quarta-feira, agosto 30, 2006

Anjos da Noite


Wilson Barros dirigiu um único filme, “Anjos da Noite” (1986), motivo suficiente para integrar o ciclo dos longas paulistanos que em meados dos anos 80 receberam a pecha de “neon-realistas”. Como ser “néon” e “realista” ao mesmo tempo? Bem, a resposta depende dos olhos de quem os vê.

“Neon-realismo” pode tanto ser encarado pelo prisma negativo (aqui, o termo “néon” funcionaria como crítica a uma suposta artificialidade visual, contrária aos cânones realistas tradicionais), quanto pelo positivo (em que o “neón” encarnaria o desejo de subverter a análise social através de um caldo de cultura pop, vanguardismo underground, tecnologia e outras nóias tipicamente oitentistas).

Ex-estudante de arquitetura, ex-serígrafo – manipulador de silk-screen –, futuro graduado e professor de Cinema na ECA da USP, Wilson Barros trabalhou na Lauper Filmes – de Luís Sergio Person e Glauco Mirko Laurelli –, como assistente de Sebastião de Souza em “Transplante de Mãe”, episódio de “Em Cada Coração Um Punhal” (1970).

Na década seguinte, entre aulas e apostas na produção local, roteiriza e traz à tona “Anjos da Noite”; filme que ao lado de “Cidade Oculta” (1986) – de Chico Botelho – tem no próprio título uma carga indissociável da ambientação do enredo: o cenário urbano, a noite de São Paulo, os gauches, prostituídos, seviciados, travestidos, empacotados na fotografia de José Roberto Eliezer (também produtor de “Anjos...”, com André Klotzel e Zita Carvalhosa) e na sonoplastia de Walter Rogério – que viria a ser diretor de Chiquinho Brandão em “Beijo 2348/72” (1990).

Curioso notar que apenas um ano e três meses bastaram para fulminar pelo menos três peças-chave de “Anjos...” e “Cidade...”. Chiquinho Brandão faleceu em junho de 1991; Botelho, em novembro de 91; Barros, em setembro de 92.

Ted – apelido de Teodoro (go-go boy, personagem de Guilherme Leme) –; Marta (diva quase socialite, Marília Pêra); Jorge Tadeu (diretor de teatro, Antonio Fagundes); Lola (travesti, Chiquinho Brandão) e o gângster Fofo (Cláudio Mamberti, Ratão de “Cidade Oculta”) são os “anjos” que transitam em horário fortuito pelas ruas, principalmente de madrugada. Restam ainda Guto (namorado de Ted, Marco Nanini), Malu Maneca (modelo e cafetina, Zezé Motta), Bimbo (ator, amigo de Malu, Aldo Bueno), Milene (secretária de Malu, Aída Leiner) e Ciça (estudante de sociologia, interessada pela vida de Malu, Be Valério).

Vem provavelmente de Chiquinho Brandão a performance mais memorável do filme. Início da trama, close total no rosto do travesti, trabalho de fotografia e direção que ilude o espectador, levando-o a crer que está diante de uma cena gélida de assassinato. O cadáver estirado na banheira, sangue no chão, paredes claustrofóbicas, música fúnebre de Sérvulo Augusto.

Mas a cena logo se transforma num jogo de metalinguaguem, característico de diversos exemplares néon-realistas: teatro dentro do filme, filme dentro de outro, realidade dentro do lúdico, que se impõe como realidade.

Percebemos isto quando a câmera se afasta e descobre-se que Lola é atriz, ensaia uma peça de teatro – dirigida por Jorge Tadeu, o performático de cavanhaque, bigodinho e gola rolê –, atuando no papel de travesti, que aliás é a sua ocupação no cotidiano.

Quando em outro momento Lola canta “Ne Me Quittes Pas” na boate, no bas-fond sem eira nem beira, instantes antes de ser presa pela trupe do Fofo, baixa o Jacques Brel em Chiquinho e o círculo de referências pop se completa, lembrando as citações anteriores a Tetê Espíndola e “Casablanca”, num presságio da coreografia que Ted e Marta rodopiarão dali a pouco, à moda Fred Astaire e Cyd Charisse em “Roda da Fortuna”.

