Braz Chediak era um garoto cinéfilo, emigrado de Três Corações, Minas Gerais, e visto com desconfiança às vésperas da filmagem de “Navalha na Carne” (1969). “Os Viciados” – seu projeto anterior – fôra um fracasso, mas ainda assim ele recebia o gentil incentivo de Jece Valadão, o todo-poderoso da Magnus Filmes.
Como havia roteirizado “A Noite do Meu Bem” (1968) – cinebio de Dolores Duran – e Jece enxergava nele um talento a ser burilado, Chediak iniciou os trabalhos em “Navalha na Carne” com a certeza de estar diante de um mundo de ansiedades. Se perdesse o trilho novamente, talvez não voltasse a dirigir.
Interessante no jogo de personas e de publicidade que cercam o fazer cinematográfico, seu nome não é o mais cotado ao se falar do sombrio “Navalha na Carne”. Glauce Rocha (Neuza Sueli), Jece (Vado) e Emiliano Queiroz (Veludo) costumam surgir em posição mais favorável.
Entretanto, é preciso que se diga que certos detalhes responsáveis pela essência do filme foram escolhas pessoais do diretor. Exemplos: a opção pelos planos-seqüências longos, claustrofóbicos; a interiorização dos conflitos.
Neste sentido o silêncio histérico de mais de 26 minutos, antes de qualquer personagem falar alguma coisa, é um ponto bastante eloqüente para a adaptação da peça teatral de Plínio Marcos – autor geralmente catalogado entre os que previam altos decibéis em gritos e urros dos personagens.
Esse vazio, esse nada acústico – salvo os ruídos cenográficos, como o arrastar de chinelos, carros passando, cachorros latindo – de cerca de meia hora serve para ambientar a prostituta Norma, o cafetão Vado e o homossexual Veludo, arrumador e faz-tudo do moquifo onde os três vivem.
Filmada anonimamente, com a câmera oculta, pelas proximidades da Lapa – zona central do Rio de Janeiro –, Glauce Rocha caminha no trottoir desmemoriado, automático, à busca de freguesia. Reza a lenda que foi reconhecida por um fã ardoroso que se mostrou penalizado pelo triste fim da atriz. Minutos depois, o mesmo senhor perguntou-lhe quanto seria o preço do programa.
Sorte de Chediak foi ter Glauce como protagonista. Quarta opção, depois das saídas de Tonia Carrero – que interpretara Norma Sueli no palco, ao lado de Nelson Xavier e Emiliano Queiroz –, Norma Bengell e Tereza Rachel, Glauce pareceu de fato bem mais talhada para o pé no chão e a tortura emocional e física de Neusa. Desprendida, o olhar roto, os traços empobrecidos e no limiar do suicídio, a cupincha de Vado tem com ele um leva-e-traz de humilhações, na sangria de ser esbofeteada e considerada a pior entre os piores.
Outro vértice do triângulo, Vado oscila com Veludo entre a ojeriza e o respeito quando percebe que o boy efeminado sabe se posicionar e jogar no esquema de achincalhes a Norma. Pode-se até afirmar que a situação deixe o espectador antever em Vado algum componente longinquamente homossexual que, recalcado e neurotizado, justifique tamanha agressividade à mulher.
Aliás, na esfera GLBT “Navalha na Carne” responde por outro aspecto relevante. A interação entre Veludo e o namorado (pago) impacta se considerarmos o momento pós-AI-5 em que as cenas foram rodadas. Captam a entrega e o brilho dos rapazes, no ambiente perdido, decaído, sujo.
Assim como estas, as cenas de Neuza e do cliente solitário (Carlos Kroeber) se passam naquele silêncio do começo. O olhar assombrado de Neuza, em um lugar completamente diferente do que no quarto com o homem asqueroso, constrói o semblante depressivo, doentio.
“Às vezes eu chego a pensar: poxa, será que eu sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente?” Talvez este pequeno monólogo de Neuza, desvendando-se para Vado, sirva de resumo para a narrativa.
A abordagem naturalista – e humanizadora – de “Navalha na Carne” mostra atos corriqueiros dos três. Esvaziam urinóis, lavam as mãos e as roupas íntimas, penduradas em cordinhas apodrecidas; fumam a “erva”, célebre na época nos ambientes de prostituição. A equipe do filme pesquisou in loco os Arcos da Lapa, participando Brás, Helio Silva – responsável pela engenhosa movimentação da câmera no filme – e Emiliano Queiroz.
Fora das telas, censura ferrenha do DOPS, como seria de se esperar. Várias redublagens de trechos, gravados em tom diferente do original, numa estratégia freqüente dos realizadores que tentavam demonstrar para o público que a tesoura havia passado por ali.
O longo close final em Neuza mordiscando um pedaço de pão amanhecido, em um meio-sorriso louco, deixa outro acerto da obra. O tanto de dor e de fadiga que revela demonstram que a atriz – bem como os outros dois atores – alcançara um patamar redentor.
E conclamados pela crítica e pelo sucesso retumbante nas bilheterias – que chegou em bom tempo para a Magnus Filmes –, Brás Chediak e Jece Valadão investiriam mais uma vez na obra de Plínio Marcos. O filme: “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, o ano: 1971, como já tivemos a oportunidade de comentar nas páginas do Estranho Encontro.
