segunda-feira, outubro 31, 2005

Ação Entre Amigos


Desde os “falantes e cantantes” – representações da era muda – às produções mais recentes, os realizadores brasileiros acostumaram-se a matar hordas de leões por dia. Não porque tenham um espírito absolutamente aventuresco e saiam de espingarda em punho, a conquistar a savana e colonizar os pagãos. Mas sim porque a ausência de estruturas estáveis, centros produtores que absorvam os talentos nacionais e dêem-lhe condições de trabalho, impõe a audácia como a mãe suprema de nosso cinema. Um símbolo, um carimbo que estampa boa parte dos filmes que chegam às telas e que se perpetuam com o tempo.

Em 1991, Carlos Reichenbach e Sara Silveira fundaram a Dezenove Produções Cinematográficas. “Ação entre amigos” (1997), segundo longa-metragem de Beto Brant, foi criado em meio a este geist artístico, concebido por uma equipe que reuniria ainda André Abujamra – encarregado da criação musical – e Marçal Aquino – do argumento e co-roteirista, ao lado de Brant e Renato Ciasca, produtor associado.

A marca d´água da Dezenove está lá, em “Ação entre amigos”. Começando pelos créditos – impressionantes, de Marcello Pallotta e Marcelo Laruccia – e estendendo-se ao término do filme, percebe-se o cuidado na produção de um estado de arte, de um imagístico autoral, que fique bem distante das simplificações comerciais a que o público nativo tristemente se acostumou.

Miguel (Zecarlos Machado), Elói (Cacá Amaral), Paulo (Carlos Meceni) e Osvaldo (Genésio de Barros), ex-membros da guerrilha urbana dos anos 70, buscam – a partir da loucura e do frêmito vingador de Miguel – um acerto de contas com o torturador, Correia (Leonardo Villar) – à exceção de Osvaldo, que decide voltar para casa. Dado como morto, Correia esconde-se no interior de São Paulo, em cidadezinha na qual mantém um aviário para rinha de galos. Assistimos a flashbacks entre presente e passado, à prisão dos amigos e da esposa de Miguel – grávida, torturada até a morte pelo clone do delegado Fleury.

Vejo em “Ação Entre Amigos” muitos pontos pró, alguns contra. A respeito dos últimos, cito o pequeno desdobramento do roteiro – alicerce inicial, mas não total, de uma obra feita para a sala escura. Parece-me pouco crível que em 76 minutos a história, que teria bem mais a render, se fizesse plena aos espectadores. A complexidade e as diferenciações entre os personagens – reforçadas pelo próprio roteiro – depõem contra a facilidade com que os quatro amigos encontram Correia, Miguel executa-o e fica sabendo ali mesmo, instantes antes, que o investigador fôra ajudado por um deles. Dar mais espaço a Leonardo Villar endemonizaria o enredo, alimentaria o duelo entre Correia e Miguel, acrescentando à história as camadas de barbárie que ambos carregam, em lados opostos do que crêem ser a “moral”. “O Invasor” (2002) conserta estas pontas soltas; a tríade Aquino-Brant-Ciasca conduz à perfeição os delírios de Paulo Miklos, Marco Ricca e Alexandre Borges.

Em relação aos aspectos memoráveis, Brant leva a ação com a categoria de sempre – virtuose a se confirmar em “O Invasor”. As performances do elenco também se destacam, em especial a de Zecarlos Machado e Leonardo Villar. O primeiro, pela balbúrdia, pelo horror que guarda sepultado no corpo de cinqüentão; o segundo, pela conhecida economia de gestos e firmeza, confirmando a secura de Correia, monstro deixado quieto, velho, anistiado pelo Poder Público.

Houve um tempo em que o gênero policial se deleitava com maniqueísmos, o vilão perseguia mocinha, o justiceiro defenestrava o bandido, a donzela sentia-se honrada aos olhos de todos. Claro está que em certos casos não paira nenhuma pejoração sobre este circuito ficcional previsível – William S. Hart não seria William S. Hart, Wilson Grey não seria Wilson Grey, Lewgoy não seria mau e leniente. Mas despido do culturalismo dos anos 60, das exploitations dos 70, do neon-realismo dos 80, o cinema de Brant – iniciado com o curta “Aurora” (1987) – é exemplo de que a vida urbana pode ser claustrofóbica e brutal, com caminhos perdidos, perigosos, leves – estes últimos, para quem atinar o lirismo subjacente. Estamos no início do caminho, muito mais há de surgir por aí. A cinematografia aguarda novas incursões do diretor de “Crime Delicado” (2005). Com o tempo, iremos cotejá-las em relação a outras, de sua particularíssima obra.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Real Desejo


“Discutir a relação” não é um passatempo que encante a gregos e troianos. Principalmente porque o debate muitas vezes se torna um exercício de vitimização, em que o inquiridor investe-se de todo o poder do mundo, prega o inquirido numa cruz e concede a ele tão somente a alternativa de confirmar os pecados o mais rápido possível, para que saia logo dali. Pessoas auto-centradas impossibilitam o diálogo e acusam, acusam sempre.

Este pequeno prefácio se aplica ao casal de personagens de “Real Desejo” (1990), uma espúria mas interessante tentativa de se fazer um filme “cabeça”, em um tempo onde a ignorância dos anos Sarney-Collor imperavam.

O grande problema do filme é sua incapacidade de encontrar um termo, talvez por conta da dificuldade de produção, no abismo da Embrafilme e muito longe da chamada "retomada". Parece uma daquelas redações de garotos de colégio, com problemas em casa: não que o roteiro não seja inteligente e o realizador não seja talentoso, mas saiu tudo tão ruim e tão forçado, que no final das contas a impressão possível é a de total nulidade.

Gilda de Oliveira (Ana Maria Magalhães), famosa atriz de cinema, vive um relacionamento em crise com o ator Paulo Cavalcante (Paulo César Peréio). Acompanhamos Gilda por um dia e início de outro, concretizando a conhecidíssima “fuga de si mesma para ver se a personagem se encontra”.

Como isto ocorre? Bem, a narrativa é costurada através de certas descontinuidades temporais, um quebra-cabeças que vai se encaixando. Gilda vê Paulo na estação da Luz, corre atrás dele, mas Paulo entra em um vagão e some. Será esta a metáfora essencial? Gilda procura-o; e ele se dissipa no éter, no nada, alheio a seu desejo.

A seguir, vemos a cantora Rosa Maria dividindo o assento de trem com a atriz. O corte temporal é explicado a posteriori, pois, na realidade, Gilda está naquele instante voltando de uma escapadinha num lugar ermo, fugindo depois de ter combinado programa com um bandido, ladrão de carros. Pois é, a “fase prostituta” – geralmente associada com a libertação de desejo sexual reprimido de personagens femininas – também está presente no filme.

Gilda encontra amigos, fãs, motoristas de táxi pegajosos – um deles promete-lhe sexo fácil e a garantia de não pagar a corrida. Disfarça, não aceita, mas bem que simpatiza com a côrte, até o momento que ele vai com sede demais ao pote. Chegando no aeroporto de Congonhas – destino do trajeto –, é pega de surpresa ao ver Paulo gravando uma cena com a amante, aos beijos. Como bons civilizados, não estapeiam-se, conversam sobre a vida e outros assuntos bastante vagos.

Em certa hora descobrimos que houve um tempo em que a idéia de ter um filho interrompeu a evolução do caso entre os dois atores. Paulo queria-o loucamente, Gilda preferia manter o corpo bonito. Por singela coincidência, Gilda finalmente decide tê-lo. Donde conclui-se: o instinto maternal surgiu apenas na iminência do abandono; mais uma mãe fálica a caminho, desejando o bebê apenas como instrumento de terapia pessoal.

Não sabemos a quantas andou a união dos dois. “Real desejo” termina deixando em aberto esta hipótese, crucial para dar sentido ao filme. Novamente salvam-se detalhes: a direção de Augusto Sevá procura ser correta, mas a forçação de barra do roteiro e da atuação do elenco joga tudo pelo ralo.

