domingo, fevereiro 18, 2007

Caçada Sangrenta


Ozualdo Ribeiro Candeias faleceu aos 84 anos de idade, em São Paulo, no último dia 8 de fevereiro.

Difícil imaginá-lo preso a um leito de hospital, impossível cogitar a quantidade de impropérios que deve ter desferido a seu passado ou mesmo à ausência de seu futuro, principalmente se o considerarmos uma alma itinerante que -- a contragosto ou não -- tornou-se refúgio das expectativas sobre um determinado ideal cinematográfico.

Agricultor, motorista de caminhão, cafetão, crupiê, astronauta, todas as ocupações que teve e as que não teve somam-se à lenda urbana do realizador que, egresso do povo, retratou-o com conhecimento de causa polido à base de educação cinematográfica formal, já nos idos da década de 50 -- quando contava mais de 30 anos.

Esse contato direto com o meio acadêmico é possivelmente a primeira das diferenças sutis em relação a outro ícone do cinema nacional, José Mojica Marins -- com quem, aliás, dividiu os créditos da "Trilogia do Terror" (1968): Mojica dirigiu o episódio "Pesadelo Macabro"; Candeias, "O acordo"; Luiz Sérgio Person, "Procissão dos Mortos".

Quando rodou em 1974 "Caçada Sangrenta", primeiro filme produzido pela Dacar, de David Cardoso, Candeias via-se na posição pouco confortável de autor reverenciado, associado a estruturas minimalistas de produção -- os recursos financeiros eram parcos; as equipes, enxutas -- e à anti-linearidade narrativa. Não à toa, seu primeiro longa-metragem, "A Margem" (1967), passara a ser metonimicamente identificado com o advento do próprio Cinema Marginal.

Espectadores mais atentos o notarão, ainda, na faceta de ator -- pontas em "O Bandido da Luz Vermelha" (1968) e "O Ritual dos Sádicos" (1969) -- ou na equipe de produção de filmes atípicos a seu ethos paticular -- "O Quarto" (1968), de Rubem Biáfora; "Agnaldo, Perigo à Vista" (1969), comédia estrelada por Agnaldo Rayol, secundada por David Cardoso.

Apesar de improvável, a presença na picardia lollipop de "Agnaldo, Perigo À Vista" possibilitou uma parceria entre Candeias e Cardoso que viria a ser retomada em "A Herança" (1971) -- dirigida por Candeias, uma subversão do "Hamlet" shakesperiano, com o galã no papel de Omleto.

A dupla reencontra-se três anos mais tarde, a pedido de David, então cabeça da Dacar Produções. E se considerarmos o começo da Dacar -- com muito de brasilidade e encantamento pelo poder, numa tônica da gestão cultural no país --, os detalhes vistos acima e nem tanto os aspectos estéticos do filme em si, "Caçada Sangrenta" alcança fácil o status de cult.

Suposta ode ao estado natal de Cardoso, Mato Grosso, "Caçada Sangrenta" foi financiado grande parte por um belo patrocínio: através de amigos em comum, David contactou o governador José Fragelli, conseguiu uma audiência, prometeu a exposição das belezas naturais do pantanal e afins, e dali por diante bastou pouco tempo para terem às mãos, importada e tinindo, uma Arriflex novinha em folha.

A pobre coitada, sem saber, acabou sendo responsável por colocar no ar mais de cinco minutos seguidos de noticiário sobre a Transpantaneira, o Brasil grande, desfile de Sete de Setembro com direito a poster do General Garrastazu Médici, além do progresso em Corumbá e Ponta Porã, tudo em um tom de triunfalismo que deve ter "desagradado" -- para não usarmos outro termo mais incisivo -- o exigente Candeias.

E dessa disparidade entre uma concepção "autenticamente" candeística e outra "autenticamente" voltada para garantir nas bilheterias o retorno dos investimentos da Dacar e dos co-produtores (Gilberto Adrien e José Eduardo Rolim), o filme torna-se manco, preso pelas pernas, com momentos raros de inventividade.

Neco (David Cardoso), suspeito do assassinato de uma ex-amante, é o easy-rider que foge de São Paulo após se envolver com uma mecenas morta brutalmente por um amigo. Com a maleta cheia de dinheiro, cruza o interior matogrossense, distribui tapas, pancadas, se enrosca com mocinhas liberadas, até que na maré de azar acaba encontrando um triste fim.

