terça-feira, novembro 30, 2010

Deus e o Diabo na Terra do Sol


Cravando a tese de que o sertão possui traços míticos, entes imaginários, fábulas acima do realismo, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) solapou um gosto diferente no cinema acostumado a Graciliano Ramos e Euclides da Cunha. A contenção do primeiro – mot juste dos trópicos – e o rigor obsessivo-compulsivo do segundo – complexo de informações para um tratado – são modificadas a favor de uma linha supra-fantástica, que ao mesmo tempo desse conta da onipresente busca pela “brasilidade”.

Afinal, Glauber Rocha não escreveu, dirigiu e reorganizou diversas vezes a obra – desde fins dos anos 50 – impunemente. Queria um atestado em que coubesse toda sua geração, em que se deflagrasse a releitura da produção fílmica brasileira, em que lhe consolidasse posição de liderança e, num estampido, tornasse o movimento suprassumo internacional.

No esquema de grandiosidade, as Bachianas de Villa-Lobos são douradas pela canção de Sérgio Ricardo em acento de cordel, letra de Glauber. O primeiro instantâneo de Manoel (Geraldo Del Rey), com feições da era silenciosa, remete-se à amplidão do John Ford clássico – subvertido pela absoluta ausência de virilidade do caubói. Se tomarmos o western enquanto narrativa espetacular, fundante, a nesga de semelhança retorna. Especialmente no momento da morte da mãe por capangas – o rapaz assassinara o chefe. Enterra-a sem jurar qualquer justiça pragmática – a similitude aqui se afasta –, preferindo, não sem resistência da esposa Rosa (Yoná Magalhães), entregar-se ao protótipo de Antônio Conselheiro, o nordestiníssimo Santo Sebastião (Lídio Silva, carpinteiro que trabalhara em “Barravento”, filme anterior e estréia de Glauber). Após Sebastião, juntam-se ao bando de Corisco/Cristino (Othon Bastos, substituindo Adriano Lisboa, que não comparecera às filmagens).

Finalmente livres, não se dão conta do que fazer, correm a desembestada – à semelhança dos relatos sobre Lampião, que fascinavam Glauber: durante a matança do Corisco verídico, um casal de sobreviventes foragira. Na tela, a corrida e a aparição balsâmica do mar deixam a metáfora de o "povo" tomar a rédea da situação pela unha, desprezando os delírios alheios. Corisco, a violência anárquica; Sebastião, o excesso religioso. O filme conclama à ação prática, à tomada de posição ultra-materialista, contrariando a entourage simbólica que norteia o enredo.

Curioso notar que, por um achado das circunstâncias, Othon Bastos dublou o Beato – a falta de formação profissional de Lídio criou peso inevitável. A situação joga sutileza extra na composição dos personagens, como se a ressaltar que Corisco e Sebastião, mesma voz, fossem espectros da mesma moeda, um imbuído do outro. Guardariam igual semente de irracionalidade, punem o destino flagelado.

A homilia de Sebastião usa cânticos, preleções messiânicas, promessas da ilha “onde tudo é verde”, “tem água e comida”, “fartura do céu”. O extremismo chega à histeria na grande cena em que Manoel oferta o filho ao Beato, este o sangra, junta o líquido na faca, passa-o depois na testa de Rosa, sinal da cruz. A mulher o golpeia em seguida, aproveitando a desilusão de Manoel, mesmo instante em que os fiéis são dizimados por Antônio das Mortes (Maurício do Valle) – capanga eleito pelo Padre e pelo Latifundiário. O som desconcatenado, massa em desordem, a fotografia e a câmera de Waldemar Lima – criando jogos propositais de sombras em todo o filme – são especialmente felizes nesse entrecho.

Iniciada a segunda parte da história, Corisco surge entre citações de Padim Ciço e Lampião. Batiza Manoel de Satanás, nome másculo de cangaceiro. Pilham, saqueiam, atordoam. Entronizado por São Jorge, Corisco impõe a espada em êxtase, contra o "dragão da maldade" – expressão que, noutros termos, significa a própria miséria. O cartaz antológico – ícone pop dos anos 60 –, desenhado pelo tropicalista Rogério Duarte dá a dimensão do ato.

Corisco traz consigo Dadá (Sonia dos Humildes), que forma com Rosa um núcleo feminino. Chegam a se acariciarem, sensibilidade do roteiro ao demonstrar que a euforia de Corisco e Sebastião – para qual Manoel correu, ouvindo o soluçar da sereia – deixara Rosa como resíduo, a ponto de beijar Corisco ou, acima disto, entregar-se à solidez que representa.

Eisenstein tangenciou essa desintegração típica de Novo Mundo – pobreza, religiosidade, folclore – em “Que Viva Mexico!”. Também encontram-se em “Deus e o Diabo” reminiscências do ancestral “Encouraçado Potemkin”, além da dramaticidade que Glauber assumidamente vira em “Rocco e Seus Irmãos”, de Luchino Visconti. Além dos citados, note-se que o Cego Júlio traz uma onisciência bem mais próxima da estrutura nordestina do que de teatro grego.

Certamente o rol de influências pulula, mas temperadas por injeções do jovem GR, que concluiu o filme aos 25 anos. Alçou vôo grande, condoreiro, como a tal reencarnação de Castro Alves, idéia que defendia – faleceu aos 42, idade que previu por ser o reverso dos 24, em que o conterrâneo evanesceu. No caldo “Deus e o Diabo” percebe-se o culto ao sebastianismo, a São Jorge, além da onipresente dobradinha Igreja-Latifúndio – estes um tanto estanques, sem a relativização moral que o filme joga sobre demais personagens. Manoel, por exemplo, mente a Corisco imputando a Antônio das Mortes o extermínio de Sebastião. O bom selvagem é, antes de tudo, fraco.

A propósito da amoralidade, o corpulento Antônio das Mortes encarna uma das maiores personas do cinema nacional. O que deveria ter de monstruoso se refaz – literalmente, pois a participação de Antônio foi reescrita à última hora, construindo-o como ente dúbio. Jagunço de idéias progressistas, aniquila, espingarda em punho, com olhos na recompensa prometida e igualmente por se oprimir perante a miséria. Mexendo nos tabus retrógrados, na visão dicotômica sobre o papel da vanguarda popular – jagunço mau versus jagunço humanizado –, Antônio beijou as telas numa complexidade que escapa aos slogans míopes. Quase revolucionário, não é o vilão destrambelhado – o latifundiário o é –; antes um híbrido, vulto que dada sua magnitude retorna em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969).

Monte Santo, Cocorobó, Canudos foram locações escolhidas por Glauber. Associou-se ao Banco Nacional de Minas Gerais – de José Magalhães Lins – e às mãos eclesiásticas – agradecimentos, nos créditos, ao Monsenhor Francisco Berenguer. Produção, ainda, de Luiz Augusto Mendes, aliado ao dínamo Jarbas Barbosa. Montagem de Rafael Valverde, presença constante na filmografia cinemanovista – esta, em "Deus e o Diabo" aproveitou a assistência de direção de Paulo Gil Soares e Walter Lima Jr. Equipe mínima, multifuncional, à moda do conveniente cooperativismo.

Competindo em Cannes no ano em que Baleia e "Vidas Secas" flanavam pelo balneário, volta sem o prêmio, sequer o coadjuvante arrebatado pelo "O Cangaceiro" em 1953. Sabe-se que entre o autor e Lima Barreto existem quilômetros de distância – não em termos "evolutivos", por óbvio. Máscara ilusória, o nordestinismo pouco faz para os unirem – o que em Barreto é estruturante, em Glauber provoca bocejos e ira. Barreto deixou irrealizado "O Sertanejo", projeto que poderia avançar na temática e iluminar o ponto de vista com mais calma. Os destinos de ambos se cruzariam, mesmo tênues, depois de mortos: Walter Lima Jr. – colaborador reiterado de Glauber, membro da família – dirigiu o roteiro de "Inocência" (1983), escrito pelo totem da Vera Cruz.