Só Peréio levanta um pouco a moral, mesmo não estando no auge do brilhantismo – leia-se “Eu te amo” (1981), de Arnaldo Jabor. Mas um Peréio sozinho (e displicente, preguiçoso), não faz o verão de uma obra, que no fundo é puro non-sense. Para o país atônito e decadente do início dos anos 90, no entanto, andava até de bom tamanho.

quarta-feira, outubro 26, 2005

O Vampiro de Copacabana


Cinema é relatividade. O que pode parecer belo para um – com sua carga de influências e gostos pessoais – para outro talvez possa soar pueril e enfadonho. Uma mesma pessoa pode amar um filme em uma época de sua vida e anos depois desgostá-lo com fervor.

“O Vampiro de Copacabana” (1976) costuma habitar muitas listas de “filmes brasileiros preferidos”, de gente que realmente entende do assunto. Na minha revisão é apenas um filme mal-costurado, sufocado por influências do cinema italiano dos anos 40 e 50, como são todos os longa-metragens dos cinco que o enigmático Xavier de Oliveira dirigiu. Um destes realizadores cariocas que enxergava a cidade como epicentro da sua concepção de mundo, Xavier de Oliveira aproxima-se de David Neves – uma espécie de David Neves que, num rompante catatônico, desistisse de crer e ser.

O “Vampiro” é exatamente sobre a falta de crenças – ou sobre a queda das poucas restantes. Carlos (André Valli) é homem fraco, esquálido, anti-galã de trinta e poucos anos, em crise. Não é uma entidade sobrenatural, aumentando a já pitoresca densidade demográfica do bairro-título. O Vampiro é apenas humano, chora. Tem amigos, mantém relações sexuais freqüentemente, de preferência extra-conjugais – uma delas tórrida, com Carmen (Rossana Ghessa).

A história tenta, sem grande sucesso, servir de panorama da classe média brasileira dos anos 70. Não a que freqüentava os grupos de teatro e as inovações artísticas de um pólo cultural efervescente. Mas a que já havia casado, tido filhos e perguntado-se: bem, e daqui, para onde vamos?

Esta inquietação melancólica não significa ódio ou qualquer delírio de protesto. É apenas vagar. O questionamento típico, sofisticado, que atinge grande parte das pessoas na faixa etária do protagonista. Algo aconteceu de tão rápido que mudou tudo, sem deixar qualquer expectativa de melhora. “Você era um cara cheio de perguntas na cabeça, questionava. Agora é um idiota.”

O drama dirigido e roteirizado por Xavier (também realizador de “Marcelo Zona Zul, com os púberes Françoise Fourton e Stepan Nercessian) limita-se ao retratar um vazio individual de Carlos, casado com Sueli (Ângela Valério). Há grande quantidade de monólogos em off que levam o espectador a entender o profissional medíocre, que deve a agiota, a meio mundo, e em breve será sumariamente despejado do apartamento onde mora com a família.

“Família, isso é o diabo. Minha sogra, velha metida a virgem... Meu Deus, aonde é que eu fui me meter?”

A idéia do vampiro de Copacabana não é original de Xavier de Oliveira. Pode ser encontrada em Torquato Neto, anos antes, no curta-metragem em que Torquato aparece vestido exatamente como André Valli, em plena praia, na mesma Copacabana. André então, é um Torquato Neto retirado das tumbas? Ou é o que Torquato seria anos depois, se não tivesse se suicidado?

O filme não seduz completamente, deixando um certo tom de estranhamento. David Neves morgue. Rubem Braga com mandrix ou pervitin. Neo-realismo tardio, lisérgico. A trama, por sua vez, elabora um lirismo que não entristece, não toca, não enleva o espectador.

O “vampiro às avessas, vampiro chupado”, de quem todos dragavam o sangue – palavras do protagonista –, volta para casa após uma tentativa frustrada de suicídio e fala, desta vez não em off, mas para o vizinho assustado com a aparição que achava ter desencarnado: “É, me suicidei mas não morri”. A concepção do diálogo é boa, há um sub-texto relevante: tentei, estou aqui, redivivo, depois do caos. A esposa, que havia iniciado uns flertes na então desértica Barra da Tijuca, deixa um fanfarrão (Emiliano Queiroz) a ver navios, pega carona com casal de velhos imbecilizados, e em cena belíssima, novamente encontra sua vida essencial, sendo esposa e, provavelmente, feliz.

Além deste final tocante salvam-se a boa vontade de filmar nas ruas – paradoxal o cinema brasileiro urbano não filmar mais externas, sendo o Rio de Janeiro a capital mais amigável do mundo para equipes de cinema –, o colorido cuidadoso da fotografia e a interpretação delicada de André Valli. Portanto, um filme para ser visto entre detalhes, não pelo seu todo imperfeito.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Rainha Diaba


“Rainha Diaba”, de 1974, é um monumento. Críticas apressadas de jornalistas idem tacharam o filme – na época do seu surpreendente relançamento em dvd – como uma ode tresloucada ao “homossexualismo marginal”. As mesmas pessoas que produzem páginas e páginas sobre qualquer blockbuster norte-americano sofrem de calafrios ao escrever umas poucas linhas sobre as obras-primas rodadas na esquina de suas casas. Qualquer filme brasileiro esquecido (que não renda jabaculê) vira superficial, simplista e facilmente rotulável. Pura ignorância.

Basta dizer que antes de Almodóvar e no alvorecer do gay power norte-americano, houve Antônio Carlos Fontoura. Levemente inspirado no malandro da vida real, Madame Satã, Fontoura aliou-se ao gigantismo de Milton Gonçalves – com certeza aqui, sem nenhum exagero, em uma das dez maiores interpretações da história do cinema mundial – e deu à luz um filme sublime, inovador, que ainda hoje produz indisfarçável mal estar em quem, sentado no conforto de sua casa, o assista.

A imagem que se tem de Satã é a do “pederasta” – assim fichado pela polícia varguista de seu tempo –, underground total, com plumas, brilhos e paetês, gingado de capoeirista e apetite sexual intenso. Já a ficcional Diaba (Milton Gonçalves) guarda destas qualidades apenas algumas, pois não é o solitário réu da Lapa, cavaleiro andante de punguistas e contraventores. É dono de mais de uma dezena de bocas, controla o narcotráfico, estabelece relações maternais com o séquito de outras moçoilas, que protegem-na como os aprendizes à mestra.

Diaba é criminosa nata: aplica mão de ferro para garantir a qualidade dos serviços à população mas, por outro lado, preocupa-se em cozinhar quitutes para a marginália gay que o cerca, apavorado que estava com os traidores que tentavam acabar com sua autoridade empresarial.

Os traidores, como o ovo da serpente, estavam ali mesmo, guardados no ninho, e Diaba mal sabia. Liderados pelo amigo Zeca Catitu (Nelson Xavier), Manco (Wilson Grey), Anão (Lutero Luiz), Violeta (Yara Cortes) – sócia do prostíbulo mantido pela Rainha – Coisa Ruim (Procópio Mariano), e outros empreendedores, celebram um levante para desmobilizar o ofício e tomar o controle dos negócios.

Em outra ponta da narrativa, fluindo em paralelo, o casal Bereco (Stepan Nercessian) e Isa Gonzalez (Odete Lara): cafetão e prostituta. Ele, rapaz novo, bonito, cooptado por Catitu, junta forças ao golpe, servindo tolamente de bucha de canhão. Ela, seduzida, seviciada, suja, cantora do “Leite da Mulher Amada Night Club”, local em que seria posteriormente seqüestrada e torturada pela cáfila de amigas da Diaba.

Neste momento as narrativas se cruzam e, quadros depois, no paroxismo da descoberta de Bereco, Diaba encontra seu fim. O garoto degola-a, é em seguida morto por Catitu, Catitu e amigos são em seguida mortos por Violeta, e Violeta – única a restar do levante – é morta, nos esgares finais, por Diaba, ensangüentada, que ressurge na sala e junta mais dois corpos – o seu e o da vítima – à dúzia que se amontoava na sala. Percebam que a exuberância do filme reside em detalhes e, como transgressor do audiovisual, descrevê-lo faz diminuir sua força. Apenas quem assistiu às cenas compreenderá o porquê de ser este um dos marcos da história do cinema.

Mostrem a Quentin Tarantino a chacina referida acima; o momento em que personagens, um por um, se apresentam ao espectador; a violência contra Isa no salão de cabeleireiro; as meninas em momentos de delírio ultra-psicopático; a revolta da prostituta, molestada, torturada; os créditos em papel crepom, cartolina e hidrocor. São exemplos do som e da fúria, da inventividade nacional, do talento que contorna a falta de dinheiro e cria, cria muito, bem mais do que a vã pasteurização de algumas produções atuais deixa supor.