Aliás, uma menáge entre Bimbo, Milene e Ciça sobre o carpete, o mobiliário branco e os teclados da música incidental ao fundo, denotam aquelas marcas d’água indeléveis do cinema nos anos 80. Pena que Aldo Bueno e Antonio Fagundes não se encontrem no filme, frustrando muitos que queriam um repeteco da dupla pouco ortodoxa de “A Próxima Vítima”.

É de se notar, também, que Wilson Barros reforça mais uma vez no roteiro a estratégia de colocar em determinado personagem as falas que se assemelham a uma declamação das idéias do próprio diretor.

Ocorre com Malu, no passeio por um corredor negro, o fundo se sobrepondo ao primeiro plano, o rosto da mulher conversando com Ciça (que não aparece) e explicando como uma mestre de cerimônias quem são os “anjos da noite”, as figuras do submundo que gaba-se tanto de conhecer.

Wilson teve pouco tempo – 44 anos – de retribuir o tanto que acumulou nas idas à sala escura. Mas “Anjos da Noite” possui um anedotário próprio, em lances que ainda soam engraçados ou, no mínimo, sardônicos. Como a mocinha que vez por outra aparece e diz, numa quebra de expectativa, pelo sotaque carioca carregado, que em São Paulo “até a breguice é chique”. Um exemplo de wit que faz falta hoje em dia.

domingo, agosto 27, 2006

Contos Eróticos


Como em quase toda a filmografia brasileira dos anos 70 e princípio dos 80, que ninguém se engane com o título: o que era “erótico” em 1977 hoje em dia transparece tão delicado e cuidadoso que fica difícil acreditarmos que, de fato, os produtores do filme buscavam vendê-lo com o apelo do sexo.

Dividido em episódios, “Contos Eróticos” (1977) é uma coletânea filmada das quatro histórias vencedoras do Concurso de Contos Eróticos da extinta Revista Status, uma espécie de Playboy – inicialmente, antes mesmo do aparecimento da Playboy brasileira – publicada pela Editora Três e de conteúdo sofisticado, o que permitia anualmente à revista promover um concurso de textos, onde os melhores iam parar em livro.

E de uma das edições do concurso nasceu o filme. São quatro episódios sem qualquer ligação entre si, cada um deles dirigido por um cineasta diferente e com elenco diverso. O primeiro “Arroz com Feijão”, por Roberto Santos; o segundo “As Três Virgens”, por Roberto Palmari; o terceiro “O Arremate”, por Eduardo Escorel e o último “Vereda Tropical”, por Joaquim Pedro de Andrade.

“Arroz com Feijão” traz como maior mérito a utilização da música “A Dona do Primeiro Andar” dos Originais do Samba, em harmonia com a história popularíssima do rapaz pobre (Cássio Martins) que se encanta pela dona da pensão (Joana Fomm) onde almoça diariamente. Sugestionado pelo refrão intrigante (“Estou apaixonado/ apaixonado estou/ Pela dona do primeiro andar/ pela dona do primeiro andar”) o espectador aguarda ansioso as cenas de nudez farta da atriz, que no final são tão discretas que a câmera vira quase apenas observadora do cotidiano na casa de Joana, em um exercício cinematográfico singelo.

A segunda história, “As Três Virgens”, merece maior atenção: três velhinhas (Carmen Silva, Eva Rodrigues e Maria Anita Shut) vivem juntas em um casarão rememorando o passado, até que recebem a visita da sobrinha adolescente, Beta (Paula Ribeiro). Ela perdeu a virgindade com um namorado motoqueiro e precisa ser protegida dos perigos da vida. O roteiro é afiado e quando as senhoras maldizem o presente turbulento, o fazem com tanta precisão que nos perguntamos o que elas achariam do mundo de hoje, três décadas depois do convescote.

