Nascido em 1946 na Argentina, emigrado para a Europa fugindo do serviço militar obrigatório e posteriormente radicado em definitivo no Brasil, o diretor Hector Babenco desde cedo acostumou-se a uma vida cosmopolita e atribulada. Talvez a exemplo do conterrâneo – também naturalizado brasileiro e também cineasta – Carlos Hugo Christensen, o jovem Babenco tenha aprendido a condensar em sua alma de artista uma mistura de olhares e culturas diversas que, como resultado, produziram uma visão singular do país que o acolheu.
Não à toa, este mesmo Babenco tornou-se o cineasta brasileiro de maior “projeção internacional”. Expressão aqui entre aspas devido às ingenuidades que ela tende a transmitir. Se “Pixote, A Lei do Mais Fraco” (1980), catapultou de fato a carreira de Babenco para as glórias de Hollywood, devemos avaliar o quanto é sintomático e humilhante o orgulho com que um país de cultura gigantesca e complexa como o Brasil recebe as notícias dessas migalhas de reconhecimento. O “ser visto” pelo outro, que funciona quase como um elixir momentâneo de auto-estima e garantia de existência no mundo.
Mas por trás desse deslumbramento provinciano, alimentado por tantos, o que se esconde é um grande filme. Sob o Alvará no. 0037 PPCM 79 do Juizado de Menores – instituição que o próprio filme reanalisa e denuncia –, “Pixote...” é baseado no livro “Pixote, Infância dos Mortos”, do jornalista José Louzeiro – também parceiro em “Lúcio Flávio...”, outro livro de sua autoria.
Além de Louzeiro, Babenco cercou-se de Jorge Durán, roteirista em ambos os filmes, e com base nesta tríade realizou em “Pixote...” o misto de documentário, investigação sobre o gênero prisional e road movie.
O documentário é inerente à fonte: o texto de “Infância dos Mortos”, cujo formato criou um padrão clássico de análise jornalística. Dados do IBGE se misturam à realidade esmiuçada na redação da “Folha de São Paulo” – onde Louzeiro trabalhava –, ao estilo literário seguro e claustrofóbico, além da conferência in loco dos dramas dos menores infratores. Louzeiro foi às ruas, não esperou que elas viessem até ele.
Neste sentido, os primeiros minutos de “Pixote...” são extremamente didáticos, pois Babenco de certa forma traveste-se de Louzeiro e no meio de uma favela de São Paulo, apresenta Fernando Ramos da Silva: o contratado para o papel de Pixote, visto ao lado da mãe e dos nove irmãos. Todos moradores do local.
Está selado o pacto com o espectador. Se em “Os Incompreendidos”, de Truffaut, a ponte entre o personagem e a realidade ocorria de maneira velada – Antoine Doinel era o pequeno François Truffaut, mas isto só fomos saber com o passar do tempo –; e se em “Os Esquecidos”, de Buñuel, essa ponte ocorria de maneira difusa – pois o enfoque em muitos meninos diluía o centro das atenções –; em “Pixote...” Babenco utiliza explicitamente o Fernando/Pixote como instrumento para empatia entre a história e o público.
Estratégia que funcionou muito bem, diga-se de passagem. Fernando se tornou um astro, trabalhou em novela, foi objeto de culto à personalidade – fato que infelizmente acabou sendo letal, desestruturado que o garoto era para os holofotes. Duas biografias de Fernando, uma escrita por Mara Aparecida Venâncio – sua esposa – e outra por Louzeiro, dariam origem em 1996 a “Quem Matou Pixote?”, longa dirigido por José Joffily.
No plano “ficcional”, João Henrique, apelidado “Pixote”, 10 anos de idade, natural de São Paulo, filho de pai desaparecido, é transportado de noite em um camburão, da delegacia até a Febem – a música primaveril do maestro John Neschling marca a tensão da cena com uma ironia cavalar.
Pixote conhece então os menores Fumaça (Zenildo Oliveira Santos), Lilica (Jorge Julião), Dito (Gilberto Moura) e Chico (Edilson Lino). Une-se ao grupo mais por falta de opção do que por convicção, convivendo com os arroubos de Lilica, travesti que passa de mão em mão entre os internos e carcereiros.
Neste segundo momento do filme – o primeiro, possuía o tom de documentário – ficamos ao sabor da instituição correcional. Brigas, curras, cigarros de maconha, futebol, a violência dos garotos, dos adultos e do poder público – encarnado nos inspetores Sapato Branco (Jardel Filho) e Almir (João José Pompeu). Pixote os vê em um crescendo, retratados na fotografia de Rodolfo Sánchez, até estourar a rebelião.
Com as mortes de Fumaça e do namorado de Lilica, os garotos fogem pela janela da enfermaria e chegamos com eles a uma terceira etapa: o ensaio de road movie, com a ida dos garotos para o Rio de Janeiro.
