domingo, outubro 10, 2010

Sobre Tropa de Elite 2


Não sou Mãe Dinah nem tenho bola de cristal guardada entre antiqüíssimos vhs, mas ao assistir a esta segunda parte de “Tropa de Elite” saí do cinema com a certeza de que a maioria dos que levantaram um dedinho acusador ao primeiro filme, tachando-o de reacionário, “fascista”, ou qualquer outro xingamento para tudo o que não aprenderam nas aulas de Sociologia, estarão em breve esfregando as mãos satisfeitos e dizendo “Viram? O Padilha tentou se redimir!”.

Acontece que José Padilha – nome de canalha rodrigueano – possui invejável talento gauche. Pela enésima vez conseguiu dar um salto triplo mortal, mastigar dúzias de giletes e cometer crime hediondo para a intelligentsia
brasileira: pensar por si mesmo e entregar ao espectador um veículo de tese própria.

Se a tese parece boa ou não, se o conceito de filme-tese resulta em olhar pesado e hermético, o Capitão (agora Coronel) Nascimento diria o seguinte: parceiro, “Tropa de Elite” nunca quis saber de ilações relativistas. É uma catarse e pronto. O que faz o público desejá-lo ardentemente, disputar até continuações espúrias nas banquinhas de camelô, guarda ligação direta com essa falta de tato, com tamanha grosseria direto ao assunto.

Vocês se lembram?, no primeiro filme (ambientado em 1997) vilões eram os universitários da Pontifícia Universidade Católica, compradores do jererê malocado na famigerada vila dos diretórios. Milhares de balas perdidas depois, anos 2000, o leitmotiv se reduziu a coadjuvante do processo. E o que foi suprema ofensa – colocá-los na equação da tragédia – virou etapa vencida. Consumado o flagrante, playboys acuados, uma nova missão.

A ong instalada nas franjas da favela desapareceu, bem como o destemor ao som de Titãs. Deram lugar à profissionalização do discurso: o palestrante Fraga (Irandhir Santos), que prega contra o Bope e os métodos da polícia. Do outro lado, ele, Nascimento (Wagner Moura), anticristo do Evangelho da Maresia. Porém, ao longo do filme, tomamos um enrosco tal que urge reexaminarmos o primeiro episódio com novos olhos. Padilha teria se “redimido”?

Bobagem. Nascimento está onde sempre esteve. É um perdedor nato, cheio de dúvidas, incertezas e que alimenta na fidelidade canina ao Estado um portão para o inferno. A PM também é a mesma, corrupta e imprevisível. O BOPE, solução final do sistema. Os traficantes, peões de uma vontade sobre a qual não têm o mínimo controle. Um rebanho de mauricinhos assiste às aulas, voltando (nem sempre) inocentes ao Leblon.

Nada mudou na visão do diretor e roteirista. O que aconteceu foi a passagem do tempo e a explicação mais aprofundada de um personagem-chave: o intelectual de esquerda. Aquele que na primeira saga brandia um estereótipo – papagaio de Foucault – se desdobra em várias faces, resumidas em uma só. Fraga começa na toada de bobo alegre acadêmico, banca o macho em um heroísmo psicótico e termina usufruindo de simbiose com Nascimento, a dizer que ambos sempre representaram “o bem”.

Muita atenção nessa hora, crianças. Uma sutileza transpassa nossas cabeças: não propriamente este “bem” é o mesmo com o qual a intelligentsia compactua, o que anula aparente redenção do filme à pauta de seus vigilantes. Fraga representa, na verdade, a esquerda em ótimo ânimo ideológico, combativa e reta. É tipo antiquado, romântico, de vinte, trinta anos atrás. Com ele, Padilha cutuca grande parte do “esquerdismo” atual, que agarrado às bases acadêmicas e intelectuais, vende sua união ao fisiologismo, oligarquias e elites da pior estirpe como se fosse um pragmatismo útil.

Bom é bom, mau é mau. Preto no branco. Na tese do diretor, duas partes aparentemente opostas se unem por esse lema. E o que parece reviravolta é somente crítica abrangente e melhor formulada.