Os rastilhos de pólvora em que Glauber se envolveu – o rechaço a "O Cangaceiro" é apenas fração – confirmam a trajetória colonizadora que tanto o empolgava. Entradas e bandeiras, repovoar uma Panamérica estilística, borrifar especiarias, como o mascate que impõe valores mas sobe à montanha por algum destino inebriado, guardando as tábuas da lei. Caiu no ostracismo, desfrutou de uma segunda volta, redimido pelo além. Apesar dos equívocos posteriores, a serem colocados em perspectiva, neste "Deus e o Diabo na Terra do Sol" construiu a obra fulminante, que os próximos e os afastados da "onda nova" devem conhecer com fôlego. Cogitar do contrário, fechando-se no puro preconceito ou no endeusamento leviano, implica em autofagia, esse crime déspota que o anseio crítico não deixa mais persistir.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Vidas Secas


Pobre coitado do homem feudal, o encurralado que temia a chuva, o vizinho, o ludibriado que gritava antes de se jogar numa fogueira e, acaso retornasse vivo, considerava-se abençoado por Deus. Vá lá que a cronologia mudou essa rotina, o ocidente mascou bastante chiclete, viveu de todas as guerras, a guerra, desfez o laço de vassalagem, mas uma corrente ainda agarra o imaginário do mítico Nordeste brasileiro.

É o agreste perdido, enclave injusto, que o geist modernista ungiu à condição de Arcádia, volta ao campo, criando tipos que desaguaram fora da literatura. Lembrança rápida faz citar pérolas do cinema nacional, três delas rodadas quase simultaneamente, na mesma região, parte das equipes freqüentando-se durante o processo: “Os Fuzis” (1963), de Ruy Guerra; “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha; “Vidas Secas” (1963), de Nelson Pereira do Santos.

Somando-se os nordesterns – da Vera Cruz ou não –, as colorações diferentes, encontramos no território a oportunidade de ouro para realizadores do século passado que vez por outra engatavam uma premissa messiânica, como se a denunciar e a um só tempo combater. Colocada na lente de aumento, a denúncia atacava o servilismo do país, o “porvir” que haveria de ser construído, tal como no letreiro inicial urgido por NPS: realidade que “nenhum brasileiro digno pode mais ignorar”.

O convite ao levante não gerou qualquer desconfiança para transpor “Vidas Secas” com respeito absoluto, sem tirar nem por sequer uma vírgula do original de Graciliano Ramos – quadro do PCB, perseguido pela ditadura getulista. Fidelidade aceita ideologicamente, e sobretudo incensada, tratou de um caos que a escrita de 1938 deixou próxima de 1963. As décadas de distância entre livro e filme fizeram-nos irmãos, pressupostos similares.

Graciliano Ramos contou com José Olympio para a primeira edição. Nelson Pereira, com a produção de Herbert Richers – pacto celebrado à época de “Boca de Ouro” (1962) –, Luiz Carlos Barreto – também fotógrafo da luz propositadamente estourada, ao lado de José Rosa – e Danilo Trelles. O roteiro de Nelson passou pela consultoria de Waldemar Lima, Clovis Ramos, Rubens Amorim. Lygia Pape assina os letreiros que não trazem qualquer indício de virtuose e mantêm o minimalismo do longa-metragem. Poucas falas, gestos bruscos, inferências, a animalidade que Graciliano Ramos concedia às personagens – Fabiano sentia-se bem mais bicho do que homem.

Fabiano (Átila Iório) é o pai, Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), a mãe dos “dois meninos” que vagam pela caatinga até encontrarem um pouso, vendendo a alma ao latifundiário (Joffre Soares). Família composta ainda por Baleia, a cachorrinha acompanhada pela câmera, como na seqüência de sua morte – sacrificada por Fabiano, em razão da doença que afastava da utilidade para a tribo. O ponto de vista do animal marca o momento antológico, quando percebe que chegou perto do fim. Baleia fez sucesso considerável, a ponto de ser levada como estrela ao Festival de Cannes de 1964 – “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo” competiram –, para comprovar que não havia sido assassinada. Afinal, a artista estava viva, a personagem é quem havia falecido.

Outra estreante, Maria Ribeiro foi arrebanhada numa luta difícil, com intercessão de Richers. Maria, que trabalhava nos bastidores do laboratório da Líder, demorou em aceitar o convite, ingressar efetivamente na vida artística. Conseguiu atuação convincente, o mesmo não se diga do veteraníssimo Atila Iório, de prosódia carioca, biotipo alongado, forte, diferente do esquálido retirante. Melhor sorte lhe aguardou no clássico “Ódio” (1977), de Carlo Mossy, que subverteu o cânone da ultra-violência.

O imaginário de Nelson Pereira dos Santos adequa-se, conforme ressaltado pelo autor , à estrutura conferida por Graciliano para o texto; os plano físico e psicológico sem adornos. Grande estratégia de Nelson ao usar o zumbido duro das rodas do carro de boi, fazendo-o presente – bem como o que evoca – sem estar exatamente no centro das ações. Em quebra de expectativa para a pureza de determinada cena, Sinhá Vitória mata um papagaio que corrupiava por perto, ao tomá-lo de estalo.

Claro está que as nuances típicas da esfera literária – aquela em que há co-autoria individualizada entre escritor e leitor – se perdem, algo aliás esperado. Baleia, a atriz, não consegue traduzir o desconforto pelo carinho excessivo de um dos garotos, que apertava-lhe na falta de carinho dos pais. No texto, Graciliano comenta que o bicho sente antes de mais nada o cheiro de um osso, com alguma carne, vindo da cozinha. O espectador pode ceder ao encanto romântico do afago.

Quanto à solidão das crianças, sabe-se que elas sofrem da liturgia da caatinga, a ausência de pedagogia que “Infância” – livro autobiográfico de Graciliano – deixou clara. Maus tratos, atos duros, destituídos de complacência, piorados no caso pela pobreza absoluta, aspecto que o escritor não vivenciou. Pelas tantas, Fabiano e Sinhá monologam, a fala de um sobrepondo-se à do outro, os olhares vidrados, a loucura surgindo pelo desgaste fisiológico, a fome, o sol, os pés curtidos. Nesta sensação de inferno, o menino maior conhece a palavra ao ouvi-la da curandeira chamada para tratar do pai, que havia sido esfolado pelo volante (Orlando Macedo). “O que é inferno? O que é inferno? Inferno. Inferno”. Em uma tomada de consciência, filosoficamente o menino associa o conceito ao lugar, circuito de pensamento que o diretor apresenta nitidamente à platéia.

A intolerância se espalha na corrupção estatal, no achaque de impostos, nas chibatadas em Fabiano ao abandonar um carteado, quando aguarda a esposa sair da novena na igreja. O fazendeiro (Joffre Soares) complementa a ladinice que o rapaz sofre por todos os lados, dando-lhe a noção típica do conceito de “mais valia” – em alta na geração de Graciliano –, com o cálculo feito para roubar o vaqueiro. No casarão, a filha tem aulas de violino, o café da manhã é lauto, para lá migram os pífaros, os folguedos, numa pajelança ao chefe. Ponto positivo, Fabiano não é tão puro quanto o bom selvagem, não sofre da injustiça sem grunhir alguma truculência – “não sou negro” é o clamor para que o patrão lhe respeite. Essa confusão de disciplinas, de atraso sepulcral, recheada por elementos antropológicos – a igreja, a violência, a seca – fazem do livro-filme um documentário que se quis primor de força, de agressividade. Adotada pelo Brasil afora, a idéia subjacente chega com facilidade após anos de reportagens, incluindo o mercado livre da televisão.