Quando se convencem de que não há motivos para impedir Beta de ver o namorado proporcionam uma noite de amor para o casal, a quem oferecem licor e bolinhos. A colocação final da história: “Tia Biloca, Tia Tunica e Tia Cotinha não existem mais” soa lírica no aviso de quanto o tempo é efêmero e tudo leva.

Quando pulamos para a terceira história, “O Arremate”, a mais fraca do filme, ficamos com saudades da segunda, já que temos aqui apenas a exibição maquinal de um estupro em uma fazenda, onde o senhorio (Lima Duarte) vai cobrar uma dívida do seu empregado e possui a filha deste (Liza Vieira) como pagamento.

Mas tudo parece o preparo para a quarta história, a incrível “Vereda Tropical”, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade e que fez para sempre a fama do filme, constando nas melhores (e piores) antologias do cinema popular brasileiro. “Vereda Tropical” é a história de um estranho professor universitário (Cláudio Cavalcanti), morador da Ilha de Paquetá, que mantém relações sexuais apenas com frutas, sendo a preferida uma rechonchuda melancia.

Mostrada em detalhes, a corte do homem à melancia (que ele lava, acaricia e cobre de talco antes do intercurso) rende inúmeras piadas, tornando-se quase uma lenda entre os cinéfilos. A performance de Cláudio Cavalcanti no papel de tarado é outro espetáculo à parte, valendo-se de uma simulação de volúpia e delícia que colore e humaniza o bizarro.

“Contos Eróticos” teria um contexto diferente sem esse delírio final – e aos curiosos que procuram o filme no barato sensacionalista, vale a pena reavaliá-lo como um mini-panorama de quando, mesmo involuntariamente, se fazia bom cinema no Brasil. É a arte de quatro grandes nomes exercitando em cima de histórias desiguais o prazer de filmar, oferecendo um produto de bom gosto ao público, que ao longo dos anos se desacostumou a ser tratado com tamanha deferência e respeito.

terça-feira, agosto 22, 2006

Dois Perdidos Numa Noite Suja


Quando realizou “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (1971), o diretor Braz Chediak já vinha de uma adaptação bem-sucedida do mais conhecido texto de Plínio Marcos, “Navalha na Carne”.

Quase peças filmadas, as duas produções – de Jece Valadão, na lendária Magnus Filmes – têm em comum a dificuldade de assimilação por parte do espectador, na medida em que Chediak, acertadamente, não faz qualquer concessão ao entretenimento fácil, filmando Plínio Marcos de uma forma que deve ter deixado o próprio dramaturgo surpreendido e orgulhoso.

"Dois Perdidos Numa Noite Suja", a peça de 1966 e o filme, lançado cinco anos depois, contam a história de Tonho (Emiliano Queiroz), migrante pobre que chega à cidade grande em busca de oportunidades. Apesar de ter estudado datilografia e terminado o ginásio (“Eu tenho estudo!”, repete obcecadamente), Tonho vai trabalhar de carregador no mercado de frutas. Lá divide um quarto com Paco (Nelson Xavier), sujeito maledicente e ignorante, que num misto de inveja e oligofrenia, resolve torturar o vizinho de cama com os artifícios mais criativos possíveis.

Durante todo o filme somente os dois falam e os personagens secundários são mínimos, quase invisíveis. Paco manipula Tonho inicialmente com a história de que um certo Negrão estaria prometendo uma surra no recém-chegado. O infeliz Tonho aceita a provocação, se deixa envolver e aos poucos abre sua vida para o insuportável Paco. Em um segundo momento, a questão da inveja é colocada de maneira reversa e Tonho, que precisa de um sapato para procurar emprego, atormenta-se com o fato de que Paco tem um sapato novinho nos pés, presenteado por alguma alma caridosa.

Como em qualquer relação doentia, os dois se completam e necessitam mutuamente. Paco incita Tonho rumo ao abismo, com um machismo que hoje soa anacrônico em demasia. Tonho é tão sozinho na cidade – no original, Santos; no filme, Rio de Janeiro – que encontra na monomania destrutiva de Paco uma espécie de conforto solidário.