O argumento de Plínio Marcos – dramaturgo, ator, dionisíaco, um vulcão, falecido em 1999 – e do diretor, Antônio Carlos Fontoura, inventa focos múltiplos de ação no roteiro escrito pelo segundo, o que tende a aguçar a vontade do elenco. Digo isso pois não apenas Milton Gonçalves é verdadeiramente indescritível, mas os bandidos, Odete Lara e a trupe de amigas (formada, dentre outros, por Perfeito Fortuna, que deu um tempo nas dunas de Ipanema para incursão ao lado menos aristocrático da cidade) assustam, brutalizam e tornam o filme um momento de lucidez, certeiro ao atingir a alma kitsch e doentia dos personagens.

Vale a pena citar a fotografia de José Medeiros – concretizando a saturação pedida pelo universo retratado –; o figurino de Ângelo de Aquino; a música, atordoante, a cargo de Guilherme Magalhães Vaz; a edição de Rafael Justo Valverde; a co-produção da Lanterna Mágica, R.F. Farias, Filmes de Lírio e Ventania Filmes – esta última do saudoso Paulo Porto, neto do cacique Ventania, que dera o nome à firma.

Antônio Carlos Fontoura é um realizador bissexto. Traz no currículo o seminal “Copacabana Me Engana “ (1968) – também com Odete Lara, estréia de Carlo Mossy no cinema – e “Espelho de Carne”(1984) – clássico da “Sala Especial”, com Dênis Carvalho e Daniel Filho em momentos de suprema intimidade. Dirigiu também programas de tv, dentre eles “Plantão de Polícia” e “Ciranda, Cirandinha”.

O trabalho de Fontoura é inspirador – porque nunca previsível –, apesar da cinematografia brasileira se ressentir da quantidade de histórias que poderiam ter vindo a público e não vingaram. Incansável, mas sabendo operar além dos grandes refletores e da badalação da mídia, Fontoura é destes mestres que a arte nacional guarda próximo ao peito, e gerações recentes procuram ávidas, em busca de informações. Ao encontrá-las, saberão um pouco mais de si mesmas e, quem sabe, das delícias da criação humana.

sexta-feira, outubro 21, 2005

O Último Êxtase


“O Último Êxtase” parece-me um filme de transição, em que não se encontram muitos referenciais para a obra de Walter Hugo Khouri, estando especialmente rarefeitos quando contrapostos à amplitude autoral de “O Corpo Ardente” ou “Eros, o Deus do Amor”. Filmado em 1973, é imediatamente posterior a “As Deusas” (1972) e antecede “O Anjo da Noite” (1974), com o qual compartilha uma abordagem vagamente vouyerística – refletida em alguns travellings que passam a impressão, ao espectador, de os personagens estarem sendo observados à distância por um terceiro não-convidado.

Marcelo – protagonista que corresponde a um duplo ficcional do diretor, alter-ego retrabalhado artisticamente ao longo de inúmeras incursões às telas – é vivido, em “O Último Êxtase”, por Wilfred Khouri, então adolescente de 18 anos de idade. Na resenha de “Eros, o Deus do Amor” foram traçadas algumas linhas gerais sobre a genealogia de Marcelo, e a elas remeto os leitores. Creio que sejam um bom ponto de partida para acompanharmos outras nuances de “O Último Êxtase” e até mesmo colocá-las em cheque, aumentando o debate em torno de pontos cruciais do universo khouriano.

A persona materna de Marcelo possui qualidades dramatúrgicas e oníricas riquíssimas – basta citarmos as mães de “O Corpo Ardente” ou “Eros”, acompanhadas das imagens de animais reprimidos ou que se esquivam de domínio. Se formos usar uma escala comparativa, sabemos bem pouco do pai e menos ainda dos irmãos.

Mas em “O Último Êxtase” encontro um trecho ao qual deve-se prestar atenção, porque talvez nele existam possibilidades de tratamento ficcional que acabaram nem sendo levadas a termo na cinebiografia de Khouri.

“Eu acampei aqui há mais de dez anos, quando era pequeno. Com meus pais e meus irmãos, nunca mais esqueci aqueles tempos, sempre quis voltar. A gente dormia junto. Eu era o menor e dormia entre o meu pai e a minha mãe.”

O aqui, referido acima, é o cenário usado parcialmente em “As Deusas”: a floresta, a vegetação conífera, a represa em que Ana e paciente banham-se e devoram-se, e que por ora abrigava o grupo de quatro adolescentes (Wilfred; Ewerton de Castro, com longas madeixas loiras; Dorothéé Marie Bouvyer, antes de tornar-se a professora secundarista de “Eros”; Ângela Valério, futura esposa do “Vampiro de Copacabana” (1976), belo filme de Xavier de Oliveira).

Marcelo foge de casa, da família, e retorna, com os amigos, à utopia da infância. Traz consigo a namorada (Valério), como se fosse um cajado, um utensílio algo indissociável junto ao qual permanece na “barraca grande e aconchegante” em que certa vez adormecera com os pais. A menina é sua, fazem amor pela primeira vez, tenta imprimir na acompanhante uma carga emocional que possivelmente não seja sentida por ela. Afinal, qual a graça de ficar horas e horas observando a chuva cair quando se tem os hormônios em fúria, loucos para saírem da rotina habitual? O outro casal reclama, “esse menino é cheio de manias, ele me irrita”, diria a personagem de Bouvyer, sem atinar a roda de solidão e sofrimento que acontecia no entorno. Os três desconheciam o subtexto, nenhum estava sintonizado no mesmo delírio do garoto que repetia:

“Era uma barraca grande e quente, aconchegante, às vezes até parecia brincadeira de criança. A gente nadava e pescava. Um dia choveu a tarde toda e ficamos dentro da barraca olhando a chuva. Sempre me lembro daquela chuva. O ruído dos pingos na lona. Todo mundo contente.”

Não à toa, a chegada de um casal de meia-idade (Lilian Lemmertz e Luigi Picchi) implode o encadeamento neurótico que Marcelo criava com os amigos. Já havia experimentado um último êxtase e não mais o repetiu, pois a namorada dança com os outros, é consolada pela outra mulher (Lemmertz), uma aparição, linda, a ponto de despertar e concretizar uma escapulida com Jorge (Ewerton de Castro). O marido (Luigi Picchi) corresponde ao flerte de Bouvyer, delinenando um homem viril, ex-prisioneiro de guerra, que joga Marcelo vergonhosamente no chão quando o menino tenta ameaçá-lo com o revólver. Acabrunhado, ofendido e melancólico, é o “cara esquisito” que retorna para casa sozinho, sobre a lona de um caminhão, a mochila ao lado, São Paulo novamente divisada, ao longe.

Este período de hibernação deve ter surtido algum efeito devastador para Marcelo. Terapeutas em geral costumam repetir que ninguém constrói castelos nos ares e habita-os, sem sofrer o peso da retaliação, que chega mais dia, menos dia. Marcelo criou castelos – quando dragou três amigos para um sofrimento que era seu –, morou dentro deles – quando impediu que os três se dissociassem de um drama que era exclusivamente seu –, mas não conhecemos os limites precisos da retaliação. Conforme alertamos em parágrafos anteriores, “O Último Êxtase” possui elementos que não chegaram a ser trabalhados em outros filmes. Ficamos sem saber, portanto, a continuidade da trama. Um dos aspectos não trabalhados é, por exemplo, o dos irmãos do protagonista. Como interagia com eles; a retaliação viria por este caminho?

Quem sabe, ainda, se este Marcelo foi apenas um rascunho e não necessariamente o mesmo personagem de “Eros” ou “Eu”? Sob qualquer circunstância. porém, em “O Último Êxtase” ficamos frente a um alter-ego (Marcelo) em transição, cujo criador (Walter Hugo Khouri) ainda teria tempo para descobrir-se e re-escrever suas fixações, até o falecimento em 2003. E para dentro daquele castelo intangível, e de muitos outros, foram seduzidos os observadores, consumindo a arte como alimento para o espírito, assim como a água, para o corpo.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Ladrões de Cinema


Falar da Embrafilme é iniciar uma conversa polêmica, quase sempre sem grandes resultados. Como nossa proposta aqui é tratar de cinema, vou deixar as questões políticas de lado e me concentrar na história. Criada durante o regime militar, a Embra participou dos melhores anos do cinema brasileiro, com uma produção diversa, rica e bem realizada. Cometeu erros brutais em meio a acertos grandiosos.

