segunda-feira, dezembro 20, 2010

Viagem aos Seios de Duília


“Viagem aos Seios de Duília” (1964) narra a tragédia, sem alívios ou conselhos, retrato do conto homônimo de Aníbal Machado. Véu lançado pelo diretor, Carlos Hugo Christensen, constatação sobre o arco de uma vida que se foi embora.

Solteiro, funcionário público, circunspecto, José Maria (Rodolfo Mayer) não criou vínculos durante os 36 anos de repartição. Era cúmplice no esforço mecânico de pessoas que entravam, saíam, batiam o ponto, acendiam e desligavam as luzes.

Agora de pijamas, descasca ovos cozidos, perde o bonde que passa no quintal de casa. Aposentou-se. E ao repetir os elogios de que desfrutará da boa vida, da grande boa vida do descanso, o faz por reflexo. Rapidamente esquece as promessas de frisson da boemia, encara a sombra que colou no paletó.

As pilastras, escadas e salas internas do Ministério da Fazenda – prédio inaugurado por Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, estilização do governo fascista – auxiliam o espírito opressivo do local de trabalho. Na despedida, Adélia (Natália Timberg) entrega-lhe um presente. José fantasia o amor que não terá. Homem passivo por osmose, deixou a Pouso Triste natal ainda menino, sem pensar no troco do que lhe seria cobrado.

Tudo na adaptação da história altíssima de Aníbal Machado, nos diálogos de Orígenes Lessa, no roteiro de CHC, fascina pela humanidade, espantosa e destrutiva. Goles estóicos de café nos botequins, observatório de gente, frieza travestida de amizade, abraço no passante. Filme voyeur da solidão, prova de que a câmera estava livre, havia abandonado os estúdios e experimentava uma prerrogativa que não era exclusividade dos angry young men – aqueles que, ao longo da década de 1960, começavam a povoar colônias.

Tímido, José Maria se mete em um night club – os clubbers antigos: gravatas no pescoço, lenços milimetricamente ajeitados na lapela. Criação do roteiro, ausente no conto, um ex-comandado de José, metido a boa pinta, arranja-lhe o papel oficial de pagador da conta. Carrega as pequenas para o abate, mas frustra a noitada do chefe.

Longe dali, no enterro de um escriturário – outro achado da adaptação, brilham as tiradas de Orígenes – a quantidade de salamaleques vazios o deprimem. As frases feitas, os convidados circulando para contabilizarem o velório no currículo.

A situação piora quando o protagonista percebe que a inatingível Adélia, de fato o é. Surge, então, a empreitada de ouro: retornar a Duília, ao amor adolescente, ao que possa aliviá-lo. Vasculha as malas, embarca no trem, troca o chope por uísque. Precisa refazer o drama, o pacto de quarenta anos atrás.

No conto, pelo suporte das minúcias, são melhor explicadas as nuances de Duília – eco entre esse nome e o de Adélia; os fonemas, os “dês” que batem nos dentes, um continuum que delira, confundindo imagens e desejo. Duília que no ato puro, impensado, quebrou as expectativas, mostrou-lhe o seio – totem materno, fase oral. José Maria quer revê-la, encaixar as arestas, conectar-se com o absoluto.

Cavalga pelas estradas de terra, pelas plantações, no lombo de um burro, guiado pelo tropeiro (Osvaldo Louzada). “Tudo o que vinha percorrendo já era país de Duília”, cantava Machado. Nos barulhos espectrais – música de Lyrio Panicalli –, ouve-se “Duília” como uivo, semelhante ao de “Heathcliff”. O vulto de José Maria fusiona-se com as alamedas de Pouso Triste, lembrete de que se tornou um ente dissociado, fantasma de carne.

E Duília (Lícia Magna) e José Maria se revêem. Ela casou-se, enviuvou, casou os filhos. Extasiada, incomodada pela visita, por um átimo de segundo lembra ser mulher. Confere a roupa mas congela o ato antes de alcançá-la. Cabeça baixa, sabe que o corpo mudou, fogo extinto.

