sábado, julho 19, 2008

O Trote dos Sádicos


Pouca gente sabe, mas o cirurgião plástico e pintor Aldir Mendes de Souza foi também cineasta na Boca do Lixo paulistana dos anos 70. Interessado por cinema, Mendes de Souza dirigiu alguns curtas sobre medicina, até que seus bons contatos na Rua do Triumpho o levaram a dois longa-metragens, sendo o melhor deles “O Trote dos Sádicos” (1974), espécie de filme-denúncia, programado para render uns milhões de cruzeiros nas bilheterias ao brincar com a temível instituição que, ano após ano, assola os “frágeis” calouros que ingressam nas universidades.

Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro, já que o trote é ritual convencionado, a princípio, para entrosar estudantes novos e mais velhos. Ocorre que em outros países, como os EUA, ele é aliado a formalismos que acabam dando sentido a essa bizarra troca de gentilezas entre meninas e meninos universitários. As centenárias associações de alunos -- se irradiam inclusive pela vida política norte-americana -- e que garantem bolsas de estudos e melhorias nas instalações das faculdades, são exemplos crassos neste sentido. No Brasil, como sempre, os calouros apenas levam a pior e nada ganham em troca.

A verdade é que por aqui o trote não possui altas indagações filosóficas, e serve na prática para desopilar o fígado, antes do início de um novo semestre letivo. É exatamente isso o que Mário Márcio, Lúcia e tchurma fazem com os xuxus Ricardo e Patrícia: raspam o cabelo do primeiro, picham o carro da segunda, tacam ovos, passam as mãos aonde não devem e colocam o terror generalizado entre os colegas do 1o. ano de Medicina.

Provavelmente da Usp, pois entre os sortilégios dos veteranos, vemos a piscina da Atlética – o que dá um frio terrível na espinha, pois foi o mesmo local da morte de um estudante em 1999, em caso até hoje não esclarecido -- “As brincadeiras realizadas pelos veteranos não foram imaginadas mas extraídas de depoimentos de pessôas (sic) que a elas foram submetidas. Êste filme tenta colaborar com a abolição do trote nas universidades brasileiras.”

Quem iria acreditar no didatismo desse aviso colocado nos créditos, principalmente em se tratando de uma comédia embalada por ragtime – o som dos “Brazilian Jazz Stompers” varre quase todos os fotogramas –, em clima de pastelão? Rimos um pouco, e nos perguntamos o que houve com a trama depois dos minutos iniciais, que prometia tanto com a aparição de Miroel Silveira e Marcos Rey na “adaptação cinematográfica”.

O que se vê são aquelas atuações absurdas, em um fluxo narrativo descadenciado, cujas tosquices ganham um humor involuntário irresistível. Passar no vestibular e dizer um “Ê!” de nanossegundos; restaurante de gente fina povoado de tios cafonérrimos e inacreditáveis; casarão da protagonista grã-fina, Patrícia, mais parecido com um terreno baldio do que qualquer outra coisa; Jofre Soares, como investigador, surgindo e sumindo absolutamente do nada, responsável por desvendar as tramas armadas contra Ricardo por Mário Márcio.

Sim, porque Mário Márcio é metido, janota e mau feito um pica-pau: comete barbaridades e crimes como amputar orelha de cadáver, roubar ratinhos de laboratórios usados por um professor-pesquisador – de longas barbas brancas, o que lhe aumenta a credibilidade – e realizar exames de proctologia em incautos. E a culpa de algumas dessas picardias acaba nas costas de Ricardo, o proleta que aceitou um emprego subalterno para custear os estudos e tem a namorada Patrícia quase roubada por MM.

Há tempo, ainda, para um momento gore: a gravação in loco de uma cesariana, o que pode deixar os mais sensíveis com estômago embrulhado – Antonio (Ricardo Blat) cumpre a deixa, encarnando aquele aluno hipotético que desmaia nas aulas de anatomia e é carregado por outros.

Sergio Hingst em ponta rapidíssima como o pai de Pat; Satã – não o próprio, mas o eterno faz-tudo de José Mojica Marins e imediações, criatura corpulenta que vez por outra aparece em centenas de filmes – idem, no papel relâmpago de companheiro de cela de Mário Márcio.

Argumento, roteiro e direção do próprio Mendes de Souza, assistido pelo khouriano Maurício Wilke – vejam como os técnicos naquele período fervilhante migravam de filme em filme –, fotografia do onipresente Antonio Meliande e de Claudio Portioli – o mesmo que inventou uma grua de madeira para o respeitável “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (1965), produzido pela Difilm de Luiz Carlos Barreto.

Produção Servicine -- é claro, de Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante -- “O Trote dos Sádicos” precisa ser visto como nota biográfica curiosa na vida do seu diretor. Artista plástico talentosíssimo, premiado inúmeras vezes, Aldir Mendes de Souza faleceu em 2007 -- utilizando sua doença, a leucemia, como mola propulsora de uma criatividade colorida e infinita. Na vertente cinematográfica, reafirma que a Boca oculta mais segredos do que sonha nossa vã e preguiçosa filosofia.

10 comentários:

Anônimo disse...

Espetacular esse blog. Parabéns!

Andrea Ormond disse...

Olá Anônimo, obrigada. Faltou assinar :)

Anônimo disse...

O Marcus Rey nunca se deu bem em adaptações televisivas ou cinematograficas.Uma pena

Anônimo disse...

Nossa, passou semana passada no canal brasil, talvez em razão das confusões atuais de trotes (fev/2009). A dublagem é horrenda, as interpretações canhestrísimas. Ainda nem vi até o fim. Sexo e Sangue consegue ser bem melhor

Anônimo disse...

Ví esse filme ontem, no Canal Brasil. Infelizmente, como tinha de acordar cedo, não pude assistí-lo até o final. De fato,o didatismo e o amadorismo dos atores (descontando Jofre Soares e Ricardo Blat)torna o filme mais uma peça de curiosidade 'cult-trash' do que uma 'peça dramática séria'. Bom também para se notar como o gosto e a moda evoluiram (para melhor) com o passar das décadas.

Curiosidade: Ricardo Blat com a cabeça raspada ficou parecido com ele mesmo, nos dias atuais; o calouro barbudo e magrelo não faria feio num figurino punk '90/00'...! XD

Anônimo disse...

Por favor, preciso de O TROTE DOS SADICOS
solicito instruções como conseguir /baixar/ adquirir
silvia.r.couto@gmail.com

Anônimo disse...

concluindo:
esse filme mostra o trote aos calouros de 1973 feito pela turma que entrou na Escola Paulista de Medicina em 1971.
vi o filme há tempos atrás, perdi o VHS e agora tento achá-lo de qualquer forma!
abç Por favor, preciso de O TROTE DOS SADICOS
solicito instruções como conseguir/baixar/adquirir
silvia.r.couto@gmail.com

Anônimo disse...

Na verdade silvia.r.couto este filme foi gravado em 1974 e lançado nos cinemas em março de 1975.

Rose Barreto disse...

Adorei este filme, gostei da interpretação dos atores. O que me entristece é perceber que o preconceito de classe social ainda existe e que a história retrata exatamente o real. Falando dos atores, Silvana Lopes que fez o papel de mãe de Patrícia, foi uma grande dama do cinema da Boca e fez diversas novelas de tv nos anos 70. Filme ótimo.

Rose Barreto disse...

Sinceramente, não gostei nada desse artigo acima. Será que não deu pra perceber que a época das filmagens era outra?? Daqui a quarenta anos, nós poderemos parecer ridículos às próximas gerações. Vamos ter respeito pela história, pela geração dos outros.