terça-feira, outubro 12, 2010

A Estrela Sobe


Quando o “Clube do Paredão” – comandado por Adhemar Gonzaga, futuro colosso da Cinédia –, caminhava pelo Distrito Federal nos anos 1920, em alguma ponta da Avenida Rio Branco já corriam qüiproquós sobre a tal radiofonia, a mesma que havia participado nos festejos do centenário da Independência. O sermão do presidente Epitácio Pessoa e o discurso oficialista de “O Guarani” formaram no 7 de setembro de 1922 a primeira transmissão a chocar um público seleto que, por instantes, pensou tratar-se de algo sobrenatural – vozes vindas do além inexpugnável.

De fenômeno mecanicista – e, como visto, elegíaco –, o rádio transformou-se em ícone do século XX, acompanhando a tendência pop de reproduzir informações em larga escala, caída de joelhos à tecnologia, ao sonho mesmerizado de ascensão social. Sim, porque o lúmpen recebeu retoques, virou star, deixou as marmitas na casa de mãezinha e tentou glórias que emprego assalariado algum permitiria.

Nesse fenômeno conturbado se apoiaram Carmen Miranda, Francisco Alves, Orlando Silva, Elizeth Cardoso, Emilinha Borba, Marlene – a minha preferida e da Marinha –, cada qual à sua fase, repassando-se o bastão até a inclemente chegada da babá eletrônica. Se coube ao pirlimpimpim de Ademar Casé – não o Gonzaga – dar a liga comercial para viabilizar o rádio, coube à televisão relegá-lo a um ponto distante na escala Richter das preferências domésticas.

“A Estrela Sobe” (1974) – segundo longa de Bruno Barreto, imediatamente anterior a “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1978) – usa de um artifício interessante para juntar os dois segmentos, adaptando de maneira renovada o romance homônimo de Marques Rebelo (1939).

O roteiro – de Cacá Diegues, Leopoldo Serran, Isabel Câmara e do próprio Barreto, – divide Betty Faria em três: Leniza moça (protagonista do livro), Leniza idosa e Caloura sem nome, em programa de televisão (essas duas, inexistentes no romance). Com alguns acordes do atualíssimo “Como vai você”, de Antonio Marcos, a Caloura atinge de tal maneira a senhora que a deixa nostálgica, divagando sobre a história de sua juventude. Insere-se aqui o elemento da televisão que em 1974 pulsava à base de Chacrinha, Janete Clair ou de qualquer cria em que o enfant terrible Walter Clark – produtor do filme e midas das Organizações Globo – colocasse o dedo.

Dali para frente o original de Marques Rebelo toma conta da trama. Eis a pobre Leniza Mayer, auxiliar de laboratório farmacêutico, órfã de pai, na corrida corpo e alma para ser diva, cantora, monstro de audiência. Encara o sexo por encomenda, a investida lésbica, o aborto, a solidão, a fuga da genitora que se enoja da filha. O final em aberto do livro apresenta o típico sortilégio modernista: antes de ser apelo à moral e aos bons costumes, constata que a personagem toma seu rumo, fora do controle do narrador anti-onisciente. O filme, por sua vez, retorna à cantora idosa para dar o fecho às memórias.

Em todo tempo, louva-se o tanto de desilusão do argumento, na fotografia de Murilo Salles e na trilha sonora de Francis Hime. Mário Alves (Carlos Eduardo Dolabella) – galã dos “sorvetes dançantes” – deflora Leniza numa longa cena, consensual, em que o asco e o robotismo da mulher deixam uma janela aberta para se saber aonde ela teria ido se refugiar mentalmente. Idem as fotos pecaminosas tiradas por Dulce Veiga (Odete Lara), antes de Leniza ir ter seus delírios sado-masoquistas com o novo mecenas. Dentre outros achados do roteiro, destaque para Grande Otelo em um falso filme da Atlântida, e para a manchete com Orson Welles – em “Tudo é Verdade”, mencionando o falecido jangadeiro Jacaré, que de fato existiu.

Sob o prisma radionovela, que por vezes invade o enredo, deu-se a César o que era de César: a maquiagem do império de devassidão ficou a cargo de Carlos Prieto – que aparece em breve ponta. Irmão e orientador devocional de Adriana Prieto, Carlos era figura carimbada de inúmeros projetos, ancorando em “Rainha Diaba”, de Antonio Carlos Fontoura, no mesmo ano.

Encarado o périplo de Leniza Mayer, entre cigarrilhas e ombreiras esvoaçantes, ecos da Rádio Nacional ao fundo,“A Estrela Sobe” dialoga com aspectos fantasiosos e realistas, divertindo o espectador, sem maiores ressalvas. O mais atento perceberá que Betty Faria foi dublada, por Norma Blum, em quase todos os fotogramas – segundo consta, por alguns desentendimentos.

O caldo, porém, de maior atenção reside no aspecto humano dos fetiches em torno de comportamentos em massa. Enganam-se os apressados que pensam ser exclusividade da contracultura a atitude de tirar o glacê do bolo e plugar o microfone nas feridas da indústria. O aventureiro “Em Busca do Susexo” (1970) e o clássico “Bebel, Garota Propaganda” (1968) – de Maurice Capovilla, baseado em “Bebel que a cidade comeu”, de Ignácio de Loyola Brandão – são exemplos marcantes. O erro, porém, de tê-los como únicos pontos de partida se deve ao fato de que a memória afetiva criou ícones com os quais o preto-e-branco de uma Theda Bara ou as heráldicas de um Fitzgerald ou mesmo de Marques Rebelo têm dificuldade para competir. Colocá-los em diálogo com realizações posteriores nos dá a dimensão mais aproximada do legado que vieram a elevar.

4 comentários:

André Setaro disse...

A lembrança que tenho de 'A estrela sobe', que vi no seu lançamento (circa 1975), é de um filme artesanalmente bem feito e que envolve, de certa maneira, o espectador. Barreto faria logo depois, aqui em Salvador, 'Dona Flor e seus dois maridos', cuja estréia, a nível nacional, se deu em 1976 (o seu texto 'diz' 1978).

A sua análise desse filme é perfuratriz. Apenas.

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Setaro, vi "A Estrela Sobe" em uma dessas minhas garimpagens, há muito tempo. Achei particularmente interessante o retrato da era do rádio de maneira crua, muito pelo livro do Rebelo. Do Barreto, ainda prefiro "Amor Bandido".

sitedecinema disse...

"...coube à televisão relegá-lo a um ponto distante na escala Richter das preferências domésticas."
Excelente, Andrea.
Acho esse filme extremamente simpático, com um ´Q´ de melancolia. Acho q o Bruno não tinha 20 anos quando o dirigiu!

Andrea Ormond disse...

site de cinema, ele começou bem. Degringolou com o tempo...