quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Mulher Tentação


Dando prosseguimento ao mapeamento dos filmes produzidos por David Cardoso (pelas mãos de quem chegaremos até a filmografia do grande Ozualdo Candeias, falecido este mês), temos Ody Fraga dirigindo e roteirizando um argumento próprio em "Mulher Tentação", lançamento da Dacar Produções em 1982.


Próximo da onda de filmes explícitos que implodiriam a Boca a partir de 83/84, o filme já exibe alguns traços que se tornariam característicos: closes quase ginecológicos, isso naquilo, aquilo nisso e variações que os leitores conseguirão imaginar perfeitamente.

No entanto "Mulher Tentação", trata-se, antes de mais nada, de um exemplo do sincretismo comum no cinema brasileiro da época: a mistura entre aspirações estéticas e comerciais, no caldo das perversões que gradualmente iam sendo liberadas pela Censura Federal, no quase-crepúsculo da ditadura.

Fato inegável, o resultado final dessa mistura acaba sendo truncado. Não se entende com clareza o que Ody Fraga provavelmente tentou no roteiro. Crítico, ensaísta, dramaturgo, ex-seminarista protestante, Ody possuía passagens de prestígio por cadernos literários, grupos teatrais e trabalhos free-lancers. Sabia como poucos acumular erudição renascentista e malícia suficiente para acompanhar a trajetória das bilheterias. Morto de infarto fulminante em 1987, no pequeno apartamento aonde estocava a biblioteca de mais de 3.000 livros, teclava na máquina mais um roteiro -- a ser vendido nos estertores da Boca, naquelas últimas horas de uma festança que parecia cada vez mais distante.

Portanto, se não é possível classificar Ody pura e simplesmente como um naïf ou, na pior das hipóteses, um displicente -- alguém que não conhecesse perfeitamente bem os nós que um roteiro de cinema é capaz de apresentar --, "Mulher Tentação" acaba se revelando na verdade como ele verdadeiramente é: um conjunto de elementos insólitos.

Desde a tentativa de imprimir um mal-estar khouriano -- nos closes totais na personagem Marina Assunção ou na temática sobre o não-ser e o vazio sexual da moçoila e das pessoas ao redor --, passando pela procura de um "bom gosto" da produção -- nas letras serifadas dos créditos, nas telas que combinam aleatoriamente Vermeer, Rembrandt e Cézanne, ao som de "She" em flautas soporíferas, supostamente no clima de "bela arte" -- tudo soa fora de lugar e, por isto mesmo, como de hábito, interessante de ser assistido.

Sem Rogério Duprat na direção musical, mas castigando no mote das flautinhas -- em certo ponto é usada a estrutura rítmica da fuga, tentando deliciar algum pornô-barroquista de plantão --, o sexo explícito se funde em tédio vez por outra, mas quase sempre os diálogos salvadores aparecem e redimem todo o resto.

Melissa (Sandra Graffi) e Rodolfo (Luiz Carlos Braga, diga-se de passagem corajoso por interpretar maridos traídos e homossexuais enrustidos, a exemplo do personagem em "As Seis Mulheres de Adão" do mesmo ano, também com Ody, Graffi e Cardoso) esperam Marina, sua mãe e esposa, respectivamente.

Instável, sabendo que a mãe está se entregando pela enésima vez ao capataz -- que também recebe alguns trocados de Rodolfo para copular com as empregadas na frente do patrão --, Melissa sacode-se na poltrona. E entre o olhar distante e a súbita raiva, pergunta o porquê da demora da mulher.

-- Ela é vagorosa no vestir -- Rodolfo responde numa fleugma britânica.

-- Pai, tu é um manso mesmo -- manda a garota no estilo Rua Aurora, que invade a tela e será a tônica dessa ambivalência entre o que se supõe "sofisticado" e o que se supõe "popular" no filme.

A troca de delicadezas entre a família chega às raias da traição quando Marina, socialite ninfomaníaca, ataca o namorado da filha (Sérgio), no escritório do rapaz. Na véspera, Melissa e Sérgio haviam se desentendido justamente pelas encucações que travavam sexualmente a menina. Tentaram uma incursão pela noite paulistana, sem qualquer probabilidade de melhorar a situção. Combinavam de se darem uma chance, mas eis que Marina, nos instintos mais primitivos do que os de Joan Crawford, destrói a possibilidade de realização filial.