Saímos de propósito de um confinamento total e passamos aos espaços amplos, às avenidas, à viagem de trem, à praia multicolorida. Os garotos aprimoram os métodos, as amizades e os crimes. Pixote comete o primeiro assassinato – Débora (Elke Maravilha), vendedora de drogas – e logo em seguida se distrai em um fliperama. O segundo assassinato, acidental, atinge Dito. O terceiro, um gringo que era o alvo do golpe do suadouro a ser aplicado pelos dois e Sueli (Marilía Pera).
Neste ponto da trama, perto do fim, Lilica – em atuação excepcional de Julião, esquecida por muitos – abandonou o grupo há algum tempo, despeitado pela feminilidade de Sueli. Chico morrera num ataque de Débora. A dinâmica entre o grupo se modificava de tal forma que no resta-um havia sobrado um triângulo esdrúxulo: Dito – o cafetão de Sueli – e Pixote – a tentativa de filho por parte da prostituta, que havia abortado um feto no banheiro.
Logo depois de Dito e o gringo “caírem”, sobrepõe-se a cena clássica em que Sueli oferece o seio a Pixote e em seguida repele-o com nojo. A cena precisa ser completada por um elemento que acontece simultaneamente e não é visto, e sim ouvido pelo público.
Sueli e Pixote haviam ligado a tv e assistiam ao Programa do Chacrinha – este verdadeiro curinga do cinema brasileiro, que tanto era protagonista (“Já Não se Faz Amor Como Antigamente”) quanto coadjuvante incidental (“Essa Gostosa Brincadeira a Dois”), tão forte estava na memória afetiva dos espectadores.
O final lúdico à moda de Chaplin, com Pixote sozinho, desengonçadamente, nos trilhos do trem – metáfora clara à incerteza sobre a continuação da vida do menino –, dá o arremate poético, fechando as pontas de um argumento que parte de um princípio simples e chega a uma narrativa rica e ilustrada, cheia de viradas e conflitos que soam atuais, apesar da distância de quase três décadas. Não podemos esquecer, afinal, que os líderes do PCC de hoje são os Pixotes que engatinhavam logo ali na esquina do tempo, abandonados à própria sorte.
Não à toa, este mesmo Babenco tornou-se o cineasta brasileiro de maior “projeção internacional”. Expressão aqui entre aspas devido às ingenuidades que ela tende a transmitir. Se “Pixote, A Lei do Mais Fraco” (1980), catapultou de fato a carreira de Babenco para as glórias de Hollywood, devemos avaliar o quanto é sintomático e humilhante o orgulho com que um país de cultura gigantesca e complexa como o Brasil recebe as notícias dessas migalhas de reconhecimento. O “ser visto” pelo outro, que funciona quase como um elixir momentâneo de auto-estima e garantia de existência no mundo.
Mas por trás desse deslumbramento provinciano, alimentado por tantos, o que se esconde é um grande filme. Sob o Alvará no. 0037 PPCM 79 do Juizado de Menores – instituição que o próprio filme reanalisa e denuncia –, “Pixote...” é baseado no livro “Pixote, Infância dos Mortos”, do jornalista José Louzeiro – também parceiro em “Lúcio Flávio...”, outro livro de sua autoria.
Além de Louzeiro, Babenco cercou-se de Jorge Durán, roteirista em ambos os filmes, e com base nesta tríade realizou em “Pixote...” o misto de documentário, investigação sobre o gênero prisional e road movie.
O documentário é inerente à fonte: o texto de “Infância dos Mortos”, cujo formato criou um padrão clássico de análise jornalística. Dados do IBGE se misturam à realidade esmiuçada na redação da “Folha de São Paulo” – onde Louzeiro trabalhava –, ao estilo literário seguro e claustrofóbico, além da conferência in loco dos dramas dos menores infratores. Louzeiro foi às ruas, não esperou que elas viessem até ele.
Neste sentido, os primeiros minutos de “Pixote...” são extremamente didáticos, pois Babenco de certa forma traveste-se de Louzeiro e no meio de uma favela de São Paulo, apresenta Fernando Ramos da Silva: o contratado para o papel de Pixote, visto ao lado da mãe e dos nove irmãos. Todos moradores do local.
Está selado o pacto com o espectador. Se em “Os Incompreendidos”, de Truffaut, a ponte entre o personagem e a realidade ocorria de maneira velada – Antoine Doinel era o pequeno François Truffaut, mas isto só fomos saber com o passar do tempo –; e se em “Os Esquecidos”, de Buñuel, essa ponte ocorria de maneira difusa – pois o enfoque em muitos meninos diluía o centro das atenções –; em “Pixote...” Babenco utiliza explicitamente o Fernando/Pixote como instrumento para empatia entre a história e o público.
Estratégia que funcionou muito bem, diga-se de passagem. Fernando se tornou um astro, trabalhou em novela, foi objeto de culto à personalidade – fato que infelizmente acabou sendo letal, desestruturado que o garoto era para os holofotes. Duas biografias de Fernando, uma escrita por Mara Aparecida Venâncio – sua esposa – e outra por Louzeiro, dariam origem em 1996 a “Quem Matou Pixote?”, longa dirigido por José Joffily.