Por ser uma empresa nem particular nem pública, criada em gabinete e – como tudo no Brasil – sujeita a discordâncias e desconfianças mil, a Embrafilme agonizou e morreu. O que resta dela são os filmes sob sua sombra. Estamos falando disso para chegar em “Ladrões de Cinema”, produção de 1977 tipicamente saída do ideário de vertigem daqueles anos.

A Lente Filmes, produtora que se associou à Embra para a realização do filme, era um daqueles projetos cariocas de Zona Sul, fadados a darem errado. Deixou “Ladrões de Cinema” para a posteridade e cerrou suas portas. No entanto a originalidade do filme salvou a reputação de todos. Misto de cinema-realidade, documentário fajuto e experimento metalingüístico, “Ladrões de Cinema” é um interessante e obscuro achado.

A história gira em torno de um grupo de favelados que assalta uma equipe de filmagem durante o carnaval e, com o equipamento roubado, resolve fazer um filme na favela. Nada é falso e vemos de fato o carnaval, o morro do Pavão-Pavãozinho, as biroscas e vielas da comunidade.

Caracterizado de favelados-chics em meio aos favelados reais, um dos elencos mais espetaculares que o cinema brasileiro já conseguiu reunir (e desperdiçar): Wilson Grey, Milton Gonçalves, Grande Otelo, Lutero Luiz e Antônio Pitanga. Quando deixados soltos, produzem diálogos que explicam o porquê do fascínio brasileiro (carioca principalmente) aos malandros e vagabundos. Wilson Grey não era simplesmente um ator, foi a besta-santa, a hosana da linguagem do povo.

Em uma primeira olhada, “Ladrões de Cinema” é extremamente aborrecido, difícil de assistir, principalmente durante a longa encenação do filme dentro do filme (o filme que os favelados dirigem é mostrado em detalhes). A direção de Fernando Coni Campos também é pesada, com o diretor em óbvias tentativas de mostrar virtuosismo. Sabe-se que durante as filmagens, em meados de 76, seus desentendimentos com os produtores chegou a níveis histéricos e quase o filme não foi terminado. Mas o que importa não é a intervenção destes homens esclarecidos da classe-média, e sim, a diversão produzida pela paupérrima espontaneidade.

Espontaneidade que tem na metalingüística seu ponto forte. Defrontados com a perspectiva de utilização do equipamento adquirido, os diretores e produtores favelados parecem ouvir a cartilha ufanista de certos setores da Embrafilme e filmam uma releitura do Movimento Inconfidente. Assim o tempo todo suas filmagens dialogam com o desenrolar da trama, pois Lutero Luiz, que faz o papel do traidor Joaquim Silvério dos Reis, é quem denuncia o roubo para a polícia e acaba com a diversão.

Temos vontade de repetir o argumento proposto e entregar os equipamentos na mão do quinteto de “favelados”. São eles que não deixam a história naufragar nem se perder nas piadas típicas do humor então em voga, do Pasquim e da noção “cariocacentrista” míope de que o Rio explicava o Brasil, e não o contrário.

Dentro do contexto de meados dos anos 70, “Ladrões de Cinema” é um filme difícil de rotular ou definir. Melhor talvez seja encará-lo como resultado de conflito: produção séria, financiada com dinheiro público, mas que invariavelmente assume um tom trash involuntário no acabamento, superando em certos momentos obras-primas deste gênero, como “Fofão e a Nave Sem Rumo” ou mesmo “Bacalhau”. Assistí-lo em 2005 é bom sonífero, mas por trás de sua narrativa confusa e pretensiosa urge a voz das ruas que, como sempre, nos brinda com um pouco da sua febre e barbárie.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Lúcia McCartney



Adaptar um texto escrito e torná-lo uma realidade em termos cinematográficos é tarefa das mais ingratas. Lidamos com o problema da recepção de um fenômeno inicial (o literário) por outro, e eles nem sempre falam a mesma língua ou possuem parentesco direto. Nada mais frustrante do que vermos um diretor medíocre trabalhar um texto em movimento. O filme acaba se tornando uma espécie de objeto não-identificado, sem pai nem mãe. Nem é cinema, nem é literatura; é um terceiro gênero infeliz.


David Neves dirige “Lúcia McCartney, uma garota de programa” (1971), roteirizado por Rubem Fonseca, autor dos dois contos que servem de base à trama. O filme é paradigmático, porque nele encontramos a mistura perfeita entre a lírica cinematográfica e o universo literário.

Algumas soluções encontradas pelo diretor explicam bem este imbróglio. Reparem na seta branca que aparece por alguns segundos na tela, logo após um monólogo da protagonista. Ela indica justamente a ponte entre o final de um conto e o início de outro. Outro aspecto interessante se refere às mudanças de cores bruscas, que ocorrem como se não houvesse motivo aparente – passam ao preto-e-branco ou ficam muito saturadas, e acompanhadas ou não de legendas. Na realidade, elas se referem às múltiplas falas possíveis dos personagens, recurso utilizado freqüentemente por Fonseca no conto original.

Por outro lado, “Lúcia...”, o filme, pode ter um bom ponto de partida na inscrição que surge na tela, quase ao encerramento: “Os homens, os mais jovens em menor medida, e os adultos plenamente, vão ao bordel em busca de ficção”. Parece que no final das contas, há um descompasso entre os desejos lúbricos dos freqüentadores de bordel e a sua concretização, que pode às vezes beirar a fragilidade ou a simples necessidade do outro. Se possível, um outro angelical, dependente, mas vibrátil como Lúcia (Adriana Prieto)

Lúcia McCartney, a mais conhecida fã de Beatles da história da literatura brasileira, é uma garota de programa, órfã, divide o apartamento com uma amiga – que tomou estrategicamente por irmã. Vai à praia, à boate, conversa com os “amigos”. Apaixona-se por um cliente misterioso, José Roberto – “paulista, não gosto de paulistas” –, atribuindo-lhe um afeto que muito provavelmente ele não tem ou apenas dissimula para cumprir o modus operandi da vida adúltera, fora de casa. José Roberto não retribui, não oferece paixão, não é o Sir Galahad do Santo Cálice. Acabou. Vemos a seta.

Em outro ponto da cidade, no topo de um prédio voltado para a mítica área da Cinelândia, no Rio de Janeiro, um advogado (Luís Vilaça) ouve a missão conferida pelo cliente (Nelson Dantas): encontrar Elizabete, mocinha que trabalha na casa de tolerância de Madame Gisele (Odete Lara), antes que se corrompa no antro. Sim, é o velho caso do coroa mais velho, encantado pela inocência da jovem – lembrem-se: “buscam ficção”.

Apesar de não ser revelado em momento algum pelo filme, o advogado é Mandrake, que narra em primeira pessoa “O Caso de F.A”, conto de Fonseca, cuja história é transposta linearmente a partir desta segunda etapa. Mandrake, bacharel em direito, de aspecto bonachão, meio policialesco, manda tiradas do bas fond carioca: “advogado não trabalha com a cabeça, trabalha com os pés”, diz depois de bater um papo com o informante (Wilson Grey) e correr para o escritório.

A partir das boas notícias, Mandrake contacta um amigo (Roberto Bonfim), de excelsa figura, capoeirista que ajuda-o a solucionar o caso, bem longe fora do Judiciário, obviamente. Combinam de invadirem o prostíbulo, brigam com os leões de chácara do lugar, capturam Elizabete – ou Míriam, ou Laura, ou Lúcia – e depositam-na em um apartamento. Toda a encenação do rapto se dá em câmera lenta, fragmentada, quase semelhante as HQs.

Elizabete – ou Míriam, ou Laura – é Lúcia, que vinha usando nomes falsos para esconder-se – novamente a idéia de ficção... A história inicial portanto, permaneceu fincada em toda a trama. Os demais personagens, o entorno, serviram de veículo à premissa inicial.