Interessante notar que o tour, por si, diz muito daquela tentativa de composição khouriana. Há referência explícita a "Noite Vazia" em cena passada no rendez-vouz japonês. Subindo a sonoplastia, quebra-se porém essa referência -- não se sabe se propositadamente ou não. No momento em que a gueixa dedilha o shamisen, ouvimos a todo vapor uma guarânia (!), trilha sonora recorrente e enaltecida nas produções de Cardoso, célebre pantaneiro.

As miudezas de composição dos quadros -- neste sentido, a direção de fotografia de Cláudio Portioli é fundamental -- e a pulsão entre o membros da família, também pretendem alguma sutileza, mas é logo afastada pela concretização das taras de Rodolfo -- que menciona, rapidamente, a sua atração por cavalos. Sim, o mito eqüino, sempre povoando os sonhos de filmes rodados nos 70/80, seja em "Giselle", seja em "Emanuelle in America", para lembrarmos dois exemplos clássicos.

Nos últimos 30 minutos a montagem infelizmente perde um pouco do pique e parecemos assistir à repetição de uma mesma piada-base: os delírios do patriarca, que corre de porta em porta, feliz de observar em delírio a esposa, a filha e o capataz, cada qual com seus respectivos acompanhantes, num frêmito danado.

Finalizadas as danças do acasalamento, todos se despedem, o ex-namorado de Melissa dá uma carona ao atual, o Passat cor de creme se afasta, o portão da casa senhorial se fecha, e as luzes provavelmente se acendiam na sala escura. Estafados, correndo para o trabalho, um a um, os contínuos, os chefes, os respeitáveis, os de reputação nem tanto, muitos sem perceberem a tensão entre os referenciais dentro e fora das telas, cumpriam com seus préstimos à produção nacional, induzidos pelo ofício de gente talentosa, como o inefável Ody Fraga.

7 comentários:

Anônimo disse...

Que bom o teu retorno Andréa. Durante todo este período visitava frequentemente teu blog no afã de ler os inteligentes e deliciosos textos que você costuma postar. Estava a ponto de enviar um e-mail clamando por teu retorno, mas não me atrevi. De qualquer modo valeu a pena esperar já que, como era de se esperar, você voltou com a mesma classe e com um texto divertido, pontuado por fina ironia e com a seriedade em seu devido lugar. Bravo!

Anônimo disse...

Excelente retorno! Não nos deixe mais de castigo por tanto tempo, Andréa:)
Beijão!

Anônimo disse...

Oi Andrea, ótima a sua volta e espero que neste 2007 você continue com esse fantástico blog com tudo. Pra mim "Mulher Tentação" é uma obra-prima, é Nelson Rodrigues na Boca do Lixo. Como você disse, a atuação do Luiz Carlos Braga é incrível e digna de nota. Belo resgate da fotografia do excelente Cláudio Portioli, ele merece.

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Márcio. Demorou um pouco, mas de qq forma espero que o texto não tenha decepcionado. Quando quiser, envie o email sim, claro :) Abraços

Valeu, Sergio. E em relação à Mostra, vou esperar se aproximar um pouco mais a data para divulgá-la aqui no Estranho e o pessoal não se esquecer :) Beijos!

Oi, Matheus. O Luiz Carlos Braga está muito bem realmente, de um cinismo incrível. Acho que o "Mulher Tentação" tem alguns problemas sérios, mas no cômputo geral tem aspectos legais de serem trabalhados.

Anônimo disse...

Olá... Andréa, vistei seu blog e adorei. Falas de um cinema que me interesso que ficou no ostracismo uma pá de tempos. Vou deixar aqui meu e-mail e trocaremos então umas idéias sobre esse teu trabalho. Aproveito e te apresento o meu. O meu e-mail é marcelxx@hotmail.com

beijo e parabéns

Anônimo disse...

Aff... é só um filme de sacanagem, tem nada disso não...é como diz o ditado "o sentido está nos olhos de quem vê". Abs. Thomás

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu jurava que tivesse feito um comentário quando li pela primeira vez.O Luiz Carlos Braga também faz um homossexual que persegue David Cardoso em ''Corpo Devasso''.Eu também destacaria a beleza de Waldher Laurentis.Gostaria de salientar também o olhar profundo de uma pessoa qualificada como a crítica Andréa Ormond.