
Desde os “falantes e cantantes” – representações da era muda – às produções mais recentes, os realizadores brasileiros acostumaram-se a matar hordas de leões por dia. Não porque tenham um espírito absolutamente aventuresco e saiam de espingarda em punho, a conquistar a savana e colonizar os pagãos. Mas sim porque a ausência de estruturas estáveis, centros produtores que absorvam os talentos nacionais e dêem-lhe condições de trabalho, impõe a audácia como a mãe suprema de nosso cinema. Um símbolo, um carimbo que estampa boa parte dos filmes que chegam às telas e que se perpetuam com o tempo.
Em 1991, Carlos Reichenbach e Sara Silveira fundaram a Dezenove Produções Cinematográficas. “Ação entre amigos” (1997), segundo longa-metragem de Beto Brant, foi criado em meio a este geist artístico, concebido por uma equipe que reuniria ainda André Abujamra – encarregado da criação musical – e Marçal Aquino – do argumento e co-roteirista, ao lado de Brant e Renato Ciasca, produtor associado.
A marca d´água da Dezenove está lá, em “Ação entre amigos”. Começando pelos créditos – impressionantes, de Marcello Pallotta e Marcelo Laruccia – e estendendo-se ao término do filme, percebe-se o cuidado na produção de um estado de arte, de um imagístico autoral, que fique bem distante das simplificações comerciais a que o público nativo tristemente se acostumou.
Miguel (Zecarlos Machado), Elói (Cacá Amaral), Paulo (Carlos Meceni) e Osvaldo (Genésio de Barros), ex-membros da guerrilha urbana dos anos 70, buscam – a partir da loucura e do frêmito vingador de Miguel – um acerto de contas com o torturador, Correia (Leonardo Villar) – à exceção de Osvaldo, que decide voltar para casa. Dado como morto, Correia esconde-se no interior de São Paulo, em cidadezinha na qual mantém um aviário para rinha de galos. Assistimos a flashbacks entre presente e passado, à prisão dos amigos e da esposa de Miguel – grávida, torturada até a morte pelo clone do delegado Fleury.
Vejo em “Ação Entre Amigos” muitos pontos pró, alguns contra. A respeito dos últimos, cito o pequeno desdobramento do roteiro – alicerce inicial, mas não total, de uma obra feita para a sala escura. Parece-me pouco crível que em 76 minutos a história, que teria bem mais a render, se fizesse plena aos espectadores. A complexidade e as diferenciações entre os personagens – reforçadas pelo próprio roteiro – depõem contra a facilidade com que os quatro amigos encontram Correia, Miguel executa-o e fica sabendo ali mesmo, instantes antes, que o investigador fôra ajudado por um deles. Dar mais espaço a Leonardo Villar endemonizaria o enredo, alimentaria o duelo entre Correia e Miguel, acrescentando à história as camadas de barbárie que ambos carregam, em lados opostos do que crêem ser a “moral”. “O Invasor” (2002) conserta estas pontas soltas; a tríade Aquino-Brant-Ciasca conduz à perfeição os delírios de Paulo Miklos, Marco Ricca e Alexandre Borges.
Em relação aos aspectos memoráveis, Brant leva a ação com a categoria de sempre – virtuose a se confirmar em “O Invasor”. As performances do elenco também se destacam, em especial a de Zecarlos Machado e Leonardo Villar. O primeiro, pela balbúrdia, pelo horror que guarda sepultado no corpo de cinqüentão; o segundo, pela conhecida economia de gestos e firmeza, confirmando a secura de Correia, monstro deixado quieto, velho, anistiado pelo Poder Público.
Houve um tempo em que o gênero policial se deleitava com maniqueísmos, o vilão perseguia mocinha, o justiceiro defenestrava o bandido, a donzela sentia-se honrada aos olhos de todos. Claro está que em certos casos não paira nenhuma pejoração sobre este circuito ficcional previsível – William S. Hart não seria William S. Hart, Wilson Grey não seria Wilson Grey, Lewgoy não seria mau e leniente. Mas despido do culturalismo dos anos 60, das exploitations dos 70, do neon-realismo dos 80, o cinema de Brant – iniciado com o curta “Aurora” (1987) – é exemplo de que a vida urbana pode ser claustrofóbica e brutal, com caminhos perdidos, perigosos, leves – estes últimos, para quem atinar o lirismo subjacente. Estamos no início do caminho, muito mais há de surgir por aí. A cinematografia aguarda novas incursões do diretor de “Crime Delicado” (2005). Com o tempo, iremos cotejá-las em relação a outras, de sua particularíssima obra.
