terça-feira, agosto 08, 2006

Terror e Êxtase


Uma velha senhora (Gracinda Freire) está sentada em um banco no final da praia do Leme, ao lado do Caminho dos Pescadores. Com uma garrafa de vodka nas mãos, pragueja contra a vida. Seu destino é beber e no dia seguinte resolver o porre com “copos e mais copos de água gelada”. Mas eis que, naquele princípio de manhã, um fusca conversível estaciona por ali e do carro salta o marginal Mil e Um (“apelido de bandido quando pega, pega de vez!”), aborda a mulher e os dois discutem. O bandido saca uma arma e acerta dois tiros na testa da vítima.

Com esta vinheta melancólica e doentia inicia-se “Terror e Êxtase” (1979), um dos melhores filmes policiais brasileiros, dirigido por um especialista no gênero, Antônio Calmon.

Baseado no livro homônimo de José Carlos Oliveira, “Terror e Êxtase” foi visto à exaustão nos anos 90 pelos adolescentes que descobriam o cinema nacional através das sessões da Tv Bandeirantes. Injustiça que fosse notado apenas pelas tórridas cenas entre o primitivo Mil e Um (Roberto Bomfim) e a dondoca Leninha (Denise Dumont). Além do aspecto voyeurístico, a trama oferece também um apanhado cuidadoso das relações conflitantes entre a classe-média e a periferia da cidade, que encontram no tráfico de drogas seu denominador comum e combustível de desgraças.

Leninha é uma menina da “patota barra-pesada do Baixo Leblon”, o que para bom entendedor do subtexto carioca traduz-se por abastados filhinhos de papai, que encaram uma vida vazia e sem perspectivas mergulhados em toneladas de pó e noitadas de farras. Militante dessa tribo, Leninha paradoxalmente odeia a burguesia – odeia a si mesma – e quer enfiar o pé na jaca, sem saber direito como.

Quando conhece Mil e Um – ele romanticamente tenta assaltá-la – junta-se a vontade e a necessidade. O casal parte para o morro, transam, se apaixonam. Mil e Um tem resquícios de filosofia de porta de botequim e paternalismo barato, que encantam a moça. Ela, por sua vez, oferece a ele aquele tipo de carinho que meninas muito jovens associam à maternidade, em uma doçura ingênua e um bocado irritante. No afã de continuarem juntos, Mil e Um descobre a pólvora e tem a idéia de seqüestrar um amigo de Leninha, o junkie Betinho (André di Biase).

“Ele trabalhou uns tempos em um jornal, aí enjoou, ficou de saco cheio, aí ele largou tudo e agora está escrevendo literatura udigrudi, ele diz que é contra o sistema (...) O Betinho é tão rico por parte de pai e de mãe que ele simplesmente não consegue ser pobre, entendeu? Por isso que ele é revoltado” – é assim que Leninha introduz Betinho para seu homem, que convence a moça a levá-lo na casa do garotão, e, com uma quadrilha de assaltantes de terceira categoria, assaltam primeiro um banco e depois seqüestram Betinho, na ação alucinada de bandidos em fim de carreira.

Leninha precisa ser “mãe” de Betinho e de Mil e Um; logo, enquanto consola o seqüestrado, afaga o sequestrador. Da gangue faz parte Minhoquinha (Anselmo Vasconcellos), psicopata perigoso, que assassina o cachorro da casa apenas para desocupar espaço e prender o zelador no canil. Quando a relação entre Mil e Um e Leninha se desgasta, na pressão psicológica a que estão expostos, o bandido permite ao comparsa que estupre sua namorada, em cena dantesca onde brilha a capacidade e o desprendimento dos quatro atores para que o susto saísse perfeito.

Nada escapa aos olhos de Calmon, que junto com Álvaro Pacheco Júnior adaptou o romance dificílimo do lendário Carlinhos de Oliveira, nome associado à crônica, mas que em “Terror e Êxtase” documentou em um texto longo e complexo todas as nuances do universo paralelo que se ocultava no país.

