quarta-feira, novembro 23, 2005

Cinema, Aspirina e Urubus


O Brasil inteiro pode estar – com justiça – encantado com “Cidade Baixa”, filme que foge aos estereótipos batidos do “padrão global”, sujando a tela com amor, suor e sangue. Mas o grande lançamento do ano é mesmo “Cinema, Aspirina e Urubus” (2004), sério candidato a filme da década e, por que não dizer?, melhor filme do ciclo sazonal que apelidou-se de Retomada, e que este ano já completa uma década.

“Cinema, Aspirina e Urubus” narra a história de Johann (Peter Ketnath), um jovem e lindo alemão fugido da Segunda Guerra para o interior profundo do Nordeste, onde é caixeiro viajante da Bayer, vendendo frascos de Aspirina para o povo. Estamos em 1942 e o Brasil está prestes a entrar na guerra ao lado dos Aliados, mas Johann nada sabe, acreditando na máxima que lhe dizem: “no Brasil nem guerra chega”. Assim, tem rota incerta e itinerante, saindo do Rio de Janeiro e indo de cidade em cidade, projetando um filme sobre os benefícios da Aspirina e depois vendendo o produto em simples e direta jogada de marketing, em um tempo onde o termo anglicista nem existia.

Certo dia, Johann encontra Ranulpho (João Miguel), homem sertanejo e amargo que sonha fugir da miséria para o Rio e descobre em Johann um porto seguro de amizade e subsistência. Juntos os dois realizam um road-movie pelo semi-árido, mais competente que o tentado por Walter Salles anos atrás em “Central do Brasil”, muito porque aqui o diretor Marcelo Gomes não apela para o maniqueísmo de um Nordeste utópico e purificador como o de Salles. Pelo contrário, o Nordeste onde Johann e Ranulpho circulam é visto pelos olhos cínicos e azedos deste último, sempre pronto a contrariar o amigo alemão no seu amor tolerante à pátria adotiva.

Mas em efeito, assistindo ao filme, amamos o Brasil com fervor. Depois de ser perseguido, quase morrer picado por uma cobra e, em inversão de valores, passar a depender da boa vontade de Ranulpho, Johann tem a chance de recomeçar, pegando um trem para a Amazônia. Igualmente Ranulpho pode tentar desenhar sua vida novamente, pois ganha o caminhão onde transportava as mercadorias com Johann e o chão até o Rio de Janeiro é o limite. O Brasil, como diz em certa hora um empresário sertanejo, é enorme, maior que a América (tirando o Alaska, faz a ressalva detalhista que provoca risos na platéia).

O filme é baseado em história real, o que o torna ainda mais interessante, levando-se em consideração que Ranulpho era o tio-avô do diretor e ele não apresenta com o personagem nenhuma complacência heróica ou preenchida por idealismo. Ranulpho é antes de tudo um homem na linha de Sancho Pança, complexo por sua personalidade de traços tão marcantemente nacionais ao julgar que “brasileiros são os outros”. Em certo diálogo afiado, Johann com sua praticidade germânica o interpela ao falar mal dos retirantes: “Mas você é um deles”. Ao que Ranulpho nada diz, apenas sacode a mão em sinal de distante “mais ou menos”.

Por tudo isso e principalmente por sua poesia lúcida, por seu estilo sem concessões, por sua capacidade de contar uma história necessária de forma objetiva e impactante, “Cinema, Aspirina e Urubus” é uma aula de como se fazer cinema no Brasil. E, ao lado de outros lançamentos de 2005 como “Cidade Baixa” e “Cabra Cega”, um sinal inequívoco de que ainda há vida inteligente filmando no Brasil e sobre o Brasil. O resto é novelinha em tela grande.

10 comentários:

Anônimo disse...

