sexta-feira, novembro 05, 2010

Os Cafajestes


“Os Cafajestes” (1962) varou os corredores do governo de Carlos Lacerda na Guanabara, empolgando o Chefe de Polícia, Newton Marques Cruz, em direção contrária aos méritos artísticos do filme. Convocando uma reunião na Academia Brasileira de Imprensa, Newton amealhou a Associação dos Pais de Família – de que fazia parte –, padres, curiosos ortodoxos em geral, exibiu a horrenda película e saiu de lá com o veredito: deve ser interditada. A sentença repetiu os pareceres da Censura federal, preocupadíssima sobretudo com a “região pubiana” da atriz Norma Bengell, às escâncaras em cena mitológica até para os neófitos do cinema brasileiro.

Na outra ponta do novelo – no âmago da equipe que realizou o projeto –, “Os Cafajestes” sofreu de fogo amigo. Jece Valadão – ator e dono da Magnus Filmes, produtora da obra –, enfiou a tesoura em determinados planos sem consultar o diretor estreante, Ruy Guerra. Ruy levou a questão às vias judiciais, agregando manifestações contrárias. José Carlos Oliveira, entre tulipas de chopp, formulou ojeriza ao ato. Alex Viany – cujas críticas na “Cena Muda” Ruy lia desde garoto em Moçambique, seu local de nascimento – expressou a revolta. Em defesa, Valadão alardeava razões comerciais; no contraponto, Ruy dizia que a poda se deveu às vaias da platéia no close-up final de Valadão, algo insustentável para o narciso.

Rodopiando na saraivada de tiros, o argumento de Ruy e Miguel Torres foi pecaminoso ao extremo. O roteiro de Ruy burilou curras, cigarros de maconha, comprimidos de anfetamina, chantagens e amoralidade por todos os lados – inclusive das garotas, Leda (Norma Bengell, grafada “Benguel” nos letreiros) e Vilma (Lucy Carvalho, estrela do malsinado “Barravento”, 1961, de Glauber Rocha). Leda mantém intercurso com Jandir (Jece) depois da humilhação à milanesa, na praia; Vilma ridiculariza o primo Vavá (Daniel Filho), que a atraiu para o abate mas não consuma o pretendido.

A parceria de Ruy e Torres seria exterminada de maneira trágica, durante o filme seguinte de ambos. Enquanto procurava locações para “Os Fuzis” (1963) – em que elaborou roteiro e argumento –, Miguel Torres sofre acidente de carro na cidade de Cajazeiras. Mal entrado na casa dos 30 anos, ex-marinheiro, já arrebanhara alguma reputação como ator – em “Mandacaru Vermelho” (1961), de Nelson Pereira dos Santos, poster que aliás aparece em cena de “Os Cafajestes”. Ao lado de Ruy, porém, experimentou a posteridade nos clássicos iniciais do diretor. Escrevera, ainda, para ele “O Cavalo de Oxumarê” – que permaneceu inacabado – e para Alex Viany, “Sol sobre a lama” (1962) – uma das rápidas incursões cinematográficas do jornalista.

Enquanto a morte não vinha, Torres flanava na corte de Hugo Carvana – fotógrafo por alguns instantes em “Os Cafajestes”, baioneteiro em “Os Fuzis” –, Daniel Filho, Valadão e Ruy Guerra. Exímios na noite e no bas fond cariocas, alimentavam as lebres, gozavam a plenitude que a turma da Miguel Lemos – antiga sede do ogro Carlos Imperial – bem conhecia.

Quanto à estrutura narrativa do filme, especial atenção para a diva Glauce Rocha, nos primeiros trechos, como prostituta descartada por Jandir. Dali para frente, surge a dupla Jandir e Vavá, categoricamente apresentada como meliantes à procura do golpe perfeito, zunindo no Buick conversível, máquina fotográfica na mão para sacar retratos comprometedores das donzelas. Ouvem-se, claro, ecos de “I Vitelloni”, pitadas de “À Bout de Souffle” – cena praticamente retirada, numa visão do sol –; “Les Cousins” – Vavá tenta a roleta russa, brincadeira que desaguaria por coincidência em filme homônimo de Daniel Filho (1972) –, “Ascenseur pour L'échafaud” – à falta de Moreau, Benguell; à falta de Miles Davis, Luís Bonfá, João Gilberto. O olhar cuidadoso não consegue evitar a constatação dessas e de outras referências, aclimatadas ou não à coloração local.