Percebam que “Tropa de Elite” começou apontando os garotos burgueses compradores de droga nas favelas, debochou dos pseudo-intelectuais, agora tripudia lembrando a esquerda sobre seus princípios, explica o funcionamento da corrupção nos subterrâneos da PM e ainda escarafuncha ligações entre crime e política. Não surpreende que, versados em tantas motivações diferentes, fornecendo pistas e conclusões satisfatórias, ambos os filmes gerem um tipo de empatia bárbara, justiceira e que pouco se difere da prática sensacionalista dos programas de tv que (também) ironiza, na figura do deputado Fortunato (André Mattos). Cena em que hordas uivantes assistissem ao filme dentro do filme, batendo palmas histéricas, completaria o circo de variedades.

Finalmente a questão das milícias, que o roteiro trabalha obsessivamente, ganha ainda mais sentido quando Nascimento divaga que “achando que combatia um mal, abria as portas para outro”. Fácil buscarmos aqui o resumo do que “Tropa de Elite” persegue desde as origens e pouca gente consegue atinar: um libelo em que todos são vítimas e todos estão alienados. Ser chamado de fascista nada representa para o Coronel Nascimento, família destruída, interesses escusos rondando. Ser chamado de fascista nada significou para Padilha, que jogou limpo, renovando sua aposta.


18 comentários:

Anônimo disse...

Acho q a violencia do Tropa de elite eh um aviso de q ninguem esta salvo e a corrupçao brasileira piora esta situacao. E um filme de acao q faz as pessoas pensarem.

Anônimo disse...

Ótimo o seu texto, muito diferente das críticas ovacionadoras que circulam a internet.

Mustang disse...

2 Observaçoes críticas e sem a menor intenção de ofender. Acho que voce viu mais coisas do que realmente existem no filme e seu texto parece querer mostrar voce mais do que o objeto analisado. Voltarei para ver se identifico estas características em outros textos, é a primeira vez que estou aqui e pode ser um julgamento prematuro. Cheers !!!!

Andrea Ormond disse...

Anônimo, de fato é um filme que consegue ser popular, mantendo um subtexto.

Obrigada, Rosano, sempre preferível analisar com calma os filmes, sem acreditar nas impressões mais óbvias.

Puxa vida, Fabio, ainda bem que apareceu você aqui para me dizer isso e iluminar os meus caminhos. Muito obrigada, viu? rsrs

Rodrigo disse...

Andrea, nao tem nada e ver com o tema aqui tratado mas voce ja'assistiu A Prisão do Osvaldo de Oliveira?acho esse filme impressionante, adoraria ler um relato seu a respeito.

Rita disse...

Como não tenho o preparo técnico/intelectual para analisar o filme sob seu olhar, pergunto-lhe: afinal, vc gostou ou não do filme? quais filmes brasileiros vc qualifica como bons? Abraço.

Andrea Ormond disse...

Rodrigo, vou escrever sobre "A Prisão", sim. Só preciso conseguir uma cópia dele em português ou dublado em inglês ou em espanhol. A que eu assisti infelizmente estava dublada em alemão.

Rita, os filmes brasileiros que eu recomendo estão na lista aqui à esquerda. Além disso, a seção de ensaios dá um panorama mais geral. Abraços

Rita disse...

Obrigada pela resposta. Gostei do filme, embora veja alguns exageros nas cenas de violência por isso compreendo as opiniões opostas. Sinto falta da parte dos críticos as críticas quanto à produção, fotografia, direção, roteiro, elenco, atuações, sem necessariamente deixar de expor suas opiniões sobre o enredo do filme. Daí a pergunta se gostaste do filme, embora o texto já tenha respondido. Abraço.

Rodrigo disse...

eu tenho uma cópia em VHS dublada em inglê com o título bare behind bars. Disponha

Rodrigo disse...

eu tenho uma cópia em VHS dublada em inglê com o título bare behind bars. Disponha

Andrea Ormond disse...

De nada, Rita, abraços

Bom saber, Rodrigo. Vou tentar localizar uma cópia, caso não consiga, te aviso.

Luiz com Z disse...