Juntos planejam um assalto que, depois de executado, torna a dinâmica da dupla ainda mais simbiótica. Fica claro que Paco projeta suas desvalorizações e paranóias em Tonho e o outro idem. Como a isca é fácil do espectador morder, aos poucos o olhar cansa e dependemos da performance dos atores para que nossa atenção não seja dispersa.

Nesse ponto, Emiliano Queiroz e Nelson Xavier são perfeitos e, ligados à ambientação lúgubre e insalubre, vão em crescendo até que um fim seco apareça na tela, algo inconcebível para um filme comercial hoje, trinta e cinco anos depois. Somando-se a essa aridez de recursos, resta ainda a dificuldade de assimilarmos Paco, uma das figuras mais contraproducentes que o teatro já concebeu.

Obcecado por seu machismo de anedota, o personagem ganha na refilmagem que José Joffily fez em 2002 algumas características que o tornam andrógino e sedutor na pele de Débora Falabella. Mas em 1971 o roteiro optou pela similaridade ao original – e o que temos é um protagonista tão impossível que torcemos para que Tonho abandone sua passividade e mostre de uma vez por todas que é sim, homem, de preferência no couro do incrédulo alucinado.

Presos ao quarto de fundos onde moram, Tonho e Paco mereceram adaptações teatrais em vários países do mundo, colaborando para a fama do dramaturgo santista, morto em 1999. Testado várias vezes no cinema, Plínio Marcos sobrevive com folga, e esta criação de Braz Chediak já antecipava de certa forma os futuros acertos do diretor com textos de Nelson Rodrigues – quando, a exemplo do universo de “Dois Perdidos”, a transposição ganhava em fôlego cinematográfico o que perdia em liberdade dramática e grandeza cênica.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Stelinha


Se realizar e lançar um longa-metragem hoje no Brasil ainda é tarefa aventuresca, que dirá no finalzinho da década de 80, quando era chique se unir a máxima de que “filme brasileiro só tem palavrão” com a conclusão de que a combalida Embrafilme havia se tornado um elefante branco. Talvez por isso “Stelinha” (1990) reúna uma surpreendente ficha técnica (roteiro de Rubem Fonseca, direção de Miguel Faria Jr., interpretação de Ester Góes – dublada nas canções por Adriana Calcanhoto), na certeza de que um filme é um filme, mas um grande filme em um país mesquinho e atônito exigiria a maior tour de force possível.

Passados dezesseis anos (um a mais de quando os brasileiros se esquecem de tudo ocorrido nos quinze anteriores, na definição precisa de Ivan Lessa), o resultado de “Stelinha” ainda permanece atual e interessante. O drama da cantora (Esther Góes) ex-famosa no ocaso da vida, devendo três meses de aluguel em um apartamento cacarecado e pulando de pileque em pileque, é quase um estereótipo universal – mas que, em mãos pouco hábeis, poderia soar caricato e involuntariamente cômico.

Não é o caso de Miguel Faria Jr., que em 1979 assinou um dos maiores filmes brasileiros, “República dos Assassinos”. Faria Jr. leva com segurança as idas e vindas de Stelinha, criatura de outro tempo e habitando um mundo néon-realista onde não se encaixa. O conflito central gira em torno da dissolução de sua personalidade e a tentativa ingênua de Eurico (Marcos Palmeira), de salvar a “estrela”, fazê-la voltar a gravar e devolver-lhe uma réstia de amor-próprio impossível.

Como gene de um roteiro de Rubem Fonseca os personagens são de uma crueldade fora do comum. Não há margens de dúvidas sobre Stelinha, ela está em queda livre. Assim como não restam dúvidas sobre Eurico – bem intencionado, mas envolvido pela personalidade borderline da cantora – e as namoradas do rapaz (Lília Cabral e Ana Beatriz Nogueira) – pragmáticas e egoístas. Essa rigidez – que nem por isso escorrega em simplificações – ajuda a manter o fio condutor da trama e cria o tipo de interesse mórbido que também seduz outros textos do famoso escritor: afinal, até onde vai o fundo do poço?