Independente, porém, da avalanche, em pleno 2010 torna-se impossível lançar vaticínio prepotente, colocando “Os Cafajestes” em posição secundária. O filme engendrou ele próprio seu séquito de influências, apertou o funil das tramas ditas juvenis, contabilizou o apuro na câmera de Tony Rabatoni, além da miragem beatnik de solidão. O plano cortado por Jece levaria a letreiro escrito “a terra é azul”, a imagem se afastando mais e mais de Jandir, através de uma grua, após largar o carro no meio do nada.

Aliás, Jandir na condição de lúmpen – arquétipo que costuma atrair uma docilidade tatibitati –, afirma ter passado fome, ter se espremido em trem superlotado, mas cai tanto quanto na fritura de caráter do entorno. Sem concessões econômico-sociais – aspecto raríssimo em matéria de imaginário autoral –, a salvação passa longe.

Pelo nascimento urbano, contrário a “Os Fuzis”, tem-se uma sucessão de tiradas diferentes das que sóem aparecer no sertão nordestino. Via de regra, os realizadores que pelo agreste passaram foram ávidos em estabelecer uma relação épica, como se tentassem canalizar forças ancestrais brasileiras – a maior delas, a fome. “Os Cafajestes” traz um caudal largo, um ceticismo bronzeado pelas praias de Cabo Frio – aonde rodado –, mas nem por isso ceticismo menor. Inviabilidade, secura de perspectivas, nos rostinhos de garotos e garotas que tomavam coca-cola, uísque e Pervitin.

Figura saltimbanca, Ruy Guerra pavimentou uns quilômetros de avenida para o Cinema Novo, ainda que sua posição perante demais contemporâneos tenha sido problemática, sobretudo pelo choque de deidades – Glauber e Guerra se confrontaram diuturnamente. Egresso do IDHEC, à semelhança de vários colegas, trouxe a herança para conviver na terra estrangeira. Comentários xenófobos, por sua origem africana, eram lançados mas Guerra partiu para uma simbiose com as delícias tupis. Montador em “Esse Mundo é Meu” (1963), de Sérgio Ricardo, co-escritor do samba de mesmo nome, ao lado do irmão de Dib Lufti – outro ícone cinemanovista –, interpretação sacralizada por Elis Regina e Zimbo Trio. Sob perspectiva, tem-se em Ruy Guerra o realizador de espírito agressivo, auto-intitulado intransigente, um dos abre-alas da primavera de opções que banhariam os anos 60 no Brasil.


4 comentários:

sitedecinema disse...

Ótima análise. Sobre o filme, Andrea. O que mais me chama a atenção é o quão moderno e contempor^neo ele é na sua exposição À ácida imoralidade e autoindulgência dos protagonistas bem como todo o trabalho de câmera do grande Rabatony (ele, passou os últimos anos de vida no RS, completamente esquecido, sabia?). Do mestre fotógrafo, eu gostaria de conferir um erótico oitentista que ele dirigiu e iluminou contando com o também cineasta Deni Cavalcanti como ator, PÕE DEVAGAR...BEM DEVAGARINHO.
Não achas que esse filme lembra um pouco o Khouri, só que com personagens vigaristas/do bas-fond?

André Setaro disse...

Perfeita exegese de 'Os cafajestes', filme emblemático do cinema brasileiro, com acentos da 'nouvelle vague'. Revisto há pouco tempo, achei-o de uma incrível atualidade. A sequência da praia, com La Bengell nua, com a mão 'no bolso', é antológica. Assim como o final abrupto e sem concessões à uma 'resolução' que sempre o público apático fica a esperar.

Andrea Ormond disse...

sitedecinema, acho que o cinema do Khouri tem uma aproximação grande com a psicanálise, com alguns mitos que iam e voltavam entre os filmes e que não encontro em "Os Cafajestes". Mesmo a nouvelle vague não era um referência tão próxima para o WHK quanto para o Ruy Guerra. Tenho o "Põe devagar... bem devagarinho", vou ver se o encontro por aqui nos meus alfarrábios para o texto.

Não é, Setaro? Levada à exaustão, a humilhação, o nu. Por essas e outras que qualquer um que goste de cinema, registrou essa cena, desde a tenra infância. O final meio on the road, em tempos de comercialismo daria uma continuação. Jandir à solta, o carro abandonado...

Anônimo disse...

Рискованная статья, как долго ожидать публикации новенького материала и вообще стоит ждать ?