Também autor do argumento e do roteiro, a impressão que se tem é a de que em determinado momento Candeias simplesmente decidiu deixar o barco correr solto e aproveitar, com o frêmito beatnik de sempre, a oportunidade de viajar pelo Brasil Central. Mesmo sem a observação do material bruto em si, os depoimentos dos envolvidos deixam clara essa combustão entre perspectivas diferentes que acabaram prejudicando a construção do filme.

Cite-se a costura rápida no início -- ainda no ambiente urbano de São Paulo, em que o diretor sentia-se mais à vontade --; o senso de humor aqui e ali -- o nome de Pedro Rovái aparece na caderneta de telefone do protagonista --; e, de resto, esporadicamente Candeias dava o ar da graça: as cenas de luta tentam fugir do bom-mocismo -- há chutes abaixo da linha da cintura -- e angulações constroem quadros que o público mais ortodoxo do "Amaral Netto Repórter" não acharia muito agradável.

Existem momentos, porém, em que Neco se aproxima por segundos de um simulacro de "El Topo"; e nestes instantes as andanças a cavalo previsíveis tentam demonstrar a solidão e a farsa do protagonista.

Passados mais de trinta anos, temos ao fim a constatação de que Candeias dirigiria apenas outros cinco longa-metragens -- "A Opção" ou "As Rosas da Estrada" (1981), "Manelão, o Caçador de Orelhas" (1982); "A Freira e a Tortura" (1983), novamente com Cardoso; "As Belas da Billings" e "O Vigilante" (1993) -- e, no total, onze curtas.

Avesso às badalações de praxe, trancou consigo uma fração considerável de nossa identidade fílmica. Silenciosa e feérica, sempre à espera de um próximo encontro com as telas. Reencontro desta vez frustrado, por nunca mais vir.

7 comentários:

Anônimo disse...

Cara Andréa, assisti apenas três longas de Candeias - A MARGEM, A OPÇÃO e A FREIRA E A TORTURA - de qualquer modo representa quase 50% da sua filmografia em LM e, pelo que percebo, os dois primeiros que citei são talvez os filmes mais representativos deste diretor. Sei que é "chover no molhado" lamentar tanto descaso com criadores do porte de Candeias, mas ainda assim creio ser fundamental continuarmos lamentando. Justiça seja feita a todos esses inventores do nosso cinema porque a arte permanece. Mais uma vez você nos presenteia com outro grande texto. Espero ler mais posts sobre os filmes de Candeias em teu blog. Parabéns.

Anônimo disse...

Adorada Andréa, soube que em breve estarás aqui, é verdade? Quero muito conhecê-la. Estou passando por aqui pra lhe informar que o focinho gelado morreu e estou de casa nova. o nome do meu novo blogue é O FOCINHO DE PAVLOV e o link é http://focinhocerebral.blogspot.com. Atualize seu link! Beijos!

Leonardo Bomfim disse...

A Margem é um dos filmes mais bonitos que já vi! Uma pena que o cinema mais experimental no Brasil seja apenas sinônimo de GlauberGlauberGlauber... hehehe

As pessoas perdem tanta coisa!

Andrea Ormond disse...

Márcio, pra vc ver, mesmo no Canal Brasil assisti a pouquíssimos longas do Candeias. Talvez os mais fracos. Isso dificulta bastante o nosso acesso aos filmes do grande diretor. Abraços!

Fernando, querido, em breve estarei! Assim que resolver os detalhes da viagem, mando um email pra vc e combinamos de fazer um tour básico por sp :) Coloquei o focinho volume 2 nos links. Beijo!

Leonardo, as pessoas se acostumaram a trabalhar em linguagem binária: ou os filmes têm um determinado iso 9000 ou não são nada. É um obscurantismo terrível...

ADEMAR AMANCIO disse...

O David Cardoso chamava o Diretor de hermético,para os padrões da Boca...

Encontrei uma cópia.

ADEMAR AMANCIO disse...

Estou revendo o filme e relendo a ótima resenha.

ADEMAR AMANCIO disse...

Estou aqui de novo,carácoles!