Malogrado de início, “Vidas Secas” enxergou a luz depois de uma parada meteorológica, devido às chuvas que estragaram o cronograma de Nelson e fizeram-no improvisar “Mandacaru Vermelho” (1961) em seu lugar. Inevitável que tenha se tornado um ícone, por conta das referências que manipula, caríssimas à ordem do dia. Em termos estilísticos, está em sua obra como episódio imediatamente anterior ao “ciclo de Paraty” – “Azyllo Muito Louco” (1969-1971), “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1970), “Quem É Beta?” (1973), rodados na cidade fluminense – com alegorias e poesia diferentes, refrescantes em relação ao neorealismo fundamental que estabeleceu os primeiros passos do diretor. Enquanto o futuro não vinha, os agradecimentos da equipe à população do Minador do Negrão e de Palmeira dos Índios – terra natal de Graciliano Ramos – deixam o pacto com o entorno que se multiplicou exponencialmente nas engrenagens do audiovisual brasileiro.

quarta-feira, novembro 24, 2010

Mauro Alice (1925-2010)


Conheci pessoalmente Mauro Alice há quase três anos. Na ocasião, havia sido convidada por Sergio Andrade para apresentar "Palácio dos Anjos", ao lado de Eduardo Aguilar, na mostra "Cinco Visões de Nosso Cinema". A película, projetada em tela grande, sem dvd e outros aprisionamentos tecnológicos, cumpriu seu papel de encantamento a cada milímetro. Direção de Walter Hugo Khouri, montagem de Mauro, que estava ali na platéia -- fecho os olhos e o vejo --, atento a cada comentário.

As perguntas vinham e a todo instante eu driblava o temor reverencial de estar próxima de alguém por quem depositei, e deposito, imenso respeito pela Arte, pelo talento, pela humildade, pela coragem de entregar-se ao ofício do cinema.

Terminada a projeção, a que assistimos juntos, tiramos fotos, combinamos de realizar a entrevista para o Estranho Encontro, na qual diversas vezes nos emocionamos com as passagens sobre sua infância, maturidade, perspectivas sobre o futuro. Brinquei dizendo que a Coruja de Ouro -- prêmio pelo fabuloso, gigantíssimo "Anjo da Noite" --, em cima da estante, me encarava e estava me chamando. Ele insistiu que a pegasse e assim o fiz, coloquei-a no colo -- pesadíssima, já me alertara -- e saciei a curiosidade.

Por ocasião do destino, quando vim para São Paulo, me mudei para o mesmo bairro de Mauro e o visitei algumas vezes. Conversávamos horas, tomávamos chá, o apartamento bonito, a louça alinhada, apuro que não se esquecia.

Nascido em Curitiba, aportou na Vera Cruz por acaso, quando estagiava em outra área de interesse, na mesma São Bernardo do Campo. Bateu à porta de Franco Zampari, estudou com Oswald Hafenrichter, estabeleceu com Mazzaropi e Khouri -- por mais antípodas que parecessem -- parcerias de filmes e filmes. Novas fontes apareceram, dialogou com todas elas, estivessem na Boca do Lixo, na Vila Madalena, no além-mar, inúmeras trupes, momentos históricos, na miríade.


Mauro faleceu ontem.

Vai com ele uma parte da trajetória do cinema brasileiro. Prolífico, atravessou décadas e manteve-se firme, fruto daquele amor pelo cinema que não conhece pastiche, que tem ojeriza à mediocridade, que quer ir à frente, mais e mais.

Mauro, querido amigo e mestre, a honra de tê-lo conhecido permanece sempre. Obrigada.

domingo, novembro 21, 2010

Boca de Ouro


Escaldado no calor saariano do subúrbio, acompanhando os trilhos do trem que varrem a zona profunda do arrabalde, ei-lo aqui, o espectro que ronda Madureira. Torto, abençoado na pia de um salão de dança ao nascer de mãe suja, o bairro vira antro para o nobre Boca de Ouro – epítome do malandro agulha, bicheiro, mezzo homicida, mezzo benemérito de pobres. Lenço na mão, dá umas apalpadelas na testa, anel no dedo mínimo, ascende na contravenção e troca os molares, os incisivos, os caninos, os dentes todos por substitutos kitsch em ouro 24 quilates. Encomenda o próprio caixão no metal, supondo uma dignidade tosca que o enterro conseguisse lhe dar. 

Este o monstrengo que encarou Nelson Pereira dos Santos após o recente neorealismo urbano – “Rio 40 Graus” (1955), “Rio, Zona Norte” (1957) – e agreste – “Mandacaru Vermelho” (1961). A ele retornaria com “Vidas Secas” (1963), barganha assentada com a produção de “Boca de Ouro”. Faz-se um filme como mero realizador contratado, sem o mínimo de apego à obra, para conseguir-se o que se almeja com toda alma. No trajeto ao graal, Nelson esbarra na criação do xará, o Rodrigues, autor da peça que originou o filme. “Boca de Ouro” (1962) lança, portanto, outro deque de cartas à sorte das adaptações de textos de Nelson Rodrigues pelo Cinema Novo.

Acaso se queira dar um sentido amplo à genealogia do movimento, tem-se em “Agulha no Palheiro” (1952), de Alex Viany, uma das sementes – assistido na direção por NPS, recém-chegado de São Paulo. Há muito Nelson resistia no meio cinematográfico brasileiro. Mais velho em alguns anos do que a geração de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues et alli tornou-se, a despeito, a tocha do cinema dito “independente”, “antiimperialista”, “materialista-dialético-pragmático” e construções do gênero. Em “Rio, 40 Graus” sobe o morro, passa as câmeras por vielas, faz da produção um evento de cooperativa, manda uma foice à política dos estúdios. Vá lá que não filma despachos de macumba – profissão de fé também de Glauber, em “Barravento” (1961) –, religiosidade a que cederia em fase outra, no “O Amuleto de Ogum” (1974). O elemento popular era inegavelmente tomado por um tanto de sectarismo naqueles 1950-1960, sem dar a entender a abertura de consciência que “Na Estrada da Vida” (1980), por exemplo, possibilitaria. Direção de Nelson Pereira, estrelado por Milionário e Zé Rico, une-se ao melhor gosto do cinema de Clery Cunha e companhia.

Ainda assim, tendo-se em mente o tempo e espaço de “Boca de Ouro”, natural que se compreenda a implicância do diretor – e demais colegas de Vermelhinho – com a encomenda feita pela Copacabana Filmes, de Herbert Richers, produção de Jarbas Barbosa. Produto feito, vendido, máquina midiática. Tirando-se o ranço de guerrilha sessentista, a situação há de ser repaginada, para se colocar o filme como coletânea de acertos que de fato é. E não só pelo desempenho tonitruante de Jece Valadão, mas pelas estratégias de Nelson no que se referem à direção e ao roteiro. Os minutos iniciais apresentam belamente o protagonista e driblam as armadilhas deixadas pela peça – encadeamento lógico, literalidade e quetais, feitos para a comunicação com uma audiência de teatro. Boca (Jece Valadão) é visto preso, libertado, assaltando, matando chefe e tomando o trono, sem dizer palavra. Atenção para o diálogo tenso que trava com o dentista: está ali Rodolfo Arena impondo o boticão, próximo da pinta de galã que sustentou por décadas, como em “O Ébrio” (1946).

Colocado no contratempo a ser desvendado pela trama, Boca morre e a notícia chega à redação de jornal em que trabalha Caveirinha (Ivan Cândido), o quase-papa-defunto à procura do próximo urubu. Nelson Pereira insere inteligentemente o chiste típico do outro Nelson: “Miguel Borges, telefone!” – coloca o crítico-diretor na piada que Rodrigues vira e mexe fazia com o alvo certeiro, Otto Lara Resende.