Agora que vi, posso comentar. Nenhum dos filmes é fascista, mas Beto Nascimento, até chegar a coronel, certamente era massa de manobra de bandidos de discurso fascistóide - e continua sendo quando inflama uma chacina em penitenciária. A meu ver, é a ingenuidade, essa faca de dois gumes que gera a correção ética de um lado e a utilidade aos tais interesses escusos de outro, é o que perpassa o protagonista nos dois filmes - até o momento em que se vê pessoalmente atingido. Só quando não tem mais nada a perder, ocorre o enfrentamento com o sistema, o showdown com o poder, a redenção do protagonista, com a teatralidade mais do que necessária pro mínimo de catarse de que um filme comercial necessita após - e durante - tanta desesperança transferida ao espectador naquele samba kafkiano. Só aí termina a ingenuidade. O que não termina, ainda que seja pra uma minoria dos personagens, é a ética. Quando tudo parece perdido (e nada define os últimos dez minutos antes da última cena melhor que esse chavão), Zé Padilha e Bráulio Mantovani nos acenam: quando a redenção não está na sociedade, está no indivíduo.

Anônimo disse...

andrea, por que suas críticas não estão sendo publicadas em um grande veículo? sem desmerecer o blog, mas sou muito fã de seus textos que fico me perguntando como não há mais gente tendo acesso a eles.

[]s

hector lima

gomademascar.net

Andrea Ormond disse...

Luiz, o que você chama de "massa de manobra de bandidos de discurso fascistóide" eu vejo apenas como uma fidelidade canina ao Estado e ao ofício policial.

Hector, boa pergunta :) Abraços

Roberto Pepino disse...

Sem dúvida que o primeiro Tropa foi uma catarse, catarse necessaria, muito usada pelo cinema hollywoodiano mas que de repente produziu a pecha de fascismo a Padilha. Este segundo, que usa Cassino/Scorsese na cena do carro e Poderoso Chefão III no filho, me deu uma impressão incômoda de ter continuado além de seu fim natural. O primeiro, que prometia um segundo, finalizou-se no black sobre o acuado Alemão. Este segundo prometeu um terceiro, quando Nascimento disse que "iria prá cima" de todos os que tentaram matá-lo. E disse isso de costas, com roupa preta, chamando um novo black finalizador. Mas eis que, aí, o filme segue com o discurso sobre os políticos, com aquele vôo constrangedor sob Brasília, e ainda mais constrangedor na cena mal feita na Assembléia Legislativa. Ali a impressão que deu foi de uma continuidade de ultima hora, quase que dirigido por outra pessoa, a toque de caixa. Como o personagem de Brandão Filho na Escolinha do Professor Raimundo, quando estava prá tirar um 10...

Anônimo disse...

A Hector e Andrea

Os textos de Andrea ainda não estão sendo publicados em um grande veículo, mas há gente na chamada 'grande mídia' com um olhar sensível e que consegue perceber quem realmente consegue criticar filmes de forma coerente. Um deles é André Setaro, cinéfilo e crítico de cinema, talvez um dos maiores do Brasil, e que colocou o link deste, e de outros blogs com bom conteúdo, em um de seus textos semanais no Terra Magazine. Segue o link: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4740627-EI11347,00-Viajando+pelo+espaco+virtual.html .

A propósito, e antes que eu esqueça, só conheci este blog por causa do referido texto.

Andrea Ormond disse...

Roberto, acho que aquele didatismo tosco no encerramento foi intencional, chamando o público, de forma pouco sutil, para uma continuação.

Rosano, excelente o texto do Setaro, de quem gosto muito. Por outro lado, a questão de "grande mídia" começa a ser bastante relativizada, já que vivemos um período de transição, onde muita coisa está se modificando.

Anônimo disse...

Sempre adorei cinema e em special o cinema brasileiro.Apesar de gostar muito de cinema e assistir a muitos filmes,não tenho conhecimento técnico e nem a intelectualidade necessária pra fazer uma simples análise se que de um films.Mas,humildimente,sempre percebir que nos filmes policiais brasileiro há sempre uma dicotomia:poliacial e bandido e a maioria desses filmes tenta nos passar uma imagem romântica do bandido e os lococando como vítima do que bandido propriamnete dito.
Isso não se percebe em tropa de elite,tanto no primeiro quanto no segundo.O filme aborda um grande problema social e que na minha opinião,policiais,traficantes,consumidores de drogas e a sociedade em geral são vítimas.O filme é imparcial,não faz apologia ao crime e por isso não o acho fascista.

Abraços