quarta-feira, agosto 30, 2006

Anjos da Noite


Wilson Barros dirigiu um único filme, “Anjos da Noite” (1986), motivo suficiente para integrar o ciclo dos longas paulistanos que em meados dos anos 80 receberam a pecha de “neon-realistas”. Como ser “néon” e “realista” ao mesmo tempo? Bem, a resposta depende dos olhos de quem os vê.

“Neon-realismo” pode tanto ser encarado pelo prisma negativo (aqui, o termo “néon” funcionaria como crítica a uma suposta artificialidade visual, contrária aos cânones realistas tradicionais), quanto pelo positivo (em que o “neón” encarnaria o desejo de subverter a análise social através de um caldo de cultura pop, vanguardismo underground, tecnologia e outras nóias tipicamente oitentistas).

Ex-estudante de arquitetura, ex-serígrafo – manipulador de silk-screen –, futuro graduado e professor de Cinema na ECA da USP, Wilson Barros trabalhou na Lauper Filmes – de Luís Sergio Person e Glauco Mirko Laurelli –, como assistente de Sebastião de Souza em “Transplante de Mãe”, episódio de “Em Cada Coração Um Punhal” (1970).

Na década seguinte, entre aulas e apostas na produção local, roteiriza e traz à tona “Anjos da Noite”; filme que ao lado de “Cidade Oculta” (1986) – de Chico Botelho – tem no próprio título uma carga indissociável da ambientação do enredo: o cenário urbano, a noite de São Paulo, os gauches, prostituídos, seviciados, travestidos, empacotados na fotografia de José Roberto Eliezer (também produtor de “Anjos...”, com André Klotzel e Zita Carvalhosa) e na sonoplastia de Walter Rogério – que viria a ser diretor de Chiquinho Brandão em “Beijo 2348/72” (1990).

Curioso notar que apenas um ano e três meses bastaram para fulminar pelo menos três peças-chave de “Anjos...” e “Cidade...”. Chiquinho Brandão faleceu em junho de 1991; Botelho, em novembro de 91; Barros, em setembro de 92.

Ted – apelido de Teodoro (go-go boy, personagem de Guilherme Leme) –; Marta (diva quase socialite, Marília Pêra); Jorge Tadeu (diretor de teatro, Antonio Fagundes); Lola (travesti, Chiquinho Brandão) e o gângster Fofo (Cláudio Mamberti, Ratão de “Cidade Oculta”) são os “anjos” que transitam em horário fortuito pelas ruas, principalmente de madrugada. Restam ainda Guto (namorado de Ted, Marco Nanini), Malu Maneca (modelo e cafetina, Zezé Motta), Bimbo (ator, amigo de Malu, Aldo Bueno), Milene (secretária de Malu, Aída Leiner) e Ciça (estudante de sociologia, interessada pela vida de Malu, Be Valério).

Vem provavelmente de Chiquinho Brandão a performance mais memorável do filme. Início da trama, close total no rosto do travesti, trabalho de fotografia e direção que ilude o espectador, levando-o a crer que está diante de uma cena gélida de assassinato. O cadáver estirado na banheira, sangue no chão, paredes claustrofóbicas, música fúnebre de Sérvulo Augusto.

Mas a cena logo se transforma num jogo de metalinguaguem, característico de diversos exemplares néon-realistas: teatro dentro do filme, filme dentro de outro, realidade dentro do lúdico, que se impõe como realidade.

Percebemos isto quando a câmera se afasta e descobre-se que Lola é atriz, ensaia uma peça de teatro – dirigida por Jorge Tadeu, o performático de cavanhaque, bigodinho e gola rolê –, atuando no papel de travesti, que aliás é a sua ocupação no cotidiano.

Quando em outro momento Lola canta “Ne Me Quittes Pas” na boate, no bas-fond sem eira nem beira, instantes antes de ser presa pela trupe do Fofo, baixa o Jacques Brel em Chiquinho e o círculo de referências pop se completa, lembrando as citações anteriores a Tetê Espíndola e “Casablanca”, num presságio da coreografia que Ted e Marta rodopiarão dali a pouco, à moda Fred Astaire e Cyd Charisse em “Roda da Fortuna”.