Para as três versões contadas pela cocada Guiomar (Odete Lara) – ex-amante de Boca, caçada por Caveirinha –, a caracterização do contraventor muda em figurino e preparação visual, deixando a dose de facilidade para ensinar ao público a manipulação da história pela mulher. Leleco (Daniel Filho) e Celeste (Maria Lúcia Monteiro) formam o casal que tangencia Boca. Ora Leleco é o desempregado covarde; Celeste, pura; Boca, o cruel. Ora Leleco é o traído, Celeste enrolada com um granfo em Copacabana; Boca, o que revida golpe de Leleco. Ora os dois são mortos pelo bandido, em êxtase com a bacana da Zona Sul, que perdera o campeonato de seios bonitos, na versão anterior. Interessantemente, o grau de aceitação em torno do nascimento problemático – e suado – muda em Boca. Há espaço inclusive para ser filho (quase) amoroso, à medida em que Guigui doura a pílula, com pena do amásio morto.

Nelson, o Pereira, opta por uma linha vertiginosa, rápida, mesclada pela montagem de Rafael Valverde e pela música de Remo Usai. Deixa o clima de excentricidade jornalística, deixa o humor, cede ao encanto de Valadão – ainda incipiente em “Rio 40 Graus” –, aqui em estado de graça, feliz qual penáceo no lixo. Os diálogos de Nelson, o Rodrigues, acrescentam em brilho, dando o cinismo que ululava no reacionário das causas inglórias. “Se Deus quiser, hei de ver a Grace Kelly”, “Só tive um colar, das Lojas Americanas”, e tudo o mais o que Celeste e as personagens oníricas merecessem.

O pastelão guarda uma premissa rodrigueana – dessas incompreendidas e que a crítica redimiu, sobretudo desde a década dos 1990. Cômodo supor que a animalidade, o coito em casa de família ou nos porões escuros de Madame Clessi, fossem pretextos para chocarem de modo vazio, misturados aos bordões cômicos. Hoje, até o idiota da objetividade pescou que Nelson – sim, o Rodrigues – guardava uma singeleza de séculos, sobrepunha planos de consciência e escondia uma faca no bolso, encoberta pela voz bovina. O que a princípio é grosseria, termina em ceticismo. O filho incestuoso, nu, em “O Álbum de Família” (1945). Os dentes de Boca roubados, o cadáver seguindo o sortilégio de ser filho do nada, saindo da vida para entrar no ocaso.

A interdição de Rodrigues – aos cântaros, a cada nova peça – sustentou a aura de maldito que, por sinal, cutucou de leve “Boca de Ouro”, o filme. Mais uma vez galanteador na estratégia de xerife das boas práticas, acima da competência funcional de Chefe de Polícia, o sr. Newton Marques Cruz tentou impedir a gravação de internas no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Compreendam que se tratavam dos píncaros da morte de Boca, o povo querendo saudar o self-made marginal. A Censura nada dissera, extras e curiosos começaram a circular, a balbúrdia foi num crescendo, a proibição poderia causar prejuízo de milhares de cruzeiros. No vai e vem, a equipe conseguiu empurrar Wilson Grey – sempre ele – como transeunte, além de Caveirinha, Guiomar e o marido. Correndo entre as ruas do Centro velho, aproveitando a histeria e o desencontro de ordens, as cenas trazem aquele misto de cafajestada e verdade, improvisos que caracterizam as heranças do cinema popular brasileiro. Nelson Pereira dos Santos aproximou-se dele, deixou um regalo para os materialistas e imaterialistas que ainda podiam valsar ou tocar um tango argentino, luas antes da noite bruta chegar.

terça-feira, novembro 16, 2010

O Desafio


“Porto das Caixas” (1962) instalou em Paulo César Saraceni o fantasma de ser paradigma ao movimento que se dizia novo nem tanto pela idade, mas estruturalmente pela atitude. Com o ruminar dessas e diversas frases de efeito – algumas supostamente utilizadas por Glauber Rocha, sem repartir a co-autoria –, somadas ao impacto daquela obra de estréia, o ex-atleta do Fluminense Football Club, ator bissexto, experimentou trajeto libertário para desaguar em “O Desafio” (1965). Juntou os cacos da encomenda feita pelo Itamaraty, “Integração racial” (1964) – montada às pressas pela fervura do 1° de abril de 1964 – e repensou a possibilidade de prosseguir com “A Fera da Penha” ou encarar coisa qualquer que servisse de testamento para o período que surgia nebuloso.

“O Desafio” impôs-se pelas próprias pernas, “A Fera da Penha” desapareceu da pauta. Saraceni chamou para si a tarefa de dar voz à ressaca moral do golpe militar. Vêem-se e ouvem-se tiradas que o diretor colecionou pelas ruas, embrulhadas em quase ficção para contar o amor impossível de Marcelo (Vianinha) e Ada (Isabela). Cristaliza em Marcelo a cara de todo aquele que punhado de meses antes vibrava no comício da Central do Brasil e agora sentia-se subitamente nu em praça pública. Coloca em Ada a moça fina, bem intencionada e burguesa, lúcida, casada, traindo o marido industrial (Mário, Sérgio Britto) com o amante poeta, jornalista.

Exorciza – de maneira praticamente kamikaze – o que os profetas do bar Zeppelin e alhures gritavam a boca pequena. O aviso na versão restaurada deixa clara a sangria: “Este filme contém fragmentos de diálogo não originais, para repor trechos danificados pela censura da época.” De fato, palavrões e o termo “golpe” retornam dublados nas vozes de outrem, sobre o rosto de Vianinha e equipe. Alguns trechos ficaram intactos. O fotógrafo, colega de redação (Joel Barcellos), incorpora o espírito pragmático, tenta um pacote de manobras para estancar a treta política: “É o tempo da conscientização. Nós ainda vamos agradecer a este tempo.” Um amigo – sabe-se por comentários – é preso depois de responder a inquéritos – os insanos IPMs. Mário ajuda-o a se exilar em alguma Embaixada. O que o distanciamento histórico faz soar natural, anedotas dos chumbos de 1964-1985, cresce exponencialmente quando se atina que os dados hoje clichês – prisão, exílio – eram gritados em tempo real, com todas as letras.

A câmera – na mão, por óbvio – de Dib Lutfi e a fotografia de Guido Cosulich deixam mais vibrante a sensação de documentário político-afetivo. Saraceni conheceu Guido na Itália ao ganhar bolsa de estudos pelo curta “Arraial do Cabo”, mesma safra em que inicia contatos com Gustavo Dahl e Bernardo Bertolucci. Lutfi, auxiliado por José Medeiros, registra closes telúricos em Maria Bethânia, Zé Keti e João do Vale durante o show Opinião, no Teatro de Arena em Copacabana. Mário numa fossa monumental – e metalingüística, pois Vianinha foi um dos autores do espetáculo –, sofre por sofrer por si mesmo. O filme declara a utopia, o idealismo pagão do jovem que recusa a individualidade e amamenta as multidões, o espírito de coletividade. “Muita importância ao problema político e não a nós”, reclama Ada.

“É de manhã”, uma das primeiras canções de Caetano Veloso, pontua o encontro dos dois, já indo solto o prenúncio da separação. O arranjo do diretor-roteirista para o fim do casal se dá na bela seqüência em que vasculham um prédio em ruínas. O clímax os coloca frente a frente recitando “Invenção de Orfeu”, Jorge de Lima, em êxtase por segundos – sepultado em seguida pela constatação de que a união simbólica de Marcelo e Ada não vence a distância efetiva entre ambos.

