segunda-feira, outubro 26, 2009

Rapazes das Calçadas


O cinema brasileiro ainda nos deve bons filmes sobre a homossexualidade masculina. Uma pequena parte dessa lacuna poderia ser preenchida se dois ou três livros sobre o tema fossem bem adaptados. Além do best-seller "O Terceiro Travesseiro" ‭– ‬que já virou peça ‭– ‬obras mais densas como "Cinema Orly", de Luis Capucho, e "Trem Fantasma", de Carlos Hee, clamam pela tela grande.

"Cinema Orly" é um relato trabalhoso e problemático para adaptação, mas sua beleza obscura e o talento de Capucho valem a tentativa. Já "Trem Fantasma" oferece maior facilidade, pois documenta de forma rica a cena gay de São Paulo no início dos anos 80, época da propagação da Aids nos grandes centros urbanos.

Quem cresceu no mundo GLBT dos anos 2000, tão diverso e iluminado, pode cair para trás ao conhecer o que foi a realidade oprimida desse universo nos anos 80 e princípio dos 90. O tesouro de ambos os livros ‭– ‬e possíveis filmes ‭– ‬está principalmente na capacidade única e concisa de recriá-lo. Hee, de forma mais direta, com personagens e histórias inesquecíveis; Luis Capucho, com verve literária poderosa, que nos faz sentir o ar pesado do local que obsessivamente frequentava ‭– ‬Orly, uma sala decadente de pornôs, atrás da Cinelândia, no Rio.

Naquele mesmo emaranhado onde se perde o narrador de "Cinema Orly" ‭– ‬ ruas Álvaro Alvim e adjacentes ‭– ‬articulou-se, poucos anos antes, o Beco da Fome, ponto de encontro dos cineastas e técnicos cariocas. E um típico produto gerado com mão-de-obra do Beco foi "Rapazes das Calçadas" (1981), tentativa corajosa, porém primária, de se fazer um longa-metragem sobre a vida clandestina dos homossexuais brasileiros na virada da década de 70 para 80.

O desastre começa pelo personagem principal, Luís, flâneur do bas-fond, criatura recatada e atormentada, que é na verdade a atriz Lady Francisco em travesti masculino. Efeito devastador, La Francisco de homem virou um clone de Cauby Peixoto. Fuma cachimbo ‭–‬ aparecer em público de cachimbo, no final dos anos 70, muito antes do infantil neo-conservadorismo de hoje, era cool. Lembrem-se das capas dos lps de Roberto Carlos no período.

Não bastasse isso, os diretores Levi Salgado e a própria Francisco também recrutam para o time das monas o eterno Celso Faria, que estrelou quase cinquenta filmes entre 1957 e 1991. A sequência de Celso ‭se ajoelhando humilhado diante de um michê que conhece no banheiro público, em seguida sendo assaltado e recebendo uma horripilante canivetada, entra fácil naquelas antologias reacionárias do tipo "cinema nacional não presta".

"Rapazes das Calçadas" nada mais é do que uma sucessão desses esquetes, a maioria entre o ridículo, nauseante ou cruel, mostrando que o sexo pago não era batatinha. Algumas cenas de explícito, bem ao gosto da época, foram enxertadas ‭–‬ nenhuma com os atores principais. Talvez para obter variedade de pornografia, agradando também a outros públicos, em certo momento uma garota contrata um michê e é assassinada por ele. Minutos antes, um casal vai aos finalmentes depois da noiva flagrar o amado aos socos e pontapés na travessa das pintosas.

Lady Francisco ‭–‬ desde sempre ícone gay ‭–‬ esforçou-se ao máximo, mas as pernas e o bumbum voluptuoso a deixam parecendo mais uma lésbica caricata ‭–‬ no estilo de Charlize Theron em "Monster" ‭–‬ do que propriamente o homem de meia-idade que pretendia ser. Na cena final se despe da fantasia, revelando o chuchu por trás da maquiagem.

Não quero parecer de novo batalhadora taliban da causa ‭–‬ vide "As Intimidades de Analu e Fernanda" ‭–,‬ mas o desfecho me parece guardar enorme preconceito homofóbico: ao se livrar do personagem, La Francisco, de homem cinza e macambúzio, ressurge como mulher alegre, sensual, que rebola suas delícias em direção ao mar.