No plano “ficcional”, João Henrique, apelidado “Pixote”, 10 anos de idade, natural de São Paulo, filho de pai desaparecido, é transportado de noite em um camburão, da delegacia até a Febem – a música primaveril do maestro John Neschling marca a tensão da cena com uma ironia cavalar.
Pixote conhece então os menores Fumaça (Zenildo Oliveira Santos), Lilica (Jorge Julião), Dito (Gilberto Moura) e Chico (Edilson Lino). Une-se ao grupo mais por falta de opção do que por convicção, convivendo com os arroubos de Lilica, travesti que passa de mão em mão entre os internos e carcereiros.
Neste segundo momento do filme – o primeiro, possuía o tom de documentário – ficamos ao sabor da instituição correcional. Brigas, curras, cigarros de maconha, futebol, a violência dos garotos, dos adultos e do poder público – encarnado nos inspetores Sapato Branco (Jardel Filho) e Almir (João José Pompeu). Pixote os vê em um crescendo, retratados na fotografia de Rodolfo Sánchez, até estourar a rebelião.
Com as mortes de Fumaça e do namorado de Lilica, os garotos fogem pela janela da enfermaria e chegamos com eles a uma terceira etapa: o ensaio de road movie, com a ida dos garotos para o Rio de Janeiro.
Saímos de propósito de um confinamento total e passamos aos espaços amplos, às avenidas, à viagem de trem, à praia multicolorida. Os garotos aprimoram os métodos, as amizades e os crimes. Pixote comete o primeiro assassinato – Débora (Elke Maravilha), vendedora de drogas – e logo em seguida se distrai em um fliperama. O segundo assassinato, acidental, atinge Dito. O terceiro, um gringo que era o alvo do golpe do suadouro a ser aplicado pelos dois e Sueli (Marilía Pera).
Neste ponto da trama, perto do fim, Lilica – em atuação excepcional de Julião, esquecida por muitos – abandonou o grupo há algum tempo, despeitado pela feminilidade de Sueli. Chico morrera num ataque de Débora. A dinâmica entre o grupo se modificava de tal forma que no resta-um havia sobrado um triângulo esdrúxulo: Dito – o cafetão de Sueli – e Pixote – a tentativa de filho por parte da prostituta, que havia abortado um feto no banheiro.
Logo depois de Dito e o gringo “caírem”, sobrepõe-se a cena clássica em que Sueli oferece o seio a Pixote e em seguida repele-o com nojo. A cena precisa ser completada por um elemento que acontece simultaneamente e não é visto, e sim ouvido pelo público.
Sueli e Pixote haviam ligado a tv e assistiam ao Programa do Chacrinha – este verdadeiro curinga do cinema brasileiro, que tanto era protagonista (“Já Não se Faz Amor Como Antigamente”) quanto coadjuvante incidental (“Essa Gostosa Brincadeira a Dois”), tão forte estava na memória afetiva dos espectadores.
O final lúdico à moda de Chaplin, com Pixote sozinho, desengonçadamente, nos trilhos do trem – metáfora clara à incerteza sobre a continuação da vida do menino –, dá o arremate poético, fechando as pontas de um argumento que parte de um princípio simples e chega a uma narrativa rica e ilustrada, cheia de viradas e conflitos que soam atuais, apesar da distância de quase três décadas. Não podemos esquecer, afinal, que os líderes do PCC de hoje são os Pixotes que engatinhavam logo ali na esquina do tempo, abandonados à própria sorte.
7 comentários:
Um dos melhores filmes brasileiros dos 80: só perde pra Inocência - que eu gosto bastante.
A cena da Marília Pera amamentando o pixote é antológica.
Pegando a deixa do Marcos, da década de 80 destaco além do "Pixote", o filme de Leon Hirszman, "Eles não usam black-tie".
Por mais diferentes que sejam,não dá p/ comparar em algum ponto Pixote/Incompreendidos/Os Esquecidos, rsrs
Marcos e Nirton, dos anos 80 tb gosto muito da safra gaúcha e dos filmes do Ugo Giorgetti, além é claro dos Khouris da época. Mas encaixo Pixote nos 10 Mais, com certeza :)
Michel, essa trinca tem semelhanças, mas elas são sutis, não dá pra comparar totalmente mesmo :)
Tienes toda la razón Antoine Doinel era el pequeño Francois Truffaut.
Olá, acabei de rever o filme (já assira a ele anos atrás). O grande problema do filme é que não há momentos de descontração para propiciar um ápice seguinte. Do começo ao fim o direitor despeja conflitos, fazendo com que nós, espectadores, saiamos exaustos da sessão. Muito cansativo...
Quero saber qual a música de rock toca no Chacrinha no fim do filme do Pixote, quando Pixote e Sueli estão com a TV ligada no Chacrinha, e qual o nome do cantor. Tem até uma dançarina vestida de odalisca no Chacrinha, e a música parece que diz "Viva sensation" na letra... quem souber me diga...
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