No meio tempo, as citações pululam, na ânsia de dar conta de tudo o que houvesse de encantamento cultural, a vencer a tecnocracia. Capas de “Cahiers du Cinema” e de hits literários – “A invasão da América Latina”, de John Gerassi –; colagem de textos recortados de jornal; Vietnã, Otto Maria Carpeaux, discussões homéricas sobre Sartre ter se rendido ou não ao facínora sistema. Mário rebate os comentários do jornalista de meia-idade, cético, decadente, que repisa a inviabilidade da paz de espírito enquanto emborca os copos de uísque. Moço de bom tom revolucionário, recusa a esposa do amigo – por sinal, a mulher o assedia não sem uma certa condescendência do borracho idoso.

“O Desafio” anteviu o acirramento da guerra, que trazia o germe do AI-5, ainda sob as orelhas de Castello Branco. Marca fase de transição no Cinema Novo, associada geralmente com exclusividade a “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha. Apesar de usar a franquia da revolta perante a organização política nacional – em termos concretos, chicana política versus democracia –, “Terra em Transe” segue a trilha já estabelecida em “O Desafio”. Este, cravado no calor do momento, semelhante a um reflexo que não se consegue evitar – vide o título alternativo: “No Brasil depois de abril”. Saraceni comenta, inclusive, ter se sentido isolado por trazer o filme à baila, sendo acusado de irresponsável. A duras penas inscreve-o no primeiro Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, contornando a resistência lacerdista e deixando-o à audiência do seleto público, que incluía Roberto Rosselini.

Isabela, então casada com Saraceni, repetiria o protagonismo em “Capitu” (1968), diálogos de Lygia Fagundes Telles, roteiro de Paulo Emílio Salles Gomes. “Porto das Caixas” tivera outro adaptador luxuoso, Lúcio Cardoso, e presença feminina igualmente cáustica se comparada a “O Desafio” e à esfinge de Machado. “A Casa Assassinada” (1970), no mesmo fluxo lógico, conta com a presença de suporte literário – “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio – e vestal de prestígio, Nina. Vestindo malha de rumbeira em “Amor, Carnaval e Sonhos” (1972) – último filme de Leila Diniz – e tocando a mente aberta em bailes filosóficos, Saraceni desfruta de abordagem peculiar entre os colegas de geração. Bate em tabus como homossexualidade – Timóteo (“A Casa Assassinada”) é marco da cinematografia gls brasileira –, intervém no elemento urbano ou rural, sem migrar para o Nordeste – busca mitos em outros grotões.

Herói da primeira hora, seu “Porto das Caixas” exalou devir, uniu os nós, serviu de escudo ao arrebanhar aprovação crítica para o grupo – Paulo Emílio em São Paulo e Alex Viany no Rio seguravam os esteios. Tempos mortos que foram cambiando, os de “Porto” sorriam nas trevas da mulher que assassina o marido, história verídica; os de “O Desafio” atordoam pela resistência intelectual, história nevralgicamente verídica.

O que pode transparecer como refinamento, “pedra” na vidraça que quiseram lhe atribuir, deve-se a processo delicado de formação pessoal. Em sua primeira dentição, Saraceni foi próximo de Lúcio Cardoso – dândi, suposto amor platônico-sensorial-existencial de Clarice Lispector – e Octávio de Faria – redator do mitológico “O Fan”, autor dos talagões da “Tragédia Burguesa”. Saraceni não se sentia à vontade no ultra-materialismo do Centro Popular de Cultura da UNE. Talvez preferisse bradar Verlaine a Górki, talvez cresse que “‬Deus é como um canteiro de violetas,‭ ‬cuja estação não passa nunca‭”, vaticínio firme de Lúcio. Por estancar a mesmice, é da espécie de realizador que lançou blocos consideráveis de dinamite no viés totalitário de elementos internos e externos ao cinemanovismo.

sexta-feira, novembro 12, 2010

1 Milhão de Acessos


Daqui a poucos dias o Estranho Encontro deve superar a marca de 1 milhão de acessos, o que me deixa bastante feliz e com a certeza de que o trabalho de compreender o cinema brasileiro, longe dos lugares comuns e estereótipos a que tínhamos nos acostumado, nunca foi em vão.

Nos últimos 5 anos o blog sobreviveu por várias fases de sua autora, mas permaneceu em essência o mesmo: quer provocar, rever paradigmas, discutir ao máximo obras que para tantos já estavam esquecidas, na maioria das vezes sem nunca terem sido comentadas.

E não se assustem: iniciando com "O Padre e a Moça", "Barravento", "Os Cafajestes", "Os Fuzis" e aqui abaixo "A Falecida", nos próximos meses publicarei uma série de pequenos ensaios sobre filmes dos anos 60. São textos que venho escrevendo há algum tempo com muito carinho, e que só agora serão publicados.

Isso não significa que cessaremos a prospecção do cinema popular. Na verdade quero prosseguir desenhando o mosaico de nossa experiência fílmica, aprofundando e retornando às delícias e contradições dos anos 1960, nunca esquecendo os 70, 80, 90, 2000 sempre que for urgente. Ensaios sobre a primeira metade do século XX, a exemplo do inventário crítico do cinema silencioso, também serão publicados em breve.

Beijos e abraços para todos! E vida longa ao filme brasileiro, objeto da minha (de todos os leitores) investigação crítica e amorosa.


PS - Texto novo na Cinética, "A Suprema Felicidade".

quarta-feira, novembro 10, 2010

A Falecida


Desavisadamente, a ponto de imitar as crônicas do século XX – “a alma encantadora das ruas”, ronronaria João do Rio –, um bilhete da loteca se instala na residência dos Hirszman, muito pelo aborrecido vendedor, que importunava o pai de Leon. Batata, batatíssima, o pedaço de papel é premiado e traz fortuna ao lar que se transfere para a Tijuca, santuário da classe média suburbana na Guanabara. Ao aterrissar na praça Saenz Peña, o garoto já formara o gosto pelo cinema, a voragem das sessões duplas na infância, privilegiando Chaplin bem antes da chegada de Eisenstein – que irrompe com mão de ferro e molda o cordão umbilical do mais rubro freqüentador do bar da Líder.

Leon Hirszman ainda experimentaria o fascínio pelas mostras do Museu de Arte Moderna – Moniz Vianna, antípoda do Cinema Novo, organizou-as entre 1958 e 1962 –, flanaria pela casa de Joaquim Pedro de Andrade em Ipanema, pelo Centro Popular de Cultura (CPC) – que ajudou a fundar – da UNE, pela Escola Nacional de Engenharia. Auxiliou o set de “Rio Zona Norte” (1957), direção de Nelson Pereira dos Santos, como quem não quer nada, para absorver o dia-a-dia da entourage. Trabalhou como assistente de direção em “Juventude Sem Amanhã” (1959), chorumela no vácuo das fitas sobre moços cruéis e desregrados – produção de Aécio Andrade, primo de Glauber Rocha. Rodou o primeiro curta, “Pedreira de São Diogo”, capítulo de “Cinco Vezes Favela” (1962), assumidamente sob a aura eisensteiniana, fosse no aspecto visual, fosse no argumento – operários e denuncismo em torno de situação verídica que não conseguiu ser evitada: a demolição do local acabou ocorrendo de fato. “Maioria Absoluta”(1964), outro pipete incendiário, experimentou o banimento de exibições no território nacional até o distante 1980, ao cutucar o analfabetismo – com direito, inclusive, a viagens ao Nordeste.

Através de “A Falecida”(1965), estréia por acaso nos longas-metragens. Assume a função recusada por Glauber Rocha, que optara dirigir “Senhora dos Afogados”, baseado em outra peça também de Nelson Rodrigues, produzida pelo filho Joffre Rodrigues. O projeto terminou inconcluído e esses burros n'água minaram as estripulias de todos que sonhavam colocar na mesma frase Glauber Rocha e Nelson Rodrigues, acompanhados, quiçá, pela cabra vadia.