É preciso pouco requinte para criarmos a analogia imbecil do homossexual atormentado por não ser aquilo que supostamente deseja ‭–‬ mulher ‭–,‬ em contraponto à mulher realizada em sua condição natural, que descortina-se eufórica na nudez exposta e na dissolução do triste personagem.

Se o leitor preferir sublimar esta afronta, "Rapazes das Calçadas" oferece ao menos uma contextualização das bichas ‭–‬ como se chamavam ‭–‬ perversa e politicamente incorreta, porém não menos sofrida e humanizada. Bichas que nem ousam sonhar com algo parecido a amor, relações estáveis. Somente o desejo ‭–‬ mesquinho, imediatista ‭– ‬é contrapeso na balança do medo e da vergonha.

Creio que a importância de livros honestos como "Cinema Orly" e "Trem Fantasma" serem logo transpostos para o cinema é facilmente compreendida quando assistimos a "Rapazes das Calçadas". Entre manchetes sensacionalistas e a essência de quem viveu na pele o cotidiano, a história da homossexualidade no Brasil precisa ser documentada. Aos trancos e barrancos, "Rapazes das Calçadas" buscou esse registro, embora pareça mais reportagem de David Nasser e Jean Manzon ‭–‬ em versão hardcore ‭–‬ do que material sério a ser debatido pelas futuras gerações.

17 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Andrea querida,
Que bom tê-la de volta.
Fiz até chamada lá no Insensatez.
Bjs

Andrea Ormond disse...

Adilson, estou de volta ao lar rsrs Obrigada, e sabe que ando pensando numas novidades? Aguarde. Beijos, querido

Anônimo disse...

Andrea, que bom que você voltou. Já li as três novas postagens. Me diverti muito com a ironia impregnada nos textos. O de "Rapazes da calçada" é hilário. Ri muito enquanto lia, visualizando mentalmente a cena citada com Lady Francisco. Grande abraço.

Márcio/MG

Adilson Marcelino disse...

Andrea querida,
Como disse lá no Insensatez, já estou morrendo de curiosidade.
Bjs

Andrea Ormond disse...

Márcio, como falei para o Adilson, estou de volta ao lar, de volta às origens. E sabe que eu tb me diverti bastante escrevendo esses textos? Abraços!

Me aguarde, Adilson. Bjs

Anônimo disse...

Oi Andrea. Ví o documentário CINEMA EM 7 CORES que foi exibido no Canal Brasil e quase caí da cadeira de susto quando ví que você deu alguns depoimentos! Foi uma grata surpresa. Alguma previsão de algum filme com personagem homossexual ser comentado por você aqui em breve?

Andrea Ormond disse...

Oi, Anônimo. Faltou assinar, fiquei curiosa em saber quem és rsrs Além desse post sobre "Os Rapazes da Calçada" alguns outros já estão aqui no blog sobre o tema. Em breve podem aparecer novos. Abraços

Alexadre disse...

Esqueci de assinar mesmo. Desculpe. Alexandre. Vou te adicionar no Orkut.

Teo Pasquini disse...

Baixei o filme, há algum tempo, e acabei não vendo. Pelo seu texto, acabei ficando curioso. Gostei da análise antes mesmo de ver a obra! Um abraço e parabens pelo blog, que é incrível.

ADEMAR AMANCIO disse...

Acabo de ver o filme,e ler a resenha.Achei apenas curioso,o filme,sua análise é ótima.

Unknown disse...

Como faço pra baixar esse filme? Não achei o link

Unknown disse...

Como faço pra baixar esse filme, não achei o link

ADEMAR AMANCIO disse...

Na xvideos.com:Rapazes da calçada 1981.

Michael Carvalho Silva disse...

Lady Francisco é linda e também uma das maiores atrizes do Brasil em todos os tempos. Ela é simplesmente belíssima e adorável em todos os sentidos.

Michael Carvalho Silva disse...

Lady Francisco sempre foi tão linda que se tornou uma das maiores misses e rainhas de beleza do Brasil tendo vencido inúmeros concursos de beleza em sua própria juventude antes de ter se tornado uma atriz famosa. Só faltava ela ter sido uma modelo e manequim profissional também. Lady é simplesmente belíssima, absolutamente deslumbrante e espetacular em todos os sentidos além de ser uma digníssima e excelente atriz profissional como sempre.

ADEMAR AMANCIO disse...

Estou vendo de novo o filme e relendo a ótima resenha.(OK.RU).

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu queria muito ter nascido mulher.