Após “Lúcia...”, David Neves aprofundou-se na contemplação antropológica do Rio de Janeiro – campo de estudo que viria a ser emblemático para compreeensão de sua obra. Morreu pobre, deprimido, portador do vírus da aids e abandonado por grande parte dos que considerava seus "amigos-irmãos". Quanto a Fonseca, apenas começava em 1970. Os melhores livros ainda não haviam sido escritos e, breve, um conto antológico, “Feliz Ano Novo”, seria caçado em praça pública, sob a chancela de “anti-arte”.

Adriana Prieto faleceria na véspera do Natal de 1974, aos 24 anos de idade, vítima de um acidente automobilístico. A notícia da morte prematura caiu feito bomba, privou-a da maturidade artística ao lado de David, que já a havia eleito musa em dois filmes consecutivos – neste e no anterior, “Memórias de Helena”, estréia na direção. Foi uma das poucas atrizes a dedicar-se majoritariamente ao cinema; status que o cinema brasileiro precisa reaprender a criar.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Rio Babilônia


“Rio Babilônia” formou gerações e gerações de adolescentes em fúria, desde sua estréia em 1982. As reprises nas madrugadas de algumas redes de televisão eram comentadíssimas, e, nos tempos pré-internet, o tráfico de informações a seu respeito era intenso. As atrizes, as cenas de quase pornô, o sol, a cocaína, o suor e a cerveja estão impregnados no filme que, apesar de cortes sorrateiros – para adocicar o sexo explícito –, era assistido com louvor nas boas casas de família.

Chama a atenção, antes de mais nada, a escolha de Joel Barcellos para galã, atendendo pelo simpático nome de “Marciano”, profissional de uma agência de turismo, encarregado de assessorar os visitantes que chegam ao Rio. Um deles é o Dr. Liberato (Jardel Filho), recém-chegado ao Brasil após muitos anos no exterior. Christiane Torloni é Vera Moreira, a “intrépida repórter que desmascara poderosos” (sempre havia uma!) e investiga a denúncia de contrabando de ouro praticado pelas fazendas do Dr.Liberato. Este é o triângulo principal de Rio Babilônia, pelo menos no script, porque a ele se somarão dezenas de transeuntes, em poses espetaculares.

A primeira leva deles é vista numa festa celebrada pela cafetina do high-society, Solange (Norma Bengell). Ali estão políticos (Sergio Mamberti), senhores importantes e capangas de Liberato (um deles, Wilson Grey), antigo conhecido da anfitriã. Contrata-os para, claro, dar fim a Vera, que “excedeu-se” no trabalho detetivesco, contrário aos empreendimentos do escroque.

Jardel Filho, em seu último trabalho, nada lembra o tuberculoso de “Floradas na Serra” ou o poeta verborrágico de “Terra em Transe”. Em “Rio Babilônia” aparece de cuecas, calças pelos tornozelos, além de, próximo ao término do filme, protagonizar inacreditável cena de amor com um travesti – este, em nu frontal.

A presença do nu em filmes brasileiros não é de se estranhar. Existem muitas formas de tratá-lo e fazê-lo repleto de importância, em expressões artísticas, que, evidentemente, não se restringem ao cinema. O problema é que, ao mesmo tempo, o nu muitas vezes é a garantia de circo na vida do espectador. E latino-americanos são acostumados com tabus sobre a nudez masculina.

Pois em “Rio Babilônia” isto é esquecido. O exemplo mais célebre está no momento em que contracenam Denise Dummont, Pedrinho Aguinaga e Barcellos. Os zooms não deixam dúvidam de que tudo foi levado, digamos, bastante a sério. Confesso que temi pela integridade de Rocky – cãozinho da mansão de Dummont e Aguinaga –, cogitando de o diretor, Neville d’Almeida, levar a ação até as últimas conseqüências.

Neville – pitorescamente grifado “Nevile” ou “Neville”, “de” ou “D’Almeida” nos créditos desatentos que abrem o filme que dirigiu, escreveu e produziu – é antigo conhecido de produções com forte apelo erótico. “A Dama do Lotação’ e “Os Sete Gatinhos”, por exemplo, tornaram-se clássicos, além de ajudarem a popularizar uma pequena parcela da obra de Nelson Rodrigues. “Rio-Babilônia” tem roteiro co-assinado por Ezequiel Neves – co-fundador da revista “Rolling Stone” brasileira – e João Carlos Rodrigues.

Dona Zica, viúva de Cartola, faz uma pequena participação como a mãe do traficante Sabará, a quem recorre Barcellos para comprar mil dólares em cocaína – vulgo “brilho” ou “realce” – pedidos pela atriz internacional que se engraçara com o sambista (Antônio Pitanga), no mar de Copacabana. Vemos também o ex-dançarino dos “Dzi Croquetes”, Paulette; o vocalista da Blitz, Evandro Mesquita; o lendário Maurício do Vale; a promoter Liége Monteiro.

O que me deixou um pouco surpresa foi a escolha de um final retumbante, exacerbado, em que a música de fundo destoa da narrativa. Há uma pretensão tola de atribuir a “Rio Babilônia” a qualidade de magnus opus, de concerto no Convent Garden, quando na verdade ele é feito de incursões a favelas, gringos otários, prostitutas, passistas de escola de samba que transam na praia. Destoa e contradiz o filme.

Argumentos cínicos não colam: o filme é esfuziante do jeito que é, bem-humorado e elétrico, conforme indica-se no título. Aliás, sempre bom relembrar o campy “Babilônia Rock”: “Você vai cair de boca, enlouquecer, você tá marcando touca, vem me conhecer... Rio Babilônia, uou uou uou”.

A badalação nas festas de “Rio Babilônia” é intensa; trocas de olhares breves, consumações longas. Favelas, lixo, city-tour e algo próximo de uma crítica social. “Ninguém segura a juventude do Brasil” era slogan cantado por Don e Ravel, durante o regime militar. Passados alguns anos, ela estava turbinada, em sonhos megalomaníacos, consumindo doses e doses de uísque e pó, no satirismo próprio de uma cidade e de um cinema que não se levavam a sério e, que por isso mesmo, seduziam e encantavam tanto.

quarta-feira, outubro 12, 2005

À Meia-Noite Levarei Sua Alma


Em meados de 1963, uma história curiosa corria pelo meio cinematográfico de São Paulo: um maluco, acompanhado de um séquito de seguidores que o chamavam de mestre, estava realizando um filme sem qualquer verba em um galpão na capital paulista. O maluco era dono de um obscuro “curso de cinema” e tinha diversas passagens pela imprensa sensacionalista como salafrário.

O maluco em questão era José Mojica Marins – e era quase verdade que naquele momento, realizava um filme sem verba alguma, patrocinado apenas pela idolatria de seus “alunos”. Antes daquele filme, Mojica vinha de duas experiências fracassadas como diretor e chegara a passar fome por conta do seu sonho de filmar. Para a concretização daquela nova aventura, contava com o dinheiro arrecadado entre a turma e... a venda dos móveis e utensílios domésticos da sua casa, além de grande parte das próprias roupas! Mojica não tinha mais casa, sua mulher esperava um filho e ele achou por bem “morar” no estúdio, dentro do caixão que servia de cenário.

Não estamos obviamente falando de um homem comum, estamos falando de um gênio. Sem nunca ter entrado sequer em um curso básico de cinema, aquele paulistano se metia a dirigir filmes e dar aulas sobre o assunto. Seu pai tinha um cinema, verdade, mas donos de cinema nunca geraram filhos diretores. Quando aos vinte e oito anos de idade sua existência parecia condenada ao desespero – por conta dos retumbantes fracassos naquela que era a única coisa que acreditava fazer –, o jovem Mojica teve um sonho. E o sonho salvou sua vida profissional para sempre.

No sonho Mojica viu Zé. Encrespou-se para o gabinete do “curso” e solicitou que uma das alunas, que fazia as vezes de secretária, transcrevesse suas idéias para o papel. Do medo e do incômodo que sentiu por Zé, criou um argumento. Convocou os alunos e decidiu: “Vamos filmar”. Foi dessa forma que nasceu Zé do Caixão, e em 1964 chegou aos cinemas de São Paulo um filme com o gaiato título de “À meia-noite levarei sua alma”.

Zé do Caixão, não era nem é uma assombração, como muitos ainda pensam. Zé é apenas um cético, um zombeteiro, que acredita na força humana contra a punição divina. É um artífice de Nieztche, por um homem que nunca leu um livro. Talvez Mojica tenha temido o pesadelo com Zé do Caixão, porque Zé do Caixão afinal era ele próprio – e falava de seus medos, angústias e desejos mais contidos.