Aliás, uma menáge entre Bimbo, Milene e Ciça sobre o carpete, o mobiliário branco e os teclados da música incidental ao fundo, denotam aquelas marcas d’água indeléveis do cinema nos anos 80. Pena que Aldo Bueno e Antonio Fagundes não se encontrem no filme, frustrando muitos que queriam um repeteco da dupla pouco ortodoxa de “A Próxima Vítima”.

É de se notar, também, que Wilson Barros reforça mais uma vez no roteiro a estratégia de colocar em determinado personagem as falas que se assemelham a uma declamação das idéias do próprio diretor.

Ocorre com Malu, no passeio por um corredor negro, o fundo se sobrepondo ao primeiro plano, o rosto da mulher conversando com Ciça (que não aparece) e explicando como uma mestre de cerimônias quem são os “anjos da noite”, as figuras do submundo que gaba-se tanto de conhecer.

Wilson teve pouco tempo – 44 anos – de retribuir o tanto que acumulou nas idas à sala escura. Mas “Anjos da Noite” possui um anedotário próprio, em lances que ainda soam engraçados ou, no mínimo, sardônicos. Como a mocinha que vez por outra aparece e diz, numa quebra de expectativa, pelo sotaque carioca carregado, que em São Paulo “até a breguice é chique”. Um exemplo de wit que faz falta hoje em dia.

8 comentários:

Anônimo disse...

Nossa ANDRÉA vc resgatou um filme que eu adoro. O texto está muito bom e o termo Neon Realista é ótimo, muito divertido. Acho o Cidade Oculta o maior representante desse adjetivo, mais que o Anjos da Noite, com certeza embora goste muito do Cidade Oculta...

Anônimo disse...

Andréa, muito bom o texto. Faltou dizer que são de cineastas da Vila Madalena aqui de São Paulo, que é um grupo. Mas o resto, está ótimo como sempre. Confesso, que nã vi Cidade Oculta, mas o Chiquiho Brandão está muito bem em "Beijo" do Walter Rogério, que é um filmaço. Bjos, Matheus.

Andrea Ormond disse...

Oi Marcelo, anos 80 fala muito pra nossa memória afetiva, não fala? E o termo cai bem, dá pra ler de várias formas rs Beijo

Matheus, o Chiquinho Brandão teria rendido tanto nos filmes, a morte dele foi uma perda estúpida, estranha de digerir. Ele parecia estar começando a entender melhor a mídia, com papéis de ponta, como o do último filme. Bjs

Juarez Junior disse...

Adoro esse filme Andréa. talvez vc não se lembre, mas pedi para vc escrever uma crítica dele no primeiro contato que mantemos. Adorei o testo. Fiquei com vontade de rever!
Bj!

Andrea Ormond disse...

Oi Juarez, e o pedido foi atendido, ainda que com certo atraso :) Bjs!

Antônio do Amaral Rocha disse...