Cara Andréia, gostei bastante desse filme, principalmente pelo ator que interpreta o nordestino (esqueci o nome do cara), mas ele é ótimo. O Cinema é legal, é um relato corajoso e achei, principalmente uma película sobre a amizade e sobre a guerra. E o foda, é que ele mostra a guerra, sem necessariamente mostrar combates, tiros, mortos, ETC. Só mostrar como uma amizade é quebrada por esta. Gostei muito mesmo, mas o melhor do ano pra mim e da década é mesmo CABRA CEGA. Mas é ótimo este filme e da um show em OLGAS da vida. Pena que atualmente o cinema brasileiro, nossa paixão, nossa razão de existência, tenha perdido Carlo Mossys e Mozaels Silveiras, que alimentavam nossos sonhos. Hoje nos restam raras exceções e essas bostas da Globo Filmes. Por isso é ótimo que existam espaços como esse, que resgatem e nos lembrem da grandeza, do brilhantismo e da coerência do nosso cinema. Abraços gerais ! Mas o melhor filme da Retomada pra mim e onde ele começa e talvez até, o maior filme do Cinema Brasileiro é ALMA CORSÁRIA do grande Carlão Reichenbach, pois naquele momento até as salas de cinema estavam fechando, a Boca do Lixo acabou, até sonhar a utopia era impossível.

Anônimo disse...

Concordo com tudo que foi dito pelo Matheus. Também adorei CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS, até ia escrever sobre, mas depois desse seu belo texto, fiquei sem ação! Andréa, vou te mandar um e-mail depois do último post que deixou lá no meu blogue, tudo bem? Um abraço!

Michel Simões disse...

Olá Andrea! Vi bons elogios sobre seu blog pela blogosfera e resolvi passar para conhecer, gostei muito dos seus textos, estarei aqui mais vezes. Qto ao filme em questão, é uma pérola, um filme imperdível, sem dúvida a demonstração para quem ainda não acreditava na qualidade do cinema nacional...

Andrea Ormond disse...

oi Matheus, torço para que essas raras exceções tenham retorno do público, para que mais filmes interessantes sejam feitos em um ciclo virtuoso, não acha? :) Achei "Cabra Cega" um ótimo filme, mas vejo nele algumas limitações que não vejo em "Cinema, Aspirina e Urubus". Um grande abraço!

fala Fernando, postei lá no Focinho falando dos filmes, um abraço!

oi Michel, tb dei uma olhada no seu blog, gostei muito dele e vou linká-lo aqui em breve. Abraços!

Anônimo disse...

Oi Andréa. Em sua crítica apenas discordo em eleger este filme o mais importante da retorma. Já assistiu a LAVOURA ARCAICA?
Acho que, se assistir, irá mudar de idéia.

wendell disse...

A belíssima canção Serra da Esperança de Lamartine Babo coroa com perfeição esta obra-prima do cinema nacional. Um dos melhores filmes brasileiros que já vi ao lado de Pixote, Cidade de Deus e Deus e o diabo na terra do sol.

Estér B.P. Freitas disse...

Gostei do filme, mas ainda continuamos com péssimo som nos filmes nacionais. A dicção do alemão é melhor do que a do ator brasileiro que achei péssimo, pois nenhum nordestino fala daquela maneira. (não falo de estereótipo) Outra coisa que me deixou espantada; será que faltou o patrocínio da Bayer? Por que em nenhum momento aparece na tela o símbolo maior da cruz Bayer que na época era reconhecidíssímo e o famoso slogan “Se é Bayer é bom”
Se era pra retratar a “Aspirina” não tinha como deixar de usá-lo.
Do mais um bom filme.

Anônimo disse...

Andrea, esse filme é encantador mesmo. Saímos "amando mais o brasil"- hehe isso mesmo!

Senti falta de umas críticas aqui: Falsa Loura, Mulher de Todos e Céu de Suely- queria muito ver vc falando desses filmes.

Abraços

Vim até através da indicação do blog do Setaro.

ADEMAR AMANCIO disse...

Não vi o filme,pelo título esdrúxulo achei que fosse chato.

Anônimo disse...

amei essa resenha do filme muito bem descrita