Capitalizando a droga e a contravenção, a elite naquele tempo abria as portas para o caos institucionalizado que vivemos nos dias de hoje. Assim, nada melhor do que citar Mil e Um, na seqüência final, se explicando para Betinho: “Desculpe o mau jeito, garotão, mas guerra é guerra!”.

9 comentários:

André Setaro disse...

Desde que vi 'Terror e êxtase' no seu lançamento gostei muito do filme, que envolve o espectador pela capacidade artesanal de Calmon e pela força dos personagens. Mas houve, na época, um estrondoso silêncio da crítica injustificável.

Anônimo disse...

Após um período de desinteresse dentro do cinema nacional, os filmes policiais (gênero que eu adoro!) voltaram a ser valorizados por diretores e produtores. Não sei se você já assistiu a Achados e Perdidos (baseado no livro homônimo do Luiz Alfredo Garcia-Roza). Se não, veja! é maravilhoso. Esse ano ainda tem O Caso Morel, com Peter Fonda e Lázaro Ramos. Para os fãs do cinema que aborda a criminalidade, as produções nacionais têm se transformado num prato cheio. Abraços do crítico da caverna cinematopgráfica.

Anônimo disse...

Oi Andréa,
Hoje ainda devo botar o compacto da enbtrevista do Aguilar. Deu mais de 50 páginas e só dá pra botar 80 palavras nos blogs do UOL. Por isso, nao devo postar toda entrevista. Já o Calmon, meu preferido é NOS EMBALOS DE IPANEMA, que é uma obra-prima. Gosto das pornochanchadas também, tipo "O Bom Marido", entre outras. Desses policiais, sinceramente não sou muito fã. Principalmente deste e o outro do Lúcio Flávio. Mas o pior dele é "Mulher Sensual", até ele já declarou isso. Deve-se fazer um estudo sobre o cinema policial no cinema brasileiro, tem cada coisa boa. Mas tem tanta coisa, é um cinema riquíssimo, graças a Deus. Abraços e saudações, Matheus.
PS: devo te mandar um e-mail em breve, agurde.

Andrea Ormond disse...

André, o silêncio é injustificável mesmo, no mínimo pelo trabalho de adaptação de um livro difícil, e que consegue manter no filme o interesse do espectador com personagens super visuais, carismáticos.

Roberto, não vi o "Achados e Perdidos", do Joffily, só li o livro do Garcia Roza. E os livros do Rubem Fonseca costumam gerar filmes interessantes, o "Lúcia Mccartney" do David Neves ainda é o meu preferido. Vamos ver se "O Caso Morel" faz jus à lenda :) Abraços!

Matheus, essa burocracia do uol atrapalha, é uma pena não podermos ler toda a entrevista de uma vez. Tb tenho umas novidades pra te contar, estou tentando fazer surpresa mas está difícil rs Abraços

Anônimo disse...

Olá!
Venho procurando esse filme em tudo quanto é lugar e nada...
alguém pode me ajudar a conseguir uma cópia...
P.S.: Tenho contato para conseguir cópia de Navalha na Carne 1969
vlw

Anônimo disse...

sehis@msn.com

Anônimo disse...

EDEVALDO JOSE STRAPASSON VI DUAS VEZES E ADOREI TERROR E EXTASE, O CINEMA NACIONAL É O MELHOR DO MUNDO, É OUSADO, ATREVIDO, MOSTRA REALIDADES. EDEVALDO (EDEVALDO JOSE STRAPASSON) CANTOR COMPOSITOR INSTRUMENTISTA COLOMBO PR 1971, NA MÚSICA DESDE 1989. CONTATO 041 3666 1449

Jorge Lobo disse...

Olá! Vi esse filme há muitos anos na extinta tv manchete mas pra mim ficou uma marca inesquecível, tanto pela realidade retratada, sustentada por um bom roteiro, quanto pelo ritmo muito bom imprimido pela direção, auxiliado por uma boa música. O "bom" cinema nacional de hoje em dia deveria espelhar-se em filmes como esse e aproveitar melhor a rica literatura do país.

ADEMAR AMANCIO disse...

Ótima análise,vou ver o filme.Ainda bem que o blog não saiu do ar,quer dizer,da nuvem.