Em “À meia-noite...” Zé aterroriza uma cidade apenas com sua força. Parodiando o escritor Lúcio Cardoso, Zé do Caixão “não é um homem, é uma atmosfera”. Por onde passa espalha desgraça, covardia, pusilanimidade. Contrariando a ordem da Igreja, come carne de carneiro na sexta-feira santa. Toma dinheiro dos matutos da aldeia e quando um corajoso nega pagamento, decepa-lhe os dedos.

Além de todas estas atividades, Zé também é agente funerário. E, nas horas vagas, sonha em ter um filho, “que perpetue seu sangue”. A esposa não engravida – na vida real a esposa de Mojica também tinha dificuldades de engravidar – e Zé do Caixão dá seu vaticínio: “A mulher que não pode ter filhos não precisa de cuidados” – em seguida, ele a mata.

Zé cobiça a bela Teresinha (Magda Mei, a secretária do curso de Mojica), mas tem o amigo Antônio (Nivaldo de Lima) como rival. Para um homem que tudo pode e que tudo quer, aquilo não é problema. Zé mata Antônio, em cena brilhante. Quando Zé prega seu niilismo e ceticismo, Antônio rebate afirmando-se um conformado com orgulho, um temente a Deus. Zé então apanha uma barra de ferro, assassina Antônio e pergunta: “E agora, de que adiantou sua crença Nele?”.

Depois Zé vai atrás de Teresinha, com quem tem relações sexuais forçadas, enquanto a moça esmaga um passarinho nas mãos. Teresinha se suicida e Zé tem que continuar a matar, para sustentar sua liberdade. As vítimas vão se sucedendo e a descrença e o deboche de Zé aumentam. Tudo culmina em uma volta das almas penadas das vítimas e só nesse ponto é que o filme adquire um tom sobrenatural, de terror inexplicável. Antes Zé era só lógica, era a razão contra a superstição e a crença.

Mojica terminaria o caso melhor se Zé vencesse, triunfasse contra a cidade e provasse que nada existe, que, como ele diz após pisar em um despacho, “estão todos mortos, e mortos não podem fazer mal a ninguém”. Mas a proposta era uma trama além da razão, portanto Zé encontra, no fim da linha, o castigo. E o castigo contraria sua implacável lógica e o joga no difuso, no imponderável, ou como Mojica prefere dizer, nas trevas.

“À meia-noite...” é um filme para poucos. Em 1964, quando foi lançado, Mojica não foi tomado como cineasta, mas como um homem seriamente doente. O sucesso absoluto de público não se converteu sequer em lucro, pois havia vendido seus direitos na estréia por uma ninharia, e só arcou com o ônus das críticas pesadíssimas.

Em resposta, o realizador deu ao povo mais e melhor, em outras pérolas como “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” e “Ritual dos Sádicos”. É certo afirmarmos, portanto, que Mojica nunca fez cinema: o cinema é que morava dentro dele e Mojica apenas precisou colocá-lo, espontaneamente, para fora.

segunda-feira, outubro 10, 2005

Giselle


Se “Cassy Jones” supostamente inaugurou o gênero da pornochanchada no Brasil, pode-se dizer que foi necessária quase uma década até que o estilo alcançasse seu apogeu e criasse a obra máxima. Tal como os russos precisaram de dez séculos de história para ver surgir um Dostoieviski, um Tolstoi, a grande década que a pornochanchada atravessou nos anos 70 culminou, em 1980, com o lançamento em centenas de cinemas no Brasil e no mundo de “Giselle”.

“Giselle” é um filme impressionante, em todos os sentidos. Merece um livro para estudá-lo, por suas múltiplas e ricas leituras. Cinema trash, panfleto libertário, carnaval do absurdo. Não há rótulo possível para a obra e quem consegue rotulá-la é porque não a compreende em sua totalidade. Vou optar pela via mais difícil de entendimento, que é a análise psicanalítica dos personagens. Colocar “Giselle” no divã talvez seja uma alternativa viável para seu tom de Pirandello.

Uma produção da Vidya (mais uma), direção de Victor di Mello, estrelada por ele, nosso homem nos anos 70, Carlo Mossy. A seleção da trilha sonora inacreditável também é de Mossy, com sucessos dos anos 60 interpretados por uma orquestra que lembra a famigerada “101 Strings”. Co-estrelando Maria Lúcia Dahl, Ricardo Faria, Nildo Parente e Alba Valéria; esta última é a personagem título e leitmotiv da trama.

Giselle é filha de Luchinni (Nildo Parente) e tem Haydeé (Dahl) de madrasta. Quando volta da Europa para o sítio do pai, encontra na madrasta não uma mãe, mas uma amante insaciável. Haydeé é apresentada como uma destas mulheres com TPN (Transtorno de Personalidade Narcísica), que encontra na jovem enteada seu refúgio para uma relação voraz, que amorteça sua frustração por estar envelhecendo. Giselle não se nega a ser o espelho de Haydeé; é uma quase adolescente amoral, que por trás de sua extrema felicidade e ingenuidade esconde um comportamento parasitário e perverso.

Notem que não haveria Giselle sem o pai, Luchinni. É ele que a sustenta, que a mantém em seu mundo hedonista. Haydeé, a esposa, também o parasita, e Luchinni é passivo a tudo porque também esconde um segredo. Enquanto Haydeé e Giselle transam no quarto ao lado, Luchinni trata a todos com bondade, tolerância e aspecto cordato. Antes de Haydeé, no entanto, Giselle também estava envolvida sexualmente com o capataz do sítio, Ângelo (Mossy). Com o planejamento das duas, Ângelo é trazido da “senzala” para dentro da casa grande, e os três formam um daqueles trisais típicos de quem vê a vida com bons olhos.

Ângelo esconde, por trás da sua aparência de capataz fiel, uma personalidade bombástica, pronta a explodir. É bissexual, libertário, ama Giselle e Haydeé como se daquilo dependesse sua vida (e dependia). Quando o filho de Haydeé, Serginho (Ricardo Faria), chega do Rio, o teatro se completa. Ângelo domina a tudo e a todos com sua masculinidade insinuante e decreta aos discípulos embevecidos uma ditadura falocêntrica.

Em suma, Ângelo transa com Serginho, Haydeé e Giselle. Os três o adoram e ele responde esta adoração com proteção. Quando marginais tentam bater em Serginho, uma briga tem início e Ângelo quase morre para defender o amigo. No fim das contas os quatro são estuprados pelos marginais, em uma das cenas mais absurdas e grotescas do cinema mundial.

Por outro lado, Giselle é uma daquelas personalidades que tem o poder de transformar com seus atos a vida das outras pessoas. A madrasta Haydeé é quase sua escrava. Serginho tem uma relação simbiótica com ela, com quem compartilha seus desejos. Ângelo, por sua vez, respeita Giselle como uma igual e os dois transitam por todos os universos, cientes de seu domínio sobre os outros.

O que chama muita atenção no filme, mais do que um enredo tão rocambolesco quanto envolvente, é a pretensão libertária que involuntariamente adquire aos poucos, mesmo que por trás de um alerta conservador nas primeiras cenas (respirem fundo): “Assim como na antiga civilização romana, como em Sodoma e Gomorra, todas as vezes que uma sociedade está em decadência, a principal característica, é a falta de valores morais, a promiscuidade sexual, o desamor, as frustrações, e os desencontros. Os dias que hoje estamos vivendo, não diferem muito daqueles que antecederam a destruição daquelas sociedades”.

Este blábláblá meio “O Homem do Sapato Branco” (lembram disso?) é esquecido ao longo da história, demonstrando a obviedade de que o texto moralista foi plantado ali apenas para agradar aos velhinhos censores. Victor di Mello, Mossy e todos que atuaram, na verdade simpatizavam era com a liberdade sexual e, no seu estilo pitoresco, trabalharam em uma ode a ela.

A trilha-sonora repete insistentemente “San Francisco”, o hino hippie da geração flower-power. É necessário que se escreva um “Afinal, quem faz os filmes” brasileiro, parodiando a obra clássica de Peter Bogdanovich, para que entendamos melhor o que se passava pela cabeça dos intrépidos cineastas e suas inspirações duvidosas. À primeira vista, fica a pergunta: “San Francisco” durante longas cenas foi uma maneira “sutil” de evocar outra época recente, mais libertária? E por que quando Mossy e Giselle estão em plenos trabalhos na cachoeira, escutamos ao fundo o clássico dos Beatles, “Let it be”?

