sexta-feira, outubro 21, 2005

O Último Êxtase


“O Último Êxtase” parece-me um filme de transição, em que não se encontram muitos referenciais para a obra de Walter Hugo Khouri, estando especialmente rarefeitos quando contrapostos à amplitude autoral de “O Corpo Ardente” ou “Eros, o Deus do Amor”. Filmado em 1973, é imediatamente posterior a “As Deusas” (1972) e antecede “O Anjo da Noite” (1974), com o qual compartilha uma abordagem vagamente vouyerística – refletida em alguns travellings que passam a impressão, ao espectador, de os personagens estarem sendo observados à distância por um terceiro não-convidado.

Marcelo – protagonista que corresponde a um duplo ficcional do diretor, alter-ego retrabalhado artisticamente ao longo de inúmeras incursões às telas – é vivido, em “O Último Êxtase”, por Wilfred Khouri, então adolescente de 18 anos de idade. Na resenha de “Eros, o Deus do Amor” foram traçadas algumas linhas gerais sobre a genealogia de Marcelo, e a elas remeto os leitores. Creio que sejam um bom ponto de partida para acompanharmos outras nuances de “O Último Êxtase” e até mesmo colocá-las em cheque, aumentando o debate em torno de pontos cruciais do universo khouriano.

A persona materna de Marcelo possui qualidades dramatúrgicas e oníricas riquíssimas – basta citarmos as mães de “O Corpo Ardente” ou “Eros”, acompanhadas das imagens de animais reprimidos ou que se esquivam de domínio. Se formos usar uma escala comparativa, sabemos bem pouco do pai e menos ainda dos irmãos.

Mas em “O Último Êxtase” encontro um trecho ao qual deve-se prestar atenção, porque talvez nele existam possibilidades de tratamento ficcional que acabaram nem sendo levadas a termo na cinebiografia de Khouri.

“Eu acampei aqui há mais de dez anos, quando era pequeno. Com meus pais e meus irmãos, nunca mais esqueci aqueles tempos, sempre quis voltar. A gente dormia junto. Eu era o menor e dormia entre o meu pai e a minha mãe.”

O aqui, referido acima, é o cenário usado parcialmente em “As Deusas”: a floresta, a vegetação conífera, a represa em que Ana e paciente banham-se e devoram-se, e que por ora abrigava o grupo de quatro adolescentes (Wilfred; Ewerton de Castro, com longas madeixas loiras; Dorothéé Marie Bouvyer, antes de tornar-se a professora secundarista de “Eros”; Ângela Valério, futura esposa do “Vampiro de Copacabana” (1976), belo filme de Xavier de Oliveira).

Marcelo foge de casa, da família, e retorna, com os amigos, à utopia da infância. Traz consigo a namorada (Valério), como se fosse um cajado, um utensílio algo indissociável junto ao qual permanece na “barraca grande e aconchegante” em que certa vez adormecera com os pais. A menina é sua, fazem amor pela primeira vez, tenta imprimir na acompanhante uma carga emocional que possivelmente não seja sentida por ela. Afinal, qual a graça de ficar horas e horas observando a chuva cair quando se tem os hormônios em fúria, loucos para saírem da rotina habitual? O outro casal reclama, “esse menino é cheio de manias, ele me irrita”, diria a personagem de Bouvyer, sem atinar a roda de solidão e sofrimento que acontecia no entorno. Os três desconheciam o subtexto, nenhum estava sintonizado no mesmo delírio do garoto que repetia:

“Era uma barraca grande e quente, aconchegante, às vezes até parecia brincadeira de criança. A gente nadava e pescava. Um dia choveu a tarde toda e ficamos dentro da barraca olhando a chuva. Sempre me lembro daquela chuva. O ruído dos pingos na lona. Todo mundo contente.”

Não à toa, a chegada de um casal de meia-idade (Lilian Lemmertz e Luigi Picchi) implode o encadeamento neurótico que Marcelo criava com os amigos. Já havia experimentado um último êxtase e não mais o repetiu, pois a namorada dança com os outros, é consolada pela outra mulher (Lemmertz), uma aparição, linda, a ponto de despertar e concretizar uma escapulida com Jorge (Ewerton de Castro). O marido (Luigi Picchi) corresponde ao flerte de Bouvyer, delinenando um homem viril, ex-prisioneiro de guerra, que joga Marcelo vergonhosamente no chão quando o menino tenta ameaçá-lo com o revólver. Acabrunhado, ofendido e melancólico, é o “cara esquisito” que retorna para casa sozinho, sobre a lona de um caminhão, a mochila ao lado, São Paulo novamente divisada, ao longe.