Descobre-se muito rapidamente que Stelinha não abraça tréguas. Bebe horrores antes de um teste para uma nova gravadora, hospeda vagabundos no apartamento revirado e termina violentada por um grupo de mendigos (!). Expurga esse lado menos brilhante com eventuais passagens onde é homenageada por fãs no subúrbio (cantando “Qui nem Jiló” de Luiz Gonzaga) e sendo recebida ainda como uma estrela em gafieiras modestas.

Pulando o calvário, o filme se sustenta pelo choque óbvio de gerações. Eurico, apaixonado por rock, diz que a música não tem fronteiras; Stelinha, em um nacionalismo regresso, torce o nariz para a mistura do samba com ritmos “estrangeiros”. Fica logo delimitado que se Eurico admira Stelinha, ela em contrapartida apenas depende dele cada vez mais, em uma ternura torta que não se sustentaria se suas expectativas de vida fossem mais promissoras.

“Pena que essas flores murcham logo.” A frase dita entre lágrimas, seguida pelo esgar otimista “Eu preciso de uma chance. Uma só”, resumem a gangorra que pessoas narcísicas enfrentam quando postas à prova. Famosas ou não, o mundo está cheio delas, e assim o filme merece ser visto também como o drama humano de quem perdendo o trem da história, abdica aos poucos de quase tudo.

Sob esse ângulo, “Stelinha” cresce e contraria a opinião de alguns críticos da época – que enxergaram nele mais defeitos do que as qualidades presentes nos blockbusters de ocasião. E permaneceu em cartaz pouquíssimo tempo, a despeito de ter ganho doze Kikitos no Festival de Gramado.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Nos Embalos de Ipanema


Entre 1977 e 1982 o diretor, produtor e roteirista Antônio Calmon deve ter batido alguma espécie de recorde, pois dirigiu uma dezena de longas-metragens, a maioria deles obras-primas do cinema popular brasileiro. Quando finalmente teve seu estouro de bilheteria com “Menino do Rio” e a continuação “Garota Dourada”, Calmon podia se orgulhar de ter assinado trabalhos infinitamente melhores, mesmo que àquela altura obscuros para o novo público que lotava as salas em busca de odes ao surfe e à geração saúde.

Em 1978, por exemplo, o tema do surfe já aparecia em “Nos Embalos de Ipanema”, com a típica verve calmoniana, o que traduz-se por certa irreverência (além de uma dose grande de subtextos) no trato da linguagem cinematográfica. Logo é necessário que se mapeie os trabalhos do diretor e se reestabeleça a ponte autoral entre eles, já que além de filmes notáveis, Calmon deixou um estilo, uma assinatura que ninguém mais conseguiu repetir desde então.

“Nos Embalos de Ipanema” discorre, como “Terror e Êxtase”, sobre a eterna luta de classes e a tensão do choque entre pólos conflitantes. De um lado, o garotão suburbano Toquinho (André de Biase, dublado) viaja de trem todo dia, saindo de Marechal Hermes para pegar onda em Ipanema. Do outro, o beautiful people ipanemense, que trata o rapaz de forma blasé e irônica, até que descobre que ele pode ser um inocente útil.

É preciso uma leitura do cotidiano social da cidade para que a história seja melhor percebida. A praia iguala todos, ricos e pobres, que têm o direito de freqüentá-la até a hora em que vão embora e cada um, claro, se enfie de volta no seu mundinho. Nesta dinâmica, Toquinho conhece Patrícia (Zaira Zambelli), literalmente uma patricinha do bairro, que se oferece ao rapaz pobretão. Como não pode sustentar o caso, Toquinho aceita a ajuda de Das Bocas (Roberto Bomfim), intermediário de rapazes para homossexuais grã-finos e coroas.