Acentuando o aspecto libertário, temos além das cenas de bacanal, outras em que o consumo de maconha é farto. Giselle, Ângelo e Serginho em certo momento partem para o fight com Zózimo Bulbul, o negro-fetiche das mulheres e dos homens brasileiros dos anos 70. Bulbul se deixa chicotear pelos três, pede mais, Mossy fumando um baseado entra em êxtase e em seu complexo de onipotência dá uma surra em todos. “Bate machão, bate!” – Serginho pede, e a gente se pergunta por que é a Conspiração Filmes, não a Vidya, quem manda no cinema brasileiro hoje em dia.

O filme termina com a separação, a dissolução daquele arranjo sexual fabuloso. Haydeé, a narcísica, abandona o marido e vira traficante de drogas. Serginho dá vazão ao seu homossexualismo e vira uma vedete carnavalesca. Ângelo e Giselle se entregam à realização plena de suas personalidades, mas Ângelo parece ter apanhado uma doença sexual, em cena final duvidosa.

Resta Luchinni, que abandonado por todos e pego em flagrante de pedofilia (sim, até isso conseguiram encaixar, ele lê uma revistinha com o título de “O amiguinho do Rei”), assume sua condição de provedor dos parasitas e sustenta a felicidade (?) de todos. Se me contassem que “Giselle” existe, eu duvidaria. Mas foi filmado no Rio de Janeiro em meados de 1979. E, segundo os responsáveis, vendido para quase trinta países. Há muito mais a ser dito, e tal como uma manchete do Notícias Populares, ninguém perde por esperar.

sexta-feira, outubro 07, 2005

Cassy Jones, O Magnífico Sedutor


“Este filme é dedicado a pessôas que souberam rir e viver: Izaura Miranda Person, Jorge Affonso Bouquet, Sergio Porto, Glauce Rocha, in memoriam”.

A inscrição, vista na tela, representa uma elegia ao que iremos ver. A ambientação, Rio de Janeiro, 1972. Imagina-se a Banda de Ipanema e a turba dos corsos que passassem fora de época e viessem saudar o lendário Luiz Sérgio Person, diretor deste e de “São Paulo S.A”, um dos maiores filmes da cinematografia brasileira. Nos concentremos em “Cassy Jones” e, ao fundo, desenhem o fim da tarde no Arpoador, as mocinhas de biquíni e um nonsense genial, que mataria John Cleese e Eric Idle de inveja.

Produção da “Lauper Films”, os créditos, ironicamente, são escritos em inglês. Person também assina o roteiro, com Joaquim Assis; a música é de Carlos Imperial – o adorável e nojento canalha que faz ponta como o próprio e é citado várias vezes pelos atores. A Eastmancolor presta o auxílio luxuoso e – repetindo os anúncios da época – presenciamos “uma explosão de cores” e uma decoração chiquérrima – com direito a cama d’água com peixinhos dentro – que remetem ao que de mais fervilhante havia naquele alvorecer da década de 70.

Close no quadro de Tom e Vinícuis pendurado num bar, são os pais espirituais do que havia de belo num mundo perdido. Cassy Jones (Paulo José) é o garotão boa-vida, o sedutor magnífico, tremendo cara, “bacanérrimo”, diz a canção hipnotizante de Imperial. Rouboult – pronuncia-se “Rubú” – é interpretado por outro ícone ipanemense, Hugo Bidet. O homem que, em 1977, dispararia um tiro contra o céu da boca, sobreviveria, avisaria o crítico Alex Vianny – seu vizinho – e iriam juntos ao hospital, para morrer nove dias depois. Mas em “Cassy Jones” ele é o impagável Oliver Hardy de Paulo José, o amigo taradão, que aparece vestido de rajá indiano, pianista com peruca marrom, motorista de caminhão e, inexplicavelmente, torna-se de um dia para outro o produtor musical do show de Clara (Sandra Bréa, em sua estréia no cinema).

Percebam então que esse clima de caos é contagiante e vertiginoso. Uma mistura de deboches e referências – uma delas às comédias da Mutual, com direito a bigodão e slapstick de Mack Sennett. Outra, ao teatro de revista, encenado por Clara, dando a deixa para a entrada de Grande Otelo, em rápida aparição como bilheteiro.

Depois de um momento delusional em que pretende largar as mulheres e dar um tempo, Cassy assiste à Clara na tv, em um “quiz show” à moda de “O Céu É O Limite”, apaixona-se e persegue-a até seu palacete em Santa Tereza. No programa ficamos sabendo que a menina é orfã, mora com Dona Frida (Glauce Rocha) e é muito cortês.

Glauce praticamente não fala – este é justamente o gancho de sua personagem, assassinada numa confusa troca de tiros. O tom não é de tristeza, Frida era megera, cai ao chão com uma fisionomia e linguagem corporal hilariantes. Este seria seu último trabalho no cinema. Faleceu em 1971, aos 41 anos de idade.

Contraditório falar de uma comédia e enxergar nela um obituário acoplado. Mas o filme guarda em si estas lembranças, além de ser fruto do trabalho, sempre primoroso, de Person, falecido tragicamente. Herdeiro de uma fábrica criada pelo avô, dedicou-se ao emprego por um tempo, abandonou tudo e foi estudar na Itália.

Deu aulas na célebre Escola Superior de Cinema São Luiz, freqüentada por jovens como Carlos Reichenbach – de quem produziu o primeiro curta, “Esta Rua Tão Augusta” (1966), um exercício para sala de aula. Dirigiu, dentre outros filmes, “São Paulo S.A.” (1964) – obra-prima, conjugando a crítica à industrialização, antevista seminalmente por René Clair em “A Nós A Liberdade”, ao existencialismo sartriano –, e “O Caso dos Irmãos Naves” (1967), cujo roteiro lembra os piores delírios trash, mas baseia-se em eventos reais, ocorridos durante o fascismo psicopático do Estado Novo.

Não vejo em “Cassy Jones” o que parte da crítica acostumou-se a denominar “pornô-chique”. Novamente encontro dubiedade nestas classificações. “Cassy Jones” é, sim, um happening, calcado no melhor do bom humor e no porto seguro que representava a batuta de L. S. Person por detrás das câmeras. Instados pela pergunta, assim responderiam os gaiatos, amigos de Bidet, do canto qualquer de um bar hoje fechado e esquecido no tempo: “Cassy Jones? Cassy Jones é um desbunde, puro desbunde”.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Anjos do Arrabalde


A cinematografia de Carlos Reichenbach requer um alerta permanente. Ao assistirmos a seus filmes cruzamos as fronteiras da Mira-Celi tropical, ilha em que Thomas Moore, Bakunin, Fuller, Godard e Reich reúnem-se para conversar. Têm, à sua direita, Luiz Sérgio Person – figura importante nos anos de formação do diretor –; à esquerda, A. P. Galante – produtor de muitos projetos. No meio de tudo, Reichenbach, cuja ânsia de fazer cinema é a peça de resistência de uma obra a ser ainda muito estudada.

Escolhi “Anjos do Arrabalde: As Professoras” (1987) para iniciar este trabalho de investigação, porque encontro nele uma ponte para a alma feminina, temática que já havia sido delineada anteriormente em “Lilian M., Relatório Confidencial” (1975) e é retomada em “Garotas do ABC” (2003). Entenda-se que o universo ficcional do criador não é dividido em fases estanques, as informações dialogam, e o critério que utilizo é meramente organizacional, de modo a facilitar a abordagem das personagens centrais de “Anjos...”: Dália (Betty Faria), Rosa (Clarisse Abujamra), Carmo (Irene Stefania) e Ana (Vanessa Alves).

Dália e Rosa são professoras do sugestivo “Colégio Estadual de 1o. Grau Luiz Sérgio Person”. O “arrabalde”, a periferia, em que vivem, está à margem da capital paulista, transformando-se em uma espécie de paróquia, na qual violência e primarismo são elementos constantes.