José Maria se assusta. Na raspa da neurose que cai pelos dedos, se dá conta de que criou e cumpriu uma superstição estranha. Sem para quê nem por quê, nunca se aproximou antes de Duília; não agradou ao espírito, abdicou do mundo, enfurnou-se, esqueceu a essência – agora perdida.

Para demonstrar o surto – a despersonalização – que acontece nesse momento, intervém a mão firme de Carlos Hugo Christensen. Consegue proezas, coloca na mesma sequência a árvore que povoa os sonhos de José – ali Duília cometeu o ato antigo de loucura –, a igreja da infância, a cruz, a expressão transtornada.

Aparecem antes dos flashes das ruas, dos lugares que a câmera visitara com protagonista e que, vazios, dão o testemunho. Idealização infrutífera de José, retomar o que não se pode, o que não existe, o que é escuro, úmido e habita os sonhos. Corte seco para o fim, letreiro na tela.

Nello Melli, argentino, montador de longa data dos filmes de CHC, ainda na época platense – “Águila Blanca” (1941) – integra o pacote de acertos. Conselheiro do Cinema Novo, esteve em momentos como “Porto das Caixas” (1962), “Os Cafajestes” (1962), “Garrincha, Alegria do Povo” (1962) e “Vidas Secas” (1963).

Christensen também se manteve vizinho de Pedro Bloch, o que se percebe em “Duília”. É de Bloch o texto de “As Mãos de Eurídice”, peça estrelada à exaustão por Rodolfo Mayer. Partiu dele a idéia de importar Artur Semedo – o colega espaçoso de José Maria. Português, Semedo acabou no elenco de “Crônica da Cidade Amada” (1965) – um dos esquetes, escrito pelo dramaturgo –, dirigido por CHC no circuito sobre o Rio de Janeiro.

“Anjos e Demônios” (1970) e “A Morte Transparente” (1978) contemplam o outro lado da elegia à cidade. Rodados nos anos 70, encavalados no golpismo, no bas fond, no desfile de garotinhas e – por que não? – de garotões. Desafiam os sentimentos de culpa, circulam copos de malícia, algo a que Carlos Hugo já se acostumara desde “Safo, História de Una Pasión” (1943) – marco da cinematografia argentina. Realizador erudito que tocou no popular, Christensen fez o elo entre doçura, medo – típicos do “Viagem aos Seios de Duília” – e a profusão de temas – sexualidade, um deles. São rastros de imagens, fragmentos no saguão que cobriu lentamente por mais de meio século de filmes.

8 comentários:

MÁRCIO FERREIRA DE SOUZA disse...

Andrea, belo texto para um grande filme! Três anos depois CHC iria mais uma vez beber da fonte de Aníbal Machado ao realizar O Menino e o Vento. Forte abraço e muitas felicidades em 2011.

Caique Gonçalves disse...

Texto delicioso! Fiquei com vontade ver o filme.

Abs,

Anônimo disse...

se a coragem aparecer e o youtube deixar, colocarei o filme lá, em 2 partes.

Andrea Ormond disse...

Márcio, obrigada. "O Menino e o Vento" é outro Christensen em excelente forma, o Aníbal teria se encantado, se pudesse vê-lo. Grande abraço, um 2011 feliz para todos nós.

Quando tiver a oportunidade, veja, Caique. É outro desses raros. Abraços

Sergio Andrade disse...

Adoro esse filme. Christensen precisa ser mais reconhecido.

Feliz Ano Novo, Andrea :)

Beijos

Andrea Ormond disse...

Feliz Ano Novo, Sergio! Muitos filmes, mostras e Christensens em 2011 :) Beijos

Anônimo disse...

Lícia Magna,grande atriz brasileira.

José disse...

Este é um filme gigantesco. Não só pelo conto de Aníbal Machado, mas pela obra magnífica de Christensen, e pela ierpretação fantástica de Rofolfo Mayer. Assisti "Viagem aos Seios de Duília" ainda nos anos 60,quando tinha 20 e poucos anos e nunca o esqueci. Incrível a constatação final do "nada", da desilusão, da decepção, não só pela constatação da realidade, mas pelo exagero do sonho. Uma obra sensível, indispensável. Um grande momento de nosso cinema.