Em 1991, Carlos Reichenbach e Sara Silveira fundaram a Dezenove Produções Cinematográficas. “Ação entre amigos” (1997), segundo longa-metragem de Beto Brant, foi criado em meio a este geist artístico, concebido por uma equipe que reuniria ainda André Abujamra – encarregado da criação musical – e Marçal Aquino – do argumento e co-roteirista, ao lado de Brant e Renato Ciasca, produtor associado.
A marca d´água da Dezenove está lá, em “Ação entre amigos”. Começando pelos créditos – impressionantes, de Marcello Pallotta e Marcelo Laruccia – e estendendo-se ao término do filme, percebe-se o cuidado na produção de um estado de arte, de um imagístico autoral, que fique bem distante das simplificações comerciais a que o público nativo tristemente se acostumou.
Miguel (Zecarlos Machado), Elói (Cacá Amaral), Paulo (Carlos Meceni) e Osvaldo (Genésio de Barros), ex-membros da guerrilha urbana dos anos 70, buscam – a partir da loucura e do frêmito vingador de Miguel – um acerto de contas com o torturador, Correia (Leonardo Villar) – à exceção de Osvaldo, que decide voltar para casa. Dado como morto, Correia esconde-se no interior de São Paulo, em cidadezinha na qual mantém um aviário para rinha de galos. Assistimos a flashbacks entre presente e passado, à prisão dos amigos e da esposa de Miguel – grávida, torturada até a morte pelo clone do delegado Fleury.
Vejo em “Ação Entre Amigos” muitos pontos pró, alguns contra. A respeito dos últimos, cito o pequeno desdobramento do roteiro – alicerce inicial, mas não total, de uma obra feita para a sala escura. Parece-me pouco crível que em 76 minutos a história, que teria bem mais a render, se fizesse plena aos espectadores. A complexidade e as diferenciações entre os personagens – reforçadas pelo próprio roteiro – depõem contra a facilidade com que os quatro amigos encontram Correia, Miguel executa-o e fica sabendo ali mesmo, instantes antes, que o investigador fôra ajudado por um deles. Dar mais espaço a Leonardo Villar endemonizaria o enredo, alimentaria o duelo entre Correia e Miguel, acrescentando à história as camadas de barbárie que ambos carregam, em lados opostos do que crêem ser a “moral”. “O Invasor” (2002) conserta estas pontas soltas; a tríade Aquino-Brant-Ciasca conduz à perfeição os delírios de Paulo Miklos, Marco Ricca e Alexandre Borges.
Em relação aos aspectos memoráveis, Brant leva a ação com a categoria de sempre – virtuose a se confirmar em “O Invasor”. As performances do elenco também se destacam, em especial a de Zecarlos Machado e Leonardo Villar. O primeiro, pela balbúrdia, pelo horror que guarda sepultado no corpo de cinqüentão; o segundo, pela conhecida economia de gestos e firmeza, confirmando a secura de Correia, monstro deixado quieto, velho, anistiado pelo Poder Público.
Houve um tempo em que o gênero policial se deleitava com maniqueísmos, o vilão perseguia mocinha, o justiceiro defenestrava o bandido, a donzela sentia-se honrada aos olhos de todos. Claro está que em certos casos não paira nenhuma pejoração sobre este circuito ficcional previsível – William S. Hart não seria William S. Hart, Wilson Grey não seria Wilson Grey, Lewgoy não seria mau e leniente. Mas despido do culturalismo dos anos 60, das exploitations dos 70, do neon-realismo dos 80, o cinema de Brant – iniciado com o curta “Aurora” (1987) – é exemplo de que a vida urbana pode ser claustrofóbica e brutal, com caminhos perdidos, perigosos, leves – estes últimos, para quem atinar o lirismo subjacente. Estamos no início do caminho, muito mais há de surgir por aí. A cinematografia aguarda novas incursões do diretor de “Crime Delicado” (2005). Com o tempo, iremos cotejá-las em relação a outras, de sua particularíssima obra.