O primarismo é encontrado sob diversas formas. Nos trejeitos do advogado de porta-de-cadeia (Enio Gonçalves, Fausto de “Filme Demência”), casado com a ex-professora Carmo; nas grosserias do delegado malandro (Carlos Koppa, ator da Boca, hoje na “A Praça é Nossa”) fissurado por Rosa; nos comentários maliciosos a respeito do lesbianismo de Dália, que, afinal de contas, não deveria ficar fazendo essas coisas na frente das crianças, desacostumadas com tanta pouca vergonha.

A violência é, por outro lado, fonte de discussão do início ao fim da trama. Assistimos, já no primeiros segundos, ao desfecho de um estupro, em que a vítima (Ana), largada no matagal, desmaia, e em seguida surgem os créditos de abertura. Afonso (Ricardo Blat), irmão problemático de Dália, drogado, é currado por traficantes, aumentando ainda mais a condição de ente enigmático, zumbi que finalmente deságua o desespero na belíssima cena em que procura os seios da irmã, em clara nostalgia edipiana.

Há uma qualidade naturalista no filme – “eu me sinto bem na periferia, aqui eu sinto cheiro de gente”, diz Carmona (Emilio di Biasi, Mefisto de “Filme Demência”). Ela é combinada às conhecidas epifanias, marcantes na trajetória do diretor.

Um simples final de semana na praia, por exemplo, é retratado com toques experimentalistas. O lúmpen tira foto, come frango, faz o ritual de praxe, mas a montagem acentua a estupidez do circo. Carmona, amante casual de Dália, funciona aqui como o bufão embriagado que em momento de catarse esbraveja contra todos. Convém lembrar que a rubrica de “Week-end” é colocada na tela para marcar este capítulo da ida ao litoral, ensejando uma evidente subversão dos filmetes comerciais que vendem a imagem das famílias felizes em temporada de férias. Por um instante imaginei ter visto ali perto, na mesma rua, Roberto Miranda (alter-ego do diretor) antes da chegada da espiã-jornalista, em “A Ilha dos Prazeres Proibidos”.

O argumento original de “Anjos do Arrabalde” deve-se em parte ao que Reichenbach ouvia de Ligia, sua esposa – dentista da rede de saúde pública, aparece rapidamente em uma ponta no filme, como a dentista do colégio. A brutalidade demonstrada nas telas é, portanto, fruto de empirismo e apuramento estético, que transforma em obra de arte o cotidiano da baixa classe-média.

No universo autoral de Reinchenbach encontramos, ainda, uma nítida aproximação entre cinema e literatura, característica que tanto fascina quanto pode passar desapercebida para a grande massa de espectadores. Em “Ilha...” ela está mais do que evidente, páginas e páginas de diálogos são por vezes transcrições literais de autores cuidadosamente escolhidos. Se na “Ilha....” há menção a viagens anárquicas e libertadoras, em “Anjos...” concentro-me numa cena que revela, com extrema sutileza, o grau de culpa e morbidade de Rosa. À beira do suicídio, acabou de ser abandonada por Soares (José de Abreu) – esquizo diretor do colégio, com quem tivera um caso.

A aluna lê em voz alta com o livrinho em punho, Rosa repete o texto em solilóquio, corta lentamente os pulsos com uma navalha, é vista – alguns quadros depois – à beira de um precipício, numa aparição fantasmagórica. Ressalte-se que a tensão criada pelo autor nesse contexto é importantíssima, fazendo emergir símbolos claramente contraditórios, envolvendo punição, morte, vazio, de um lado; e, de outro, amor, infância e suposta doçura das “tias” em sala de aula.

Um aspecto a ser, por fim, sublinhado em “Anjos do Arrabalde” é o elenco. Vanessa Alves, em especial, como a psicótica manicure, abandonada pelo pai, violentada, perdida, traz uma dimensão extra ao filme. O olhar é distante, a fúria do corpo, diria João Gilberto Noll, torna-a uma possessa, caminhando pelas ruas estreitas do bairro. Em “Anjos do Arrabalde” a tragédia dos personagens não é contingenciada, ela é marca do filme, anda à solta. E nela reside a premissa de torná-los, indiscutivelmente, humanos.

segunda-feira, outubro 03, 2005

A Menina do Lado


Apesar de parecer óbvio, é errado buscamos uma aproximação entre “Menina do Lado”, de 1987, e o sempre citado “Lolita”. O romance de Vladimir Nabokov, que deu origem ao filme de Kubrick (e a uma refilmagem recente), trata do fetichismo doentio de um homem de meia-idade por uma adolescente. Em “A Menina do Lado”, percebemos uma verdadeira relação de amor, mútuo, entre os protagonistas – ainda que, evidentemente, sujeita a nuvens e trovoadas.

Mauro (Reginaldo Farias) é o jornalista cinqüentão que aluga uma casa de praia na tentativa de concentrar-se no trabalho. Alice (Flávia Monteiro) é a vizinha de 14 anos, freqüenta a cidade sozinha, às vezes recebe visitas da mãe. Nos arredores, o fiel escudeiro de Mauro e Alice: Paulo Maurício (Sérgio Mamberti), que serve de ponte entre os dois mundos, torcendo para que tudo dê certo. “Quando duas pessoas estão bem juntas, elas ficam bem... juntas”, diz.

Por este pequeno resumo de uma parte da história, podemos ver que existem diferenças imensas em relação ao romance nabokoviano. O filme brasileiro, dirigido por Alberto Salvá – realizador que já freqüentou as páginas deste blog em “Um homem sem importância” – não mostra a história de uma criatura perversa, uma quase-diva, quase-demônio, corporificada no rosto ingênuo de criança. Isto é trabalhado por Kubrick.

Alice é frágil, filha de uma mãe problemática (Débora Duarte). Surfista e fotógrafa nas horas vagas, não tortura o jornalista ao ponto da escravidão sexual e emocional. Pelo contrário, ela se mescla com ele e preenche, através deste relacionamento, um espaço criado provavelmente pela ausência do pai. Não sei se era esta a intenção dos roteiristas (Salvá e Elisa Tolomelli), mas ao menos passa ao espectador a impressão. O pai de Alice nunca vem à tona, inexiste, é um vazio que piora na medida em que a mãe se demonstra uma tresloucada completa.

Por sua vez, Reginaldo Farias não precisa temer o confrontamento com James Mason. Mauro e Professor Humbert Humbert (Mason) são opostos. O primeiro é imbuído de amor; o outro, de necessidade doentia, que atinge o cume no assassinato de Clare Quilty (personagem vivido, em plenitude, por Peter Sellers). Quilty, aliás, representa mais um fosso entre “Lolita” e “A Menina do Lado”. Ele é o vértice do triângulo que forma juntamente a Lolita (Sue Lyon) e Humbert. Um sujeito amoral, intoxicante, sociopata que transtorna ainda mais a vida do casal destinado à tragédia.

Paulo Maurício, não. É o amigo mente aberta, que toma cerveja com Mauro e Alice (sim, ela bebe direto de uma lata de Malt 90), acredita em sexo como uma extensão prazerosa do indivíduo e mantém laços de amizade com um menininho mais novo – que, por sinal, não aparece na tela.

Fica claro, portanto, que “A Menina do Lado” possui ingredientes ficcionais próprios, e devemos afastar dele os rótulos fáceis. Datado de 1987, me parece bem mais próximo da cinematografia nacional dos anos 70. Mistura lirismo, observação, delicadeza. Fecho os olhos e imagino-o ombro a ombro com filmes produzidos antes da onda de pasteurização que contaminou muitas das produções dos anos 80. Mas basta, porém, ver os logos da Redley, da Benetton, os mullets e os bugres na praia, para perceber que a era Sarney estava ali, subjacente a todos esses dados iconográficos.

Alberto Salvá demonstrou em “A Menina do Lado” o relacionamento de um casal de namorados. As bobagens do dia-a-dia, a imaturidade, o sexo, o choro incontido de Mauro quando transa com a esposa e sente a ausência de Alice. O encantamento de um pelo outro, por motivos que lhes são pessoais e instranferíveis. Mauro toma uma taça de sorvete e sorri da voluptusiodade de Alice. Alice abraça-o, diz que é feliz. Brigam, voltam às boas. Há, porém, um bucolismo – acentuado pela trilha sonora de Tom Jobim – que faz da agressividade um impulso coadjuvante, mínimo, no meio do caldeirão de emoções que compartilham. Alberto Salvá conseguiu o que queria. Retratou uma vida a dois, inusitada mas plausível.