Das Bocas apresenta Toquinho a André (Paulo Vilaça), um gay de meia-idade que escuta discos da cantora Maysa enquanto serve paella valenciana ao garoto. Transversal à trajetória de Toquinho, temos a de Verinha (Angelina Muniz), namorada do rapaz, que também se desloca de Marechal Hermes para a Zona Sul, onde trabalha em uma imobiliária cujo lema é “Venha viver no mundo maravilhoso de Ipanema”. Quando Toquinho passa a viver com André, ignora a amiga suburbana pelas ruas do bairro chique.

Toquinho, deslumbrado, vai se enchendo de uma onipotência infantil que lhe custará caro. E o experiente André tem o pleno domínio da situação – afinal, está em seu meio, manipulando um forasteiro. Toquinho tira dinheiro de André e gasta com Patrícia, boates e uma prancha nova. Quando a situação deixa de ser confortável basta a André dar o flagrante no pupilo, denunciando-o para os pais da garota, que se apavoram em vê-la envolvida com um michê.

O pai e a mãe de Patrícia (Mauro Mendonça e Jacqueline Laurence) derramam lamúrias típicas de classe-média, enquanto a garota diz a Toquinho o que realmente pensa dele: “Tem milhões de garotinhos iguais a você por aí, sacou? (...) Fazendo qualquer negócio para subir na vida e um dia ter uma família ipanemense igual essa minha. (...) Você não passa de um babaquinha se vendendo por aí, a praia está lotada de você”. E o pai de Patrícia vira para o vizinho André com ironia conciliadora: “O senhor que é feliz, é bicha, não tem mulher nem filha!”.

Regalam-se todos e sobra o intruso, mandado pastar, de preferência longe dos limites da vizinhança. Mas passado o choque de realidade, adaptando-se melhor ao “embalo”, Toquinho descobre que a ex-namorada Verinha também está “se virando” e temos a promessa de um empreendedor final feliz.

A legenda, antes dos créditos inicias, traz a letra da música de Tim Maia, “Sossego”: “Ora Bolas/ Não me amole / Com esse papo/ De Emprego/ Já Falei/ Não Estou Nessa/ O que eu quero/ É sossego”. E se os fins justificarão os meios, Toquinho e Verinha mandam a moral burguesa para as cucuias e sabem que corpos jovens e atraentes o suficiente são a premissa para que o jogo não termine – e assim, poderem se manter de pé nas ondas do paradisíaco bairro.

terça-feira, agosto 08, 2006

Terror e Êxtase


Uma velha senhora (Gracinda Freire) está sentada em um banco no final da praia do Leme, ao lado do Caminho dos Pescadores. Com uma garrafa de vodka nas mãos, pragueja contra a vida. Seu destino é beber e no dia seguinte resolver o porre com “copos e mais copos de água gelada”. Mas eis que, naquele princípio de manhã, um fusca conversível estaciona por ali e do carro salta o marginal Mil e Um (“apelido de bandido quando pega, pega de vez!”), aborda a mulher e os dois discutem. O bandido saca uma arma e acerta dois tiros na testa da vítima.

Com esta vinheta melancólica e doentia inicia-se “Terror e Êxtase” (1979), um dos melhores filmes policiais brasileiros, dirigido por um especialista no gênero, Antônio Calmon.

Baseado no livro homônimo de José Carlos Oliveira, “Terror e Êxtase” foi visto à exaustão nos anos 90 pelos adolescentes que descobriam o cinema nacional através das sessões da Tv Bandeirantes. Injustiça que fosse notado apenas pelas tórridas cenas entre o primitivo Mil e Um (Roberto Bomfim) e a dondoca Leninha (Denise Dumont). Além do aspecto voyeurístico, a trama oferece também um apanhado cuidadoso das relações conflitantes entre a classe-média e a periferia da cidade, que encontram no tráfico de drogas seu denominador comum e combustível de desgraças.

Leninha é uma menina da “patota barra-pesada do Baixo Leblon”, o que para bom entendedor do subtexto carioca traduz-se por abastados filhinhos de papai, que encaram uma vida vazia e sem perspectivas mergulhados em toneladas de pó e noitadas de farras. Militante dessa tribo, Leninha paradoxalmente odeia a burguesia – odeia a si mesma – e quer enfiar o pé na jaca, sem saber direito como.