O convite chegou de maneira inusitada, horas após Leon sofrer um acidente quase fatal de carro – o veículo a poucos metros de se estatelar na Lagoa Rodrigues de Freitas. Enquanto o consertava, encharcado pela chuva, Hirszman escuta a voz do ator Billy Davis, que corria a cidade em frêmito, procurando-o. Billy informa que Glauber havia pessoalmente indicado Leon para Joffre Rodrigues. O rapaz aceita, escolhe a obra que lhe pareceu mais próxima e ancora na tragédia rodrigueana com o passaporte visado por outra república, outro território que não o do bruxo da Aldeia Campista. Apesar de conhecer a entidade “suburbana”, apesar do processo de formação naquela atmosfera, a abordagem de Leon estabeleceu uma dissociação profunda em termos de universos autorais, aspecto que caracterizou irremediavelmente o filme.

Para garimpar o roteiro, convocou Eduardo Coutinho – colega do CPC, diretor do censurado “Cabra Marcado Para Morrer” (1964-1984). No elenco, a protagonista estreante em cinema, Fernanda Montenegro (Zulmira), e atores que apareceriam na rotina do Cinema Novo – Ivan Cândido (Tuninho), Nelson Xavier (Timbira), Joel Barcellos, Hugo Carvana, aparição esporádica de Zé Keti e ponta de José Wilker, outro em atuação inaugural. Música de Radamés Gnatalli, samba de Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardozo, trazem os momentos mais doces de “A Falecida” – acompanhados pelo esforço de Montenegro –, que se tornam desconectos no cômputo geral.

Estabelecer a premissa de que a adaptação seguiu o perfil do diretor em detrimento da peça original não redime de todo “A Falecida”. O filme não alcança a coesão necessária para tanto e alinhava as cenas do teatro sem manter, contudo, alguma pulsão, alguma vida que justifique as neuroses de Zulmira – tísica, apaixonada pela própria morte, frígida que se descobre post-mortem adúltera.

Espreme os cravos das costas do marido (Tuninho), no “tempo em que Pelé era Ademir”. Rivaliza com a prima Glorinha – essa luta de sabres entre mulheres, a que Nelson serviu belamente de cavalo –, gaba-se por sabê-la sem o seio esquerdo. Visita a cartomante, se oferece para o papa-defunto picareta (Timbira). Canta hinos – histérica, em um tal “teofilismo” – e comete frases como a deliciosa “macumba que essa cara me fez”. Mas até aí estamos diante da forma de Nelson Rodrigues. A substância, não se percebe.

Falta cinismo aonde sobra solidão. Falta comichão aonde sobra aceitação, fado, destino. Leon sacou do audiovisual os resquícios do que substancialmente se pode atribuir ao dramaturgo, sem colocar algo no lugar. Daí a revolta do marido, no meio do Maracanã, não empolgar, não criar o vínculo com o público que o entendesse tão apaixonado ou humilhado por falar com Pimentel (Paulo Gracindo) – o bambambam das contravenções, com quem Zulmira lhe traiu. De igual maneira, a moça gozar um temporal – caminho para a morte, piorando-lhe os pulmões – é elemento didático demais para a catarse cinematográfica; não acrescenta no descarrilhar mental da personagem. Até os filhos da cartomante olham para a câmera com a tentativa de seriedade de um Othon Bastos em “São Bernardo” (1972) – de Hirszman, retirado do romance homônimo de Graciliano Ramos. Esporadicamente o talento individual se sobrepõe, a exemplo da fanfarronice do Timbira de Nelson Xavier.

Percebam que a pompa de um “cinema verdade” é contraproducente, pecaminosa. Ainda mais pelo fato de que o objetivo não é atingido nem na linha da morbidez sardônica de Nelson, nem na diatribe de Leon – que tateava uma proposta de realismo “engajado”, quadro excepcional que era do PCB.

Equilibrando-se na ressaca do 1° de abril de 1964, Hirszman emigraria para o Chile em companhia da esposa exilada. Na cordilheira convive com a fina flor dos refugiados – Fernando Henrique Cardoso, um deles –, estuda economia, vive o ocaso da democracia popular janguista. Trabalha febrilmente, no idealismo que serviu como usina de vida. Afirmava ter feito apenas uma concessão ao que supunha “cinema comercial” – “Garota de Ipanema” (1967), que ainda assim funcionou bem mais de deboche condoído, demonstração de desprazer para a felicidade do balneário. Assobiando esse brevíssimo hiato, retoma o plano de ação e nele fixa o vôo de cruzeiro até 1987. A morte precoce, antes de sequer completar 50 anos, deixa-lhe de epitáfio a coerência fundamental de atitudes, articuladas em detalhe, instrumentos que eram à causa.

domingo, novembro 07, 2010

Os Fuzis


Aclimatado ao inferno da burocracia nacional – vide o périplo da censura em “Os Cafajestes” (1962) – Ruy Guerra escolheu novo objeto incendiário para suceder as manhas de Jandir e Vavá. Saem as praias de Cabo Frio e apostam-se as fichas no que deveria ser o documento sobre a miséria agreste, situado in loco no sertão baiano. As cidades de Milagres, Tartaruga e Nova Itarana receberam a equipe de “Os Fuzis” (1963), que chegava calejada pela recente perda do argumentista Miguel Torres, vítima de acidente automobilístico enquanto procurava locações para o filme. A homenagem singela ao colega, dedicando-lhe a obra, pontifica o signo de morte que acompanha a narrativa dentro da tela. Delírios messiânicos, sabedorias no estilo Antônio Conselheiro e flagelados pela seca fazem de “Os Fuzis” uma escuridão do otimismo.

Dramaturgicamente, o roteiro de Ruy – diálogos compartilhados com Torres – instala dois focos separados de conflito: os soldados – Nelson Xavier, Hugo Carvana, Paulo César (ainda sem o “Peréio” consagrador), Ivan Cândido, Leonides Bayer – e os famintos – cujos urros do beato (dublado por Antonio Sampaio, vulgo Antonio Pitanga) servem de liga para a casta, no mais das vezes sem voz. Em meio a tudo, o pivô da reviravolta, Gaúcho – Átila Iório, veterano carioca, ator de Lulu de Barros e Watson Macedo, insolitamente expert na geografia nordestina ao também protagonizar “Vidas Secas” (1963). Gaúcho é o motorista de caminhão, comprador de meninas virgens, que apenas a centésimos do fim sai da linha dúbia e coloca-se como protetor do povoado – quando um jovem (Joel Barcellos) pede no bar um caixote para enterrar o corpo do filho, morto evidentemente pela fome.

Queimado a tiros, a perseguição de Gaúcho mostra o clímax de “Os Fuzis”. Fulminado pelas costas no momento de surto do personagem de Carvana, seu corpo inerte é abraçado por Mário (Nelson Xavier), único a demonstrar uma nesga de humanidade na trama. Envolve-se com a moça (Maria Gladys), revolta-se contra o assassinato de um colono por brincadeira – mas cede, ao relatá-lo como ossos do ofício à família do defunto.

O tédio dos rapazes socados na missão ingrata, o fetiche pelas armas, não deslumbram enquanto elementos per se do enredo. Cenas há que tentam comunicar algo – os soldados cavucando as cuias de comida na frente do cadáver – mas ainda assim percebe-se uma certa estagnação, um certo alheamento no rigor formal e na obsessão pelos close-ups, pelos primeiros planos – que distanciam os rostos dos demais elementos do quadro. Somada à mão pesada da luta de classes, nasce daí a contraposição estática entre aqueles dois focos de conflito que não se permeiam de fato.

Apontamos a luta de classes como marcapasso do filme em razão do engajamento na tese maior, que lhe toma as entranhas: demonstrar o militarismo como intermediação opressiva – os soldados evitam que uma carga de alimentos seja atacada – para o Id fundamental – os pobres sem Estado, falsamente conformados, mas sempre alertas para a tomada de contas através do beato ou da matança sabática de um boi. Pastando desavisadamente entre os locais, as carnes do bicho são arrancadas a fórceps, como numa insurreição. Estaria aí um belo desfecho em termos de plasticidade, logo em seguida traída pela insistência de retomar o arquétipo da oralidade, da ciência popular, na ruminação de um idoso.

