Meninos na infância inventam fábulas de heróis de capa e espada, para quem olham com idolatria. O cinema ajudou a construir esta mágica, ao longo de várias gerações. Desde as fitas de William S. Hart, os pequeninos com estrelinhas de xerife coladas sobre a camisa do colégio, matavam com o polegar as hordas de apaches que avançavam sobre diligências formadas por duas ou três carteiras escolares.
“J. S. Brown, O Último Herói” (1980), dirigido por José Frazão, no excelente roteiro do próprio em parceria com Tairone Feitosa, fundamenta-se no amor lúdico, infantil, à sala escura, acompanhando José da Silva Brown (Marcus Vinícius) e Major (Helber Rangel). Amigos desde criança, citam Marlon Brando, Fantasma – o que nunca morria, de Lee Falk –, bang-bang e as matinês em Salvador, Bahia.
No entanto a dupla de atores centrais – um negro, o outro mestiço – não se pretendem heróis wasps, nem poderiam. J. S. Brown coloca os pés na janela do quarto e dá de cara com a lindeza do Farol da Barra, o mar, sonhando em ser um Dick Tracy redivivo, de ébano e calorento. Matricula-se com Major em uma academia de aspirantes a detetives particulares, assistindo às aulas de um professor que coça as partes mas é pedante, usa cinco adjetivos para cada substantivo. O contraste entre realidade e fantasia – apaches não dão em árvores e dinheiro é indispensável para o sustento –, leva Major a abandonar o curso.
J. S. e um colega da classe são os únicos a se diplomarem, recebendo o canudo ao som de uma vitrolinha de plástico. Desce as ruas com orgulho, pára numa loja em que espertamente induz o dono a lhe entregar um sobretudo amarelo e um chapéu, fingindo ser funcionário da aduana, prestes a dar flagrante no lojista por vender produtos contrabandeados. Paramentado com o figurino correto, J. S. andará por toda a narrativa desta forma, como se fosse um personagem de quadrinhos no corpo de um homem que foge ao biotipo dos ídolos que reverencia. O subtexto desta construção é um achado dentre os muitos acertos do filme, que brinca com as linguagens pop – icônicas e cinematográficas.
O primeiro caso do escritório de Brown – o sobrenome em referência clara à indústria norte-americana – é fantástico. Sentado na cadeira de rodinhas, jogando de longe o chapéu côco para encaixar no gancho do cabide, J. S. é surpreendido por dois capangas que o metem em um caixão funerário e o levam à presença de uma senhora (Maria Fernanda) que lhe confia a tarefa de encontrar “Cris”. Nada revela, nem o por quê, nem como, nem onde. Na multidão, achar uma “Cris”.
Não se tem como enumerar cada elemento fílmico, mas basta dizer que neste meio tempo, o carro que levava o caixão havia quebrado no meio da estrada – “nem uma m... de seqüestro a gente sabe fazer?” – e que a senhora apareceu de uma nuvem de fumaça branca, no contraluz, tal qual uma vilã da Televisa. Deixado inconsciente no mesmo caixão após o encontro, J. S. aparece no Abaeté, cercado de lavadeiras, tira as roupas e toma um banho. Apesar de Brown conseguir desvendar o mistério, Frazão e Feitosa não abandonam a meta principal de aliar o lúdico – a paixão pelo cinema – à metalinguagem de zombar, amorosamente, dos referenciais que utilizam.
Cris (Bete Mendes) viria a ser a possível nora de Sandra Caputti – tenebrosa chefa de Brown. Moça airosa para os padrões de Caputti, J. S. tem com ela seus momentos em uma noite. O detetive encontra-a em Itaparica após sucessivos golpes de dedução, auxiliado por Major, que aproveita a kombi da “Itapemirim Cargas” – em bela tacada de marketing da produção do filme – para desempenhar a função de chofer.
Entretanto, não bastassem todos os perigos para resolver o caso – fato que parecia conspirar para uma pasmaceira no filme após o desenlace –, o assassinato da garota tumultua o enredo e dá margem à segunda reviravolta no filme – a primeira surgiu no episódio da contratação. Enquanto J.S. jogava strip-poker com o Major e duas convidadas, um flash rápido de José Dummont sobre Bete compõe a morte de Cris, sobrepondo-se a calmaria de “For No One” à “Helter Skelter” – ambas canções dos Beatles, a última inclusive usada pelo maníaco Charles Manson para justificar suas chacinas de 1969.
A vontade de chegar ao criminoso impulsiona Brown a outras sacadas brilhantes em série, fazendo as perguntas certas às pessoas certas, andando de ônibus pela periferia, suando e vociferando contra o destino. Pouco tempo se passa até que aponte o revólver para Dummont. O bandido safa-se por um instante – depois é morto pela polícia –, através do discurso filosófico de que detetive e marginal são descamisados, gente que se vira, cada um arranjando o seu. O ladrão não fala explicitamente estas idéias, mas ao preferir a morte a voltar para a cadeia, a fúria de Brown vai saindo do terreno instintivo e chegando à realização de que os dois são mais parecidos em sua pobreza do que diferentes em seu ofício. Esta escapada neo-realista rouba um pouco dos primores de “J.S. Brown”, mas não compromete-o por completo.
Os 90 minutos de “J. S. Brown” expõem um domínio grande das intenções de José Frazão e Tairone Feitosa, possibilitando à equipe de atores uma posição confortável, seguros do que iriam fazer. Frazão em 1986 realizaria “Vento Sul”, longa que agrega a estrutura de documentário à dinâmica de romance, para contar o caso verídico da exploração de substâncias tóxicas no Nordeste. Mas foi em “J. S. Brown, O Último Herói”, seu primeiro filme – nunca lançado comercialmente, salvo em vhs –, que Frazão atingiu o ápice. No policial que ousa ser policialesco e inteligente, o diretor aproveita esta dicotomia para implodir convenções e atingir o apuro estético. Brown é o herói de pernas tortas. Falho e criativo como só ele poderia ser.
Um comentário:
Em primeiro lugar, seu espaço internético é uma das melhores coisas surgidas com o propósito de falar e pensar o cinema brasileiro (a entrevista com Afrânio Vital está excelente e você consegue extrair, dele, toda uma vivência, toda uma trajetória).
Quanto a 'J. S. Brown', de José Frazão, foi exibido comercialmente apenas em Salvador, em 1980, nos cinemas (hoje desaparecidos) Capri e Excelsior. Porque moro em Salvador há anos, conheci Frazão, e, a título de informação, seu primeiro filme foi 'Akpalô' (1971), realizado em parceria com Deolindo Checcucci, uma 'trip' bem ao gosto do momento e do sentimento diante da censura dilacerante dos anos de chumbo. Filme cujos negativos desapareceram para sempre.
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