Quando conhece Mil e Um – ele romanticamente tenta assaltá-la – junta-se a vontade e a necessidade. O casal parte para o morro, transam, se apaixonam. Mil e Um tem resquícios de filosofia de porta de botequim e paternalismo barato, que encantam a moça. Ela, por sua vez, oferece a ele aquele tipo de carinho que meninas muito jovens associam à maternidade, em uma doçura ingênua e um bocado irritante. No afã de continuarem juntos, Mil e Um descobre a pólvora e tem a idéia de seqüestrar um amigo de Leninha, o junkie Betinho (André di Biase).

“Ele trabalhou uns tempos em um jornal, aí enjoou, ficou de saco cheio, aí ele largou tudo e agora está escrevendo literatura udigrudi, ele diz que é contra o sistema (...) O Betinho é tão rico por parte de pai e de mãe que ele simplesmente não consegue ser pobre, entendeu? Por isso que ele é revoltado” – é assim que Leninha introduz Betinho para seu homem, que convence a moça a levá-lo na casa do garotão, e, com uma quadrilha de assaltantes de terceira categoria, assaltam primeiro um banco e depois seqüestram Betinho, na ação alucinada de bandidos em fim de carreira.

Leninha precisa ser “mãe” de Betinho e de Mil e Um; logo, enquanto consola o seqüestrado, afaga o sequestrador. Da gangue faz parte Minhoquinha (Anselmo Vasconcellos), psicopata perigoso, que assassina o cachorro da casa apenas para desocupar espaço e prender o zelador no canil. Quando a relação entre Mil e Um e Leninha se desgasta, na pressão psicológica a que estão expostos, o bandido permite ao comparsa que estupre sua namorada, em cena dantesca onde brilha a capacidade e o desprendimento dos quatro atores para que o susto saísse perfeito.

Nada escapa aos olhos de Calmon, que junto com Álvaro Pacheco Júnior adaptou o romance dificílimo do lendário Carlinhos de Oliveira, nome associado à crônica, mas que em “Terror e Êxtase” documentou em um texto longo e complexo todas as nuances do universo paralelo que se ocultava no país.

Capitalizando a droga e a contravenção, a elite naquele tempo abria as portas para o caos institucionalizado que vivemos nos dias de hoje. Assim, nada melhor do que citar Mil e Um, na seqüência final, se explicando para Betinho: “Desculpe o mau jeito, garotão, mas guerra é guerra!”.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Quando O Carnaval Chegar


Para o Sergio Andrade

Em 1972, durante o lançamento de “Quando o Carnaval Chegar”, Cacá Diegues não era mais o aluno de Direito da PUC, não freqüentava mais as discussões do CPC da Une – por onde produziu “Escola de Samba, Alegria de Viver”, episódio de “Cinco Vezes Favela” (1961) – e voltava, no ano anterior, de um exílio na Itália ao lado da mulher, Nara Leão.

Interessante que passado aquele boom do Cinema Novo nos 60, já em 1973 em entrevista à Filme Cultura para divulgação de “Joanna Francesa” – filme posterior a “Quando O Carnaval Chegar” –, Diegues traçava um micro-inventário do período, em atitude geralmente associada a cinqüentões ou sessentões, nunca ao rapaz de 32 anos de idade:

“Não posso, porém, dizer que não existe uma vontade de recomeçar, de reelaborar o moderno cinema brasileiro. Ele ficou conhecido, há 10 anos, pelas suas idéias. Hoje está desinteressante, seu nível baixou, temos feito alguns dos piores filmes do mundo.” A explicação: “Não é culpa dos cineastas. O filme brasileiro custa cerca de 50 mil dólares (Cr$300 mil) e o estrangeiro entra no país por 10 mil dólares (Cr$ 60 mil).” A solução: “O governo complementar a diferença" ou "[taxar-se] a produção estrangeira.”

