quarta-feira, novembro 24, 2010

Mauro Alice (1925-2010)


Conheci pessoalmente Mauro Alice há quase três anos. Na ocasião, havia sido convidada por Sergio Andrade para apresentar "Palácio dos Anjos", ao lado de Eduardo Aguilar, na mostra "Cinco Visões de Nosso Cinema". A película, projetada em tela grande, sem dvd e outros aprisionamentos tecnológicos, cumpriu seu papel de encantamento a cada milímetro. Direção de Walter Hugo Khouri, montagem de Mauro, que estava ali na platéia -- fecho os olhos e o vejo --, atento a cada comentário.

As perguntas vinham e a todo instante eu driblava o temor reverencial de estar próxima de alguém por quem depositei, e deposito, imenso respeito pela Arte, pelo talento, pela humildade, pela coragem de entregar-se ao ofício do cinema.

Terminada a projeção, a que assistimos juntos, tiramos fotos, combinamos de realizar a entrevista para o Estranho Encontro, na qual diversas vezes nos emocionamos com as passagens sobre sua infância, maturidade, perspectivas sobre o futuro. Brinquei dizendo que a Coruja de Ouro -- prêmio pelo fabuloso, gigantíssimo "Anjo da Noite" --, em cima da estante, me encarava e estava me chamando. Ele insistiu que a pegasse e assim o fiz, coloquei-a no colo -- pesadíssima, já me alertara -- e saciei a curiosidade.

Por ocasião do destino, quando vim para São Paulo, me mudei para o mesmo bairro de Mauro e o visitei algumas vezes. Conversávamos horas, tomávamos chá, o apartamento bonito, a louça alinhada, apuro que não se esquecia.

Nascido em Curitiba, aportou na Vera Cruz por acaso, quando estagiava em outra área de interesse, na mesma São Bernardo do Campo. Bateu à porta de Franco Zampari, estudou com Oswald Hafenrichter, estabeleceu com Mazzaropi e Khouri -- por mais antípodas que parecessem -- parcerias de filmes e filmes. Novas fontes apareceram, dialogou com todas elas, estivessem na Boca do Lixo, na Vila Madalena, no além-mar, inúmeras trupes, momentos históricos, na miríade.


Mauro faleceu ontem.

Vai com ele uma parte da trajetória do cinema brasileiro. Prolífico, atravessou décadas e manteve-se firme, fruto daquele amor pelo cinema que não conhece pastiche, que tem ojeriza à mediocridade, que quer ir à frente, mais e mais.

Mauro, querido amigo e mestre, a honra de tê-lo conhecido permanece sempre. Obrigada.

6 comentários:

MÁRCIO FERREIRA DE SOUZA disse...

Triste notícia, Andrea. Me recordo muito bem de quando você publicou a excelente entrevista com Mauro Alice. Pura emoção!

Roberto Pepino disse...

Acredito que no cinema o editor/montador seja aquele profissional que mais verdadeiramente conheça o diretor em seu íntimo pós trabalho. Será ali, depois de tudo filmado, de tudo feito, que os dois tentarão formatar o verdadeiro desejo do cineasta. Isso quando a finalização tem o comando do diretor, e não do produtor. Aí, o montador saberá ainda mais detalhes do que compôs a obra que vemos na tela do cinema. Como sempre, sua entrevista foi profunda e riquíssima. E, como você escreve aqui, qe figura admirável em sua capacidade e humildade. Que os céus o recebam como um anjo de Frank Capra...

Andrea Ormond disse...

Triste mesmo, Márcio. A entrevista foi especial, houve um entendimento que a doçura e o talento do Mauro deixaram fluir, engrandeceram a conversa que tivemos.

Roberto, realmente o montador acaba tendo no colo uma responsabilidade imensa, concretiza um projeto que às vezes passa por intempéries incríveis do lado de fora e que nem sempre chegam ao conhecimento do público. O Mauro soube entender a questão e interpretou o universo dos autores com que trabalhava: os trailers para os filmes do Khouri são um belo exemplo. Obrigada, a entrevista destrinchou aspectos importantes do trabalho do Mauro, auxiliada pela postura dele, sempre humana e sensibilíssima.

Sergio Andrade disse...

Bela homenagem, Andrea!
Mauro era uma pessoa humilde, generosa, afável e grande profissional.
Beijos!

Rodrigo Pereira disse...

Mauro Alice tinha um requisito imprescindível para ser um grande montador: a modéstia. Tinha também talento de sobra. Montou O BEIJO DA MULHER ARANHA, mas montou também (para falar da minha área de pesquisa) AS CANGACEIRAS ERÓTICAS e PANTANAL DE SANGUE - claro, além dos trabalhos citados pela Andrea aqui. Montou até desenho da TURMA DA MÔNICA. Triste perda. Descanse em paz, Mauro. Parabéns pela homenagem, Andrea.

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Sergio, de fato o Mauro era uma pessoa querida, especial. Beijos

Profissão realmente perigosa, Rodrigo. Porque pra embaralhar as cartas e se colocar acima do projeto, a tentação é grande. Pior: quando chegar ao público, não vai ser possível explicar o que aconteceu na montagem. Essa versatilidade do Mauro impressiona, era muito hábil na hora de entender o que chegava às mãos dele.A lista de filmes é incrível. Por esses e tantos motivos, a homenagem é mais do que merecida, necessária, obrigada.