas -- e provavelmente lucrativa -- do cinema de Clery Cunha: a de exibir letreiros de boates, motéis e restaurantes em close.

Logo sabemos que a dupla passou pela "Churrascaria Galpão", esticando pelas boates "Le Masque", "La Sexy", a "Chão Cantina", o "Restaurante Kacik", até terminarem em um inferninho, tudo isso ao som de Soul Sacrifice, do Santana -- haja fôlego! Na volta, Berto faz jogo típico de apaixonado, parecem envolvidos um pelo outro, mas o rapaz termina apreciando a madrasta dormindo, fascinado apenas por ela existir.

Sua musa, no entanto, tem um amante (Roberto Batalin), gerente do banco onde a família possui conta. Berto sofre pelo relacionamento aquela espécie de voyeurismo homossexual, masoquista e tão estudado pela psicanálise. E, como sabe que é incapaz de chegar a alguma solução autêntica para o problema, abraça uma postura de vingança infantil, propondo a um grupo de amigos bandidos um assalto para desmoralizar o adversário.

A quadrilha é soberba: além de Berto, percebam que um dos bandidos, Toninho, é o próprio Clery. Outro é Jesse James Costa, figura conhecidíssima da Boca e da malandragem paulistana. O surpreendente Jesse James, aliás, dá um show de interpretação naturalista, lembrando um dos criminosos do clássico italiano "Cani Arrabbiati" -- uma pena que Mario Bava não andasse pela Boca para levá-lo a Roma.

Toninho deixou a esposa grávida (Sônia Garcia), desesperada por ver o marido envolvido em algo que não tem a mínima chance de dar certo. Durante o assalto, um dos bandidos morre. Os sobreviventes desembarcam na casa alugada para esconderijo. Ali, entre idas e vindas, encontram um desfecho para a trama.

À moda de outros realizadores paulistas do período, o roteiro e a direção conseguem uma abordagem universal na narrativa, que independe de onde -- podendo ter sido ambientada em qualquer espaço urbano, sem prejuízo de sua compreensão e consistência. Foi o único filme realizado pelo diretor dessa forma, pois o cinema policial de Clery Cunha é sinônimo de São Paulo e a tragédia de seu espaço urbano. Esquecido e subestimado, a se depender das raras cópias em vhs de seus principais filmes, continuará sendo um autor querido por muito poucos.

5 comentários:

Anônimo disse...

Muito obrigado Andrea, eu não ia ficar sossegado enquanto não visse uma resenha desse filme aqui no Estranho Encontro. É incrível como o filme é absolutamente profético e avançado para a época, abordando temas então quase inimagináveis, como drogas e violência urbana, mas tão atuais hoje em dia. É um filme sobre tempos de conflito e de crise, mas que foi rodado numa época em que a economia do Brasil crescia 10% ao ano (embora em meio a uma ditadura brutal). O filme poderia ser refilmado hoje tranqüilamente quase sem adaptações, tirando aquelas babaquices claramente impostas pela censura (como por exemplo chamar o que parecia ser um pacote com drogas de "contrabando", hahaha). Só a cena mostrando os luminosos seria impossível atualmente, porque nosso atual prefeito resolveu declarar guerra aos neons, alegando que poluem visualmente a cidade...

E como você bem disse, a música também tem um quê de profético em relação ao nosso país: caiu mesmo uma bomba H aqui no Brasil, que arrasou com a nossa economia, nossa indústria cinematográfica, nossas esperanças e com metade do patrimônio arquitetônico de SP e do Rio...

Anônimo disse...

Belo post Andréa. Conheço pouco do cinema de Clery Cunha e "Os Desclassificados" é um filme que me recordo ter assistido com muito interesse. Lembro-me vagamente de um filme do Clery chamado "Chumbo Quente" com a dupla sertaneja Leo Canhoto e Robertinho. Você o assistiu? Grande abraço.

Anônimo disse...

Oi Andrea ! Valeu pela dedicação especial hein...Mas é realmente como você já disse e disse o Jorge, o Clery é um cara muito talentoso e também muito cuidadoso. E esse é um filme muito especial, e que você resumiu e resenhou muito bem. Estou a todo custo correndo atrás do Clery para uma futura edição da Zingu!.

Anônimo disse...

Andrea, sabes de alguma info sobre o lançamento em DVD dos filmes antigos de Babenco? Ah, risos, um feliz natal e um 2007 de mais e mais filmes. Bjos.

Andrea Ormond disse...

Oi Jorge, pois é, tb não entendo o porquê de modificarem a paisagem urbana excessivamente. Acho perigoso, acaba destruindo o vínculo meio implícito que existe entre as pessoas e o meio em que elas vivem.

Oi Márcio, estou há muito tempo curiosa pra assitir ao "Chumbo Quente". Vindo do Clery há a possibilidade grande de o filme ser bem interessante. Abraços!

Fala, Matheus! Encontrou o Clery? Uma entrevista com ele daria um bom encerramento de 2006 ou início de 2007 pra Zingu! Estou na expectativa.

Oi Marcos, não estou sabendo. Será que o Lúcio Flávio ou o Pixote vão sair? Obrigada, um feliz ano novo pra vc (o feliz Natal já passou um pouco da hora de eu desejar rs) Bjs