Este período de hibernação deve ter surtido algum efeito devastador para Marcelo. Terapeutas em geral costumam repetir que ninguém constrói castelos nos ares e habita-os, sem sofrer o peso da retaliação, que chega mais dia, menos dia. Marcelo criou castelos – quando dragou três amigos para um sofrimento que era seu –, morou dentro deles – quando impediu que os três se dissociassem de um drama que era exclusivamente seu –, mas não conhecemos os limites precisos da retaliação. Conforme alertamos em parágrafos anteriores, “O Último Êxtase” possui elementos que não chegaram a ser trabalhados em outros filmes. Ficamos sem saber, portanto, a continuidade da trama. Um dos aspectos não trabalhados é, por exemplo, o dos irmãos do protagonista. Como interagia com eles; a retaliação viria por este caminho?

Quem sabe, ainda, se este Marcelo foi apenas um rascunho e não necessariamente o mesmo personagem de “Eros” ou “Eu”? Sob qualquer circunstância. porém, em “O Último Êxtase” ficamos frente a um alter-ego (Marcelo) em transição, cujo criador (Walter Hugo Khouri) ainda teria tempo para descobrir-se e re-escrever suas fixações, até o falecimento em 2003. E para dentro daquele castelo intangível, e de muitos outros, foram seduzidos os observadores, consumindo a arte como alimento para o espírito, assim como a água, para o corpo.

9 comentários:

Sergio L. Andrade disse...

Droga, esse filme passou uns anos atrás na madrugada da Globo e acabei perdendo. Fiquei babando com sua ótima resenha. Onde vc viu Andréa? Grande abraço!!!

Anônimo disse...

Gostei muito deste filme, inclusive me senti como uma terceira não convidada quando o assisti, como vc citou. Achei que o "Marcelo" neste filme foi um personagem mais forte que os outros "Marcelos", não sei porque, mas tive a impressão de q ele queria dominar com suas vontades e obssessões tanto os amigos qto o casal que chega depois, se não fosse feita a vontade dele, ele se chateava. Um tanto perturbador rs Preciso rever :-)

Anônimo disse...

Andréa, uma curiosidade, qdo vc. resenha esses filmes antigos do Khouri, vc. reve os filmes? Se o faz, como o faz? São fitas gravadas da TV? E seguindo essa lógica de raciocínio, vc. tem cópias de "O Anjo da Noite" e "O Desejo" e "As Filhas do Fogo"? São 03 filmes que gostaria muito de ter comigo. Sobre o texto: mais uma vez, excelente!! O instigante nessas suas leituras, e q. vc. sp. procura caminhos nada óbvios, em especial qdo se trata de Khouri.

Anônimo disse...

bah, vejo muito filme hollywoodiano... Dai nem tenho o que dizer, comentar, diante de sua sabedoria!

Andrea Ormond disse...

Fala Sérgio! "Último Êxtase" na Globo? Quem dera essa programação fosse mais freqüente :) Imagine um festival Khouri em rede nacional, na Globo, com a divulgação devida. Mas isto é difícil, bem sabemos... Assisti no Canal Brasil, faz tempo :) Um abração!

Oi Carol, o filme transmite às vezes esta sensação de estarmos observando-os à distância. E o Marcelo adolescente e em crise é um clássico :) Beijão!

Oi Eduardo! Eu revejo sim, pra captar melhor os detalhes e não confiar só na memória, deixando de fora algum aspecto relevante :) Se vc quiser, eu mando um email com os filmes do Khouri que tenho gravado. Sua presença aqui no blog é sempre inspiradora, agradeço muito pela força e pelos comentários :) Um abraço!!!

Maitê, junte-se ao clube! Quando vc menos esperar, já terá sido contagiada pelo amor ao cinema brasileiro :) Beijos!

Anônimo disse...

Parabéns, mais uma vez, pelo caminho sensível em suas análises. Eu ainda não vi esse filme do Khouri, mas quando o encontrar para assistir vou me lembrar do seu texto. abraços.

Andrea Ormond disse...

Oi Fernando,
Obrigada, e quando tiver a oportunidade, assista ao "Último Êxtase". Como disse à Carolina, Marcelo adolescente é um clássico. Abraços!

Anônimo disse...

Fala Andréa!!

pode mandar um e-mail com sua relação de filmes do mestre p/ yaguilar@terra.com.br.

Obrigado, Edú Aguilar

Anônimo disse...

EDEVALDO JOSE STRAPASSON VI DUAS VEZES E ADOREI TERROR E EXTASE, O CINEMA NACIONAL É O MELHOR DO MUNDO, É OUSADO, ATREVIDO, MOSTRA REALIDADES. EDEVALDO (EDEVALDO JOSE STRAPASSON) CANTOR COMPOSITOR INSTRUMENTISTA COLOMBO PR 1971 NA MÚSICA DESDE 1989. CONTATO 041 3666 1449.