Wilson Barros (1948-1992)
Por AARocha
Nada mais chocante do que uma notícia dessas. Estava lendo uma resenha crítica de José Geraldo Couto, na Folha de São Paulo, de 4/2/2007, a propósito do lançamento em DVD do filme Anjos da Noite, de Wilson Barros, e logo no primeiro parágrafo fui acometido de um choque. Estava escrito: Wilson Barros (1948-1992). Explico: é chocante saber que quando duas datas estão anotadas à frente de um nome é porque aquele ser humano deixou de existir naquela última data. Fiquei sabendo, 15 anos depois, que Wilson Barros morreu. Mas será verdade? Não teria sido um engano do crítico? Na dificuldade em conferir tal informação só posso acreditar nela e ficar consternado 15 anos depois.
No final da década de 70 e início da década de 80, Wilson foi um brilhante colega no curso de pós-graduação em Cinema na ECA. Lembro-me que, enquanto um grupo de alunos orientados pelo Professor Peñuela e Ismail Xavier, entre eles eu, gatinhávamos no contato com as teorias cinematográficas, Wilson já trilhava com maestria no curta-metragem e se destacava entre todos. Certa vez, um trabalho de curso proposto pelo Professor Peñuela foi a realização de um média-metragem. Lembro-me que todas as tarefas típicas da realização de um filme foram divididas entre o grupo e a direção foi dada a Wilson, por razões óbvias, declarou Peñuela. "É o único aqui que tem perfil de diretor e quero investir nesta idéia", foram mais ou menos as palavras dele. Dessa experiência realizamos Os crimes da lata, argumento do próprio Wilson, roteirizado por ele, com ajuda dos colegas (éramos umas 10 pessoas). A minha função foi de fotógrafo de cena (still, no métier cinematográfico) e foi igualmente gratificante passar aquele período num set sob a direção de Wilson.
Lembro-me de um outro episódio: estava conversando com o Wilson e disse a ele que tinha começado a escrever um trabalho sobre o Cinema Novo sob o ponto-de-vista do Tropicalismo. Wilson ouviu os meus argumentos, me instigou, me questionou e no fim me disse: Antônio, esse é o tema da minha dissertação. Confesso que, diante disso, desisti da idéia, visto que já tinha alguém brilhante pensando no tema. Não sei se Wilson escreveu essa dissertação, nem mesmo se defendeu seu mestrado ou doutorado, mas tenho a certeza que se o fez foi de forma brilhante.
Depois disso, Wilson passou a ter uma carreira cinematográfica própria e ainda na década de 80 realizou pelo menos uma obra-prima conhecida que é Anjos da Noite.
Eu, depois daquela experiência, continuei estudando Cinema, mas perdi o contato com aqueles colegas, fiz outros cursos e entrei na pós da FFLCH da USP me propondo a estudar as relações entre Literatura e Cinema.
Achava mesmo muito estranho não ter conhecimento de nenhum filme novo de Wilson e hoje tenho essa notícia, por acaso, num complemento ao seu nome. Desconcertante e triste... Publiquei este comentário no meu blog: http://aamaralrocha.blogspot.com

joêzer disse...

boa leitura do filme.
acho que você vai gostar do livro "O cinema brasileiro pós-moderno: neon-realismo", de Renato Pucci Jr (Ed. Sulina). Ele resgata com brilhantismo uma trinca de filmes dos anos 80 (Cidade Oculta, Anjos da Noite, Dama do Cine Shangai) que foram achincalhados e celebrados por motivos semelhantes. imperdível como cada um dos 3 filmes.

Gustavo S. disse...

Revi "Anjos da noite" recentemente, menos de um mês atrás. Já tinha visto na falecida Rede Manchete, no início dos 90 (ou final dos 80) e também nos anos 2000, via download. Cheguei a ele por causa de "Anjos do arrabalde", que também vi na Manchete no fim dos 80 (ou início dos 90), e lembro de quando os dois filmes estavam em cartaz, em 87 ou 88, mas eu tinha só 10 anos e não sabia o que esses filmes significavam, exceto a coincidência dos "anjos" nos títulos. Também (re)vi o filme do "Carlão" poucos dias antes do filme do Wilson Barros, agora durante a pandemia.
Emendei com "A dama do Cine Shanghai", que também havia visto (trechos) muito tempo atrás. O "Cidade oculta" eu vi faz uns 2 ou 3 anos, não gosto tanto quanto dos 3 antes citados.
Nas últimas semanas tenho visto (ou tentado ver) tudo aquilo do cinema brasileiro que ou eu vi faz muito tempo ou que nunca tinha visto. E, sim, esse interesse se deve em parte ao seu trabalho de resgatar títulos importantes de nossa filmografia e que, tempos atrás, não eram considerados "tão importantes assim", lançando novas perspectivas sobre esta produção tão rica e múltipla.
Tempos atrás vi a cópia restaurada do filmaço "República dos assassinos" (o qual também havia visto ao menos trechos na Manchete) muito por causa de sua ótima entrevista com Anselmo Vasconcelos, um grande intérprete que merece mais reconhecimento.
Enfim, vim aqui só pra dizer que seu trabalho é ótimo, imprescindível. Muito obrigado por seus escritos e por suas reflexões sobre nosso cinema.
Abraço.