Como havia roteirizado “A Noite do Meu Bem” (1968) – cinebio de Dolores Duran – e Jece enxergava nele um talento a ser burilado, Chediak iniciou os trabalhos em “Navalha na Carne” com a certeza de estar diante de um mundo de ansiedades. Se perdesse o trilho novamente, talvez não voltasse a dirigir.
Interessante no jogo de personas e de publicidade que cercam o fazer cinematográfico, seu nome não é o mais cotado ao se falar do sombrio “Navalha na Carne”. Glauce Rocha (Neuza Sueli), Jece (Vado) e Emiliano Queiroz (Veludo) costumam surgir em posição mais favorável.
Entretanto, é preciso que se diga que certos detalhes responsáveis pela essência do filme foram escolhas pessoais do diretor. Exemplos: a opção pelos planos-seqüências longos, claustrofóbicos; a interiorização dos conflitos.
Neste sentido o silêncio histérico de mais de 26 minutos, antes de qualquer personagem falar alguma coisa, é um ponto bastante eloqüente para a adaptação da peça teatral de Plínio Marcos – autor geralmente catalogado entre os que previam altos decibéis em gritos e urros dos personagens.
Esse vazio, esse nada acústico – salvo os ruídos cenográficos, como o arrastar de chinelos, carros passando, cachorros latindo – de cerca de meia hora serve para ambientar a prostituta Norma, o cafetão Vado e o homossexual Veludo, arrumador e faz-tudo do moquifo onde os três vivem.
Filmada anonimamente, com a câmera oculta, pelas proximidades da Lapa – zona central do Rio de Janeiro –, Glauce Rocha caminha no trottoir desmemoriado, automático, à busca de freguesia. Reza a lenda que foi reconhecida por um fã ardoroso que se mostrou penalizado pelo triste fim da atriz. Minutos depois, o mesmo senhor perguntou-lhe quanto seria o preço do programa.
Sorte de Chediak foi ter Glauce como protagonista. Quarta opção, depois das saídas de Tonia Carrero – que interpretara Norma Sueli no palco, ao lado de Nelson Xavier e Emiliano Queiroz –, Norma Bengell e Tereza Rachel, Glauce pareceu de fato bem mais talhada para o pé no chão e a tortura emocional e física de Neusa. Desprendida, o olhar roto, os traços empobrecidos e no limiar do suicídio, a cupincha de Vado tem com ele um leva-e-traz de humilhações, na sangria de ser esbofeteada e considerada a pior entre os piores.
Outro vértice do triângulo, Vado oscila com Veludo entre a ojeriza e o respeito quando percebe que o boy efeminado sabe se posicionar e jogar no esquema de achincalhes a Norma. Pode-se até afirmar que a situação deixe o espectador antever em Vado algum componente longinquamente homossexual que, recalcado e neurotizado, justifique tamanha agressividade à mulher.
Aliás, na esfera GLBT “Navalha na Carne” responde por outro aspecto relevante. A interação entre Veludo e o namorado (pago) impacta se considerarmos o momento pós-AI-5 em que as cenas foram rodadas. Captam a entrega e o brilho dos rapazes, no ambiente perdido, decaído, sujo.
Assim como estas, as cenas de Neuza e do cliente solitário (Carlos Kroeber) se passam naquele silêncio do começo. O olhar assombrado de Neuza, em um lugar completamente diferente do que no quarto com o homem asqueroso, constrói o semblante depressivo, doentio.
“Às vezes eu chego a pensar: poxa, será que eu sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente?” Talvez este pequeno monólogo de Neuza, desvendando-se para Vado, sirva de resumo para a narrativa.
A abordagem naturalista – e humanizadora – de “Navalha na Carne” mostra atos corriqueiros dos três. Esvaziam urinóis, lavam as mãos e as roupas íntimas, penduradas em cordinhas apodrecidas; fumam a “erva”, célebre na época nos ambientes de prostituição. A equipe do filme pesquisou in loco os Arcos da Lapa, participando Brás, Helio Silva – responsável pela engenhosa movimentação da câmera no filme – e Emiliano Queiroz.
Fora das telas, censura ferrenha do DOPS, como seria de se esperar. Várias redublagens de trechos, gravados em tom diferente do original, numa estratégia freqüente dos realizadores que tentavam demonstrar para o público que a tesoura havia passado por ali.
O longo close final em Neuza mordiscando um pedaço de pão amanhecido, em um meio-sorriso louco, deixa outro acerto da obra. O tanto de dor e de fadiga que revela demonstram que a atriz – bem como os outros dois atores – alcançara um patamar redentor.
E conclamados pela crítica e pelo sucesso retumbante nas bilheterias – que chegou em bom tempo para a Magnus Filmes –, Brás Chediak e Jece Valadão investiriam mais uma vez na obra de Plínio Marcos. O filme: “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, o ano: 1971, como já tivemos a oportunidade de comentar nas páginas do Estranho Encontro.
4 comentários:
Belíssimo filme.
a procura desse filme.
I read this piece of writing completely about the comparison of latest and earlier technologies, it's amazing article.
My site; ranger forum
A propósito,devias resenhar o remake dos anos 90.Outra dica:"A mulher do desejo" exposto no youtube.
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