Cecil Thiré e Ruy Polanah assistiram a direção, música a cargo de Moacir Santos – ouro negro, que depois se refugiou na Califórnia –, produção de Jarbas Barbosa – irmão do Abelardo, o Chacrinha. Gato escaldado com as intervenções de Jece Valadão em “Os Cafajestes”, Ruy Guerra inseriu uma cláusula contratual que impedia o produtor de retirar cenas sem o seu consentimento. Supôs que conseguisse contornar as investidas mas, obviamente, como os fatos se precipitam às relações jurídicas, a insistência de Barbosa por meses foi tamanha que o filme chegou a ser remontado – desprezando o status final, dado por Ruy e Raimundo Higino –, levando o diretor a exigir que seu nome fosse retirado do produto exibido.

Antes de tomar o caminho do Laboratório Líder – ponto de chegada do cinemanovismo –, “Os Fuzis” teve um encontro sorrateiro com “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964). Ainda às boas, Glauber Rocha deixou bilhete carinhoso no set de Ruy Guerra, sabendo que eram vizinhos de gravações: “Deus e o Diabo pedem passagem”. Dali para a acidez total entres os dois, muitos cáctus correram, muito chão quebrado pelo sol forte, muitas declarações desencontradas na imprensa. Glauber criticou-lhe o barroquismo, apesar de saudar – paternalistamente – o franco processo de abrasileiramento do moçambicano. O tempo rugiu e Glauber adicionou a Ruy outros carinhos, como o de tachá-lo de salazarista, crendo-lhe um dos responsáveis pelas perseguições que dizia sofrer. Propôs-se a varrê-lo do mapa, deletando-o inclusive dos textos que escrevera a respeito. Ruy demorou a entrar nos detalhes da cizânia, mas deixou claro o descontentamento com a postura de Glauber – “profeta alado” foi o epíteto atribuído por Paulo Emílio Salles Gomes –, misturada com a tendência de manipulação que acabava repercutindo no sentido contrário, fazendo do baiano o alvo da manobra.

Egos e pugilato à parte, em 1978 Ruy Guerra realizaria uma continuação para “Os Fuzis”, co-dirigida por Nelson Xavier. “A Queda” ambienta os personagens no Rio de Janeiro, opta pela experiência do proletário em substituição às fardas, naquela vaga de quase-Anistia – ampla, geral e irrestrita –, que inflamava os discursos médios. Enquanto o irmão do Henfil demorava a aterrissar no aeroporto, o cinema brasileiro aninhava-se em outros centros de poder. As fábulas sebastianistas e messiânicas perdiam empatia, cediam espaço à concretude do elemento urbano que cada vez mais pressionava os bastidores do Congresso Nacional.

sexta-feira, novembro 05, 2010

Os Cafajestes


“Os Cafajestes” (1962) varou os corredores do governo de Carlos Lacerda na Guanabara, empolgando o Chefe de Polícia, Newton Marques Cruz, em direção contrária aos méritos artísticos do filme. Convocando uma reunião na Academia Brasileira de Imprensa, Newton amealhou a Associação dos Pais de Família – de que fazia parte –, padres, curiosos ortodoxos em geral, exibiu a horrenda película e saiu de lá com o veredito: deve ser interditada. A sentença repetiu os pareceres da Censura federal, preocupadíssima sobretudo com a “região pubiana” da atriz Norma Bengell, às escâncaras em cena mitológica até para os neófitos do cinema brasileiro.

Na outra ponta do novelo – no âmago da equipe que realizou o projeto –, “Os Cafajestes” sofreu de fogo amigo. Jece Valadão – ator e dono da Magnus Filmes, produtora da obra –, enfiou a tesoura em determinados planos sem consultar o diretor estreante, Ruy Guerra. Ruy levou a questão às vias judiciais, agregando manifestações contrárias. José Carlos Oliveira, entre tulipas de chopp, formulou ojeriza ao ato. Alex Viany – cujas críticas na “Cena Muda” Ruy lia desde garoto em Moçambique, seu local de nascimento – expressou a revolta. Em defesa, Valadão alardeava razões comerciais; no contraponto, Ruy dizia que a poda se deveu às vaias da platéia no close-up final de Valadão, algo insustentável para o narciso.

Rodopiando na saraivada de tiros, o argumento de Ruy e Miguel Torres foi pecaminoso ao extremo. O roteiro de Ruy burilou curras, cigarros de maconha, comprimidos de anfetamina, chantagens e amoralidade por todos os lados – inclusive das garotas, Leda (Norma Bengell, grafada “Benguel” nos letreiros) e Vilma (Lucy Carvalho, estrela do malsinado “Barravento”, 1961, de Glauber Rocha). Leda mantém intercurso com Jandir (Jece) depois da humilhação à milanesa, na praia; Vilma ridiculariza o primo Vavá (Daniel Filho), que a atraiu para o abate mas não consuma o pretendido.

A parceria de Ruy e Torres seria exterminada de maneira trágica, durante o filme seguinte de ambos. Enquanto procurava locações para “Os Fuzis” (1963) – em que elaborou roteiro e argumento –, Miguel Torres sofre acidente de carro na cidade de Cajazeiras. Mal entrado na casa dos 30 anos, ex-marinheiro, já arrebanhara alguma reputação como ator – em “Mandacaru Vermelho” (1961), de Nelson Pereira dos Santos, poster que aliás aparece em cena de “Os Cafajestes”. Ao lado de Ruy, porém, experimentou a posteridade nos clássicos iniciais do diretor. Escrevera, ainda, para ele “O Cavalo de Oxumarê” – que permaneceu inacabado – e para Alex Viany, “Sol sobre a lama” (1962) – uma das rápidas incursões cinematográficas do jornalista.

Enquanto a morte não vinha, Torres flanava na corte de Hugo Carvana – fotógrafo por alguns instantes em “Os Cafajestes”, baioneteiro em “Os Fuzis” –, Daniel Filho, Valadão e Ruy Guerra. Exímios na noite e no bas fond cariocas, alimentavam as lebres, gozavam a plenitude que a turma da Miguel Lemos – antiga sede do ogro Carlos Imperial – bem conhecia.

Quanto à estrutura narrativa do filme, especial atenção para a diva Glauce Rocha, nos primeiros trechos, como prostituta descartada por Jandir. Dali para frente, surge a dupla Jandir e Vavá, categoricamente apresentada como meliantes à procura do golpe perfeito, zunindo no Buick conversível, máquina fotográfica na mão para sacar retratos comprometedores das donzelas. Ouvem-se, claro, ecos de “I Vitelloni”, pitadas de “À Bout de Souffle” – cena praticamente retirada, numa visão do sol –; “Les Cousins” – Vavá tenta a roleta russa, brincadeira que desaguaria por coincidência em filme homônimo de Daniel Filho (1972) –, “Ascenseur pour L'échafaud” – à falta de Moreau, Benguell; à falta de Miles Davis, Luís Bonfá, João Gilberto. O olhar cuidadoso não consegue evitar a constatação dessas e de outras referências, aclimatadas ou não à coloração local.

Independente, porém, da avalanche, em pleno 2010 torna-se impossível lançar vaticínio prepotente, colocando “Os Cafajestes” em posição secundária. O filme engendrou ele próprio seu séquito de influências, apertou o funil das tramas ditas juvenis, contabilizou o apuro na câmera de Tony Rabatoni, além da miragem beatnik de solidão. O plano cortado por Jece levaria a letreiro escrito “a terra é azul”, a imagem se afastando mais e mais de Jandir, através de uma grua, após largar o carro no meio do nada.