“Quando O Carnaval Chegar” nasce, portanto, em meio a essa inquietação entre a política oficial de cinema e o desejo de esquadrinhar ou “reelaborar”, após uma experiência do exílio, o cinema até então inventado .

Mas para se pensar no futuro, foi preciso voltar-se ao passado. Tanto na produção cinemanovista da Mapa Filmes de Zelito Vianna, associada a Luiz Buarque de Hollanda, K. M. Eckstein e ao próprio Diegues – roteirista e co-autor do argumento, com Chico Buarque e Hugo Carvana –, quanto na temática, que pretende construir uma homenagem aos cantores da era do rádio.

A equipe formada por Chico Buarque (Paulo), Nara Leão (Mimi) e Maria Bethânia (Rosa) ganha em subtexto: cantores, garotos, divertem-se em um filme que joga conscientemente com a fama do trio, fora das telas. A herança musical sente-se bem forte nos acertos da trilha-sonora – com músicas de Chico, Lamartine Babo, Braguinha, Joubert de Carvalho, Assis Valente, Nássara, Tom e Vinícius, lançada em discos pela Phillips, sucesso na época. E se sobressai da consistência de uma obra um tanto solta, que não aproveita a idéia plausível do argumento.

Paulo, Mimi e Rosa são cantores agenciados pelo empresário Lourival (Hugo Carvana), e convivem com o motorista Cuíca (Antonio Pitanga), tocador do instrumento nas rodas de samba da favela de origem, sempre pedindo ao Loura uma oportunidade no show.

Cuíca consegue, e ainda é usado por uma espectadora francesa (Elke Evremides, popularmente Elke Maravilha) que estava na platéia. Ilude o pobre com promessas de casa, comida, viagens pela Europa. Enquanto isso, Paulo se apaixona por Virgínia (Ana Maria Magalhães), decepcionando a pobre Mimi – o nome do personagem em referência à canção de Mário Reis –, que ouve os conselhos de Rosa – referência à de Pixinguinha –, freqüentadora assídua do terreiro da mãe-de-santo Tiazinha.

Nara e Bethânia, primeira e segunda intérpretes no show Opinião do Teatro de Arena, tentam tocar o barco e segurar a onda de Lourival, pressionado por Anjo (José Lewgoy), manda-chuva do show business, cujo capanga é vivido pelo grande Wilson Grey.

Numa foto que se perpetuou no tempo, Chico, Nara e Bethânia estão de fraque, bengala e cartola, cantando “As Cantoras do Rádio”, como no esquete de Aurora e Carmen Miranda em “Alô, Alô, Carnaval” (1935), de Adhemar Gonzaga. No entanto, apesar da alegria de se falar e cantar o carnaval em espírito de camaradagem, são de Mimi as cenas mais intrigantes do filme, numa linha de austeridade que surpreende a base do enredo.

Deprimida, deitada em um casarão colonial em ruínas – Mimi é descendente de quatrocentões mineiros – com quatro círios crepitando de cada lado do corpo, ela canta marchinhas num compasso lento, tristíssimo, propositadamente fantasmagórico. O mesmo na cadeira de balanço, quase recitando “Tahí”, de Joubert de Carvalho, como numa ode ao amor de Paulo.

A avenida Rio Branco vazia no início e depois inundada pelos corsos e figuras bizarras do carnaval de rua – quando o Sambódromo ainda nem pensava em ser construído – dão um tom rápido de cinejornalismo, do tipo a que se assistia nos anos 30 e 40.
Com fotografia de Dib Lufti e montagem de Eduardo Escorel, o Carnaval chega, termina e, confundido com a passagem, se despede.

A idéia da trupe em um ônibus voltaria repaginada por Cacá, sete anos depois, em “Bye Bye Brasil”, numa caminhonete azul desbotada. Mas os artistas da “Caravana Rolídei” procuravam às escuras não mais o Rio de Janeiro, e sim o Brasil profundo que teimava em não se ver.