Aliás, Jandir na condição de lúmpen – arquétipo que costuma atrair uma docilidade tatibitati –, afirma ter passado fome, ter se espremido em trem superlotado, mas cai tanto quanto na fritura de caráter do entorno. Sem concessões econômico-sociais – aspecto raríssimo em matéria de imaginário autoral –, a salvação passa longe.

Pelo nascimento urbano, contrário a “Os Fuzis”, tem-se uma sucessão de tiradas diferentes das que sóem aparecer no sertão nordestino. Via de regra, os realizadores que pelo agreste passaram foram ávidos em estabelecer uma relação épica, como se tentassem canalizar forças ancestrais brasileiras – a maior delas, a fome. “Os Cafajestes” traz um caudal largo, um ceticismo bronzeado pelas praias de Cabo Frio – aonde rodado –, mas nem por isso ceticismo menor. Inviabilidade, secura de perspectivas, nos rostinhos de garotos e garotas que tomavam coca-cola, uísque e Pervitin.

Figura saltimbanca, Ruy Guerra pavimentou uns quilômetros de avenida para o Cinema Novo, ainda que sua posição perante demais contemporâneos tenha sido problemática, sobretudo pelo choque de deidades – Glauber e Guerra se confrontaram diuturnamente. Egresso do IDHEC, à semelhança de vários colegas, trouxe a herança para conviver na terra estrangeira. Comentários xenófobos, por sua origem africana, eram lançados mas Guerra partiu para uma simbiose com as delícias tupis. Montador em “Esse Mundo é Meu” (1963), de Sérgio Ricardo, co-escritor do samba de mesmo nome, ao lado do irmão de Dib Lufti – outro ícone cinemanovista –, interpretação sacralizada por Elis Regina e Zimbo Trio. Sob perspectiva, tem-se em Ruy Guerra o realizador de espírito agressivo, auto-intitulado intransigente, um dos abre-alas da primavera de opções que banhariam os anos 60 no Brasil.


quarta-feira, novembro 03, 2010

Amada Amante - Uma Batalha Curiosa


"Não faço pornochanchadas e não tenho o direito de julgar quem as faz". Com essa declaração ao jornal Última Hora, em 14 de abril de 1978, o diretor e produtor Cláudio Cunha parecia querer resumir o grande dilema da maioria dos diretores populares nos anos 70. Capturados pelo slogan de “pornochanchadeiros”, filmavam dramas de costumes, comédias, policiais, mas padeciam no saara das acusações: a de usarem sexo como chamariz, atendendo à pressão insuportável de um público que exigia crescentes inserções do belo esporte.

Àquela altura de 78, o novo projeto de Cunha utilizava o título de uma antiga canção de Roberto Carlos, do lp de "Detalhes". Mas, estranhamente, "Amada Amante" (1978) não tinha qualquer coisa a ver com Roberto, nem a história trazia paixão visceral entre os protagonistas.

Por outro lado, Bruno Barreto estava pronto para dar o mesmo nome ao futuro "Amor Bandido" (1979). Comprara os direitos da canção e a colocara em várias cenas de Cristina Aché e Paulo Guarnieri. Quando descobriu a artimanha de Cunha teve um chilique e chamou o colega de "gângster da Boca do Lixo", em reportagem do Última Hora. Cunha devolveria dizendo que “meus filmes são dirigidos por mim, não pelo filho do meu pai”, em clara alusão ao progenitor de Bruno, o produtor Luiz Carlos Barreto, complementando: “Não tenho pai empresário, nem político de cinema”.

Ironia é que, meses depois, a crítica desancaria "Amor Bandido" rebaixando-o a "pornopolicial" – Rubens Ewald Filho, Estado de São Paulo, 14/11/78 – e contextualizando-o exatamente como subproduto de um artificialismo mercantilista, similar aos da Boca. Claro, todos estavam errados: Cunha deveria trocar o nome da sua obra; Barreto não precisaria engrossar o caldo contra Cunha; e "Amor Bandido" sobreviveu para continuar representativo do grande cinema policial brasileiro dos anos 70.

"Amada Amante", diga-se de passagem, não ficou atrás. Partindo do argumento de Benedito Ruy Barbosa, Cunha montou outro de seus intrincados novelos rocambolesco-sociológicos, observando uma família do interior que se muda para o Rio de Janeiro, mais precisamente para a Av. Vieira Souto, em Ipanema.

Instalada no endereço mais nobre da cidade, uma chegada de carro – no estilo "Família Buscapé" – é talvez o maior deslize do casal Augusto (Rogério Fróes) e Tide (Neuza Amaral), além dos filhos Fátima (Sandra Bréa), Marita (Petty Pesce) e Zequinha (Maurício Lessa). Graças, porém, ao tosco passeio vemos as obras do metrô na Av. Presidente Vargas e o prédio do Jornal do Brasil – Av. Brasil, 500 – tilintando de novo.

O resto é a inadaptação e conseqüente degradação familiar. Augusto, gerente de uma fábrica de calçados, redescobre o sexo com a secretária. Fátima – Bréa, linda até de cabeça pra baixo – enamora-se do playboy Tuca (Luiz Gustavo). Já Marita não tarda em arrumar uma companheira lésbica (??!). Observando Bréa e Pesce, uma participação de Carlos Imperial, como voyeur na janela do prédio ao lado.

Cunha sempre teve domínio de certo modelo narrativo, que aqui utiliza de forma satisfatória o bastante para o espectador nunca desgrudar os olhos das idas e vindas entre a praia, o escritório de Augusto e o apartamento. Mas sua principal manipulação é outra: a do imaginário caipira e deslumbrado sobre o Rio. Nem a Globo (ou a Riotur) faria melhor no passeio ao Cristo Redentor, nas panorâmicas da orla e na caracterização simplória dos cariocas como povo liberal e folgazão, em contraponto à "seriedade" e aos princípios hipócritas dos interioranos, que se dissolvem no turbilhão balneário.

Esse choque e atração cultural, retraduzido na briga pelo título, seria bem esmiuçado por Carlos Alberto Mattos em texto na Tribuna da Imprensa, de 31/08/78. Mattos aponta inteligentemente a incompreensão entre Barreto e Cunha espelhada também no olhar caricatural e redutor do paulista sobre a dolce vita carioca.

Em defesa de Cunha note-se que, durante as filmagens, decidiu pelo batismo provisório de "Os Caretas de Copacabana". Quando mudou de idéia, cumpriu os trâmites legais, inclusive informando-se com a Sociedade Brasileira de Autores e Compositores Musicais sobre a possibilidade de uma canção dar nome a filme, sem custo aos produtores.

Como não havia disposição contrária, inscreveu "Amada Amante" na Embrafilme. Barreto tivera idéia parecida e comprara os direitos com o empresário de Roberto Carlos, Marcos Lázaro, provavelmente ao custo de 5% da renda e mais 400 mil cruzeiros, preço cobrado antes a Cunha, que recusara. Mas, ao tentar registrar sua produção, quase finalizada, esbarrou com registro anterior de Cunha, o processo 01330/77, que tirou seu sono.

Cláudio Francisco Cunha realizaria em seguida mais dois filmes no Rio -- "Sábado Alucinante" (1979) e "Profissão Mulher (1982) -- repisando o olhar ingênuo, conflituoso e, por que não dizer?, adorável sobre seu objeto de paixão e oportunismo. A senha para entendermos tal trilogia passa ainda por esquecer qualquer má vontade e preconceito, e aceitarmos que, fazendo cinema com seu próprio dinheiro, Cunha mantinha-se honesto ao público da Av. Ipiranga e dos cinemas do Brasil profundo. Era naquela Ipanema lúdica, burlesca, que o povo das sessões do meio-dia gostava de acreditar, em contraponto ao realismo competente de “Amor Bandido”, criado por Barreto, exímio conhecedor da cidade.