segunda-feira, janeiro 30, 2006

Sexo e Sangue


Para ainda tratar da condição feminina no cinema brasileiro, buscando filmes inusitados, vi e revi "Sexo e Sangue" (1979), comédia realizada com gana de se fazer cinema, no peito e na raça. Muitos peitos, por sinal. Despretensioso, quase trash não fosse sua correção técnica, apresenta uma visão amalucada sobre a luta de classes, misturando prostituição, polícia e orgia.

O diretor, produtor e roteirista Élio Vieira de Araújo, era então casado com a estrela do filme, Olivia Pineschi (Raimunda). Filha de Áureo Pineschi – freqüentador da boemia carioca –, Olivia trabalhou em gêneros diferentes até cair na personagem endemoniada da mulher-coragem, Raimunda. Esteve no cult cinemanovista de Cacá Diegues, "A Grande Cidade", mas logo saiu da onda engajada e aterrissou em blockbusters como "O Trapalhão no Planalto dos Macacos".

"Sexo e Sangue" teve um colega de elenco desse filme, Carlos Kurt – o alemão de olhos azuis, eterno coadjuvante no programa de tv do quarteto de Renato Aragão. Falecido em 2003, no Retiro dos Artistas, Kurt faz um Barão, dono da casa de praia para a qual viajam Raimunda, amigas do trottoir e o suposto "beautiful people" carioca (na verdade uma meia dúzia de figurantes toscos e feiosos), no intuito de sacudir o esqueleto e tomar todas.

Mal sabiam que, em outra parte da cidade, acabava de fugir do presídio uma gangue de delinqüentes, comandada pelo detento "cheio de sabedorias", o Professor. Galo Branco. Paulistão, Miracema, Zecão, Chinês e Betão – o rebelde que depois tomará conta do bando – passam por percalços, enganam a equipe de captura e usam a mesma técnica de Lampião: andar pra frente fingindo pegadas, como se caminhassem pra trás.

A inserção desta armadilha não deixa de ser pitoresca, principalmente porque é explicada em voz alta pelo diretor do presídio, com quem Professor trava um duelo em particular. A inteligência dos dois é contraposta à burrice dos ladrões, brutos em excesso e supostamente monstruosos e sanguinários, apesar do roteiro ser tão frouxo que não nos faz ter um milímetro de receio ou suspense.

"Sexo e Sangue" é, na verdade, o filme de Raimunda e Dr. Jacinto (Wilson Grey). Jacinto é o gambá bêbado, que troca as pernas, mama uísque e, em todos os quadros em que aparece, está perto da piscina da mansão – numa delas xinga o caseiro Herculano, namorado do Professor. Raimunda forma com ele o casal perfeito de iconoclastas, blasfemando contra todos, como se fossem a reserva moral do que acontece ao redor.

Machíssima mas sem perder a feminilidade, Raimunda pega as tamancas, chuta, cospe, dá tapas nos desavisados que completam a rima óbvia que envolve o seu nome. Feia de cara e boa de algo mais, o tipo de personalidade que a psicologia diz ter depressão distímica (mau humor crônico) ela toma gosto em ficar balançando um chicote, objeto de afeição retirado das paredes da casa. Assim, com o chicote e o etil, Raimunda e Jacinto salvam o dia.

Infelizmente, em cena de terror chulé, Jacinto é assassinado por Betão, o que acaba gerando ódio mortal na garota, que já havia mostrado parte do seu talento abrindo a blusa, expondo seus seios monumentais e ordenando que atirassem ("Atira, porra, atira!"), para provarem que eram homens de verdade. A falta de pudor de Raimunda enfeitiça Betão, solapado por chicotadas esporádicas. Após a morte de Jacinto, tal como Geni de Chico Buarque, ela concorda em subir para o quarto com ele, no intuito de salvar a todos, para então iniciar o ritual sinistro em que mata o bandido com estocadas de faca.

A trilha sonora de clássicos do rock – "Sunshine of Your Love", do Cream; "Lay Lady Lay", de Bob Dylan; "The Ballad of John and Yoko", dos Beatles – em ritmo plastificado, com sintetizadores, aumenta o jeitão descontraído e cafona do filme. Mas seria nada, não fosse pela presença da pomba-gira meretriz de Olivia Pineschi, que bate um prato de macarronada e bebe vinho pelo gargalo da garrafa.

Élio Vieira pode ser considerado com boa vontade um precursor do cinema de José Antônio Garcia e Ícaro Martins, tamanho seu desapego a seriedade e seu cuidado na composição da imagem, além das citações debochadas. A cena do trio de meninas conversando de madrugada na Cinelândia, antes e depois dos surtos de Raimunda, é impagável. Não deixa tambem de ter algo de crônica, citando lugares e fatos do Rio de outrora, com uma intimidade que de novo nos remete à Garcia e seus longos diálogos sobre a São Paulo dos anos 80.

"Sexo e Sangue" é o tipo de filme que nos faz ter vontade de conversar com o diretor e perguntar: mas vem cá, o que te passou pela cabeça? Em caso comum no cinema brasileiro, resta a questão se o homem era louco inconsequente ou talento visionário.


quinta-feira, janeiro 26, 2006

Lição de Amor


O cinema brasileiro foi tão pródigo em tratar sobre a mulher e a condição feminina no país que seria impossível esgotarmos o tema. Assim, a intenção é redescobrir filmes, por mais diferentes que possam parecer.

Alberto Salvá, diretor de “Inquietações...”, não contou com mesma estrutura de produção que encontramos em “Lição de Amor” (1976), de Eduardo Escorel. Com o apoio da L.C. Barreto Produções e da Embrafilme – além do próprio Escorel – “Lição de Amor” navega com calma na reconstrução dos costumes e das modas da década de 20 do século passado.

É bom que se diga que essa estabilidade financeira não deve ser usada contra a obra, na medida em que direção e roteiro têm talento de sobra. O requinte da produção apenas facilita a vida do espectador, que submerge no cenário principal com maior tranqüilidade.

Quase todo rodado em interiores, “Lição de Amor” lembra o clássico da antropologia nacional, “História da Vida Privada no Brasil”. Ao invés das fotos em preto-e-branco, estampadas em papel offset, vemos fotos tridimensionais que falam, emocionam-se e permanecem em movimento.

Escorel – formado em Ciências Sociais pela PUC do Rio de Janeiro – deixa bastante clara a abordagem referida acima quando literalmente induz os personagens a posarem para a câmera.

Há portanto um jogo entre ficção – pois o roteiro adapta “Amor Verbo Intransitivo”, romance de Mário de Andrade – e realidade – pois a direção capta a atmosfera de um período histórico através daquelas “fotografias”: cenas congeladas em que observamos cada detalhe do quadro tal como se fosse a chapa de um daguerreótipo.

Por sua vez, a história contada em “Lição...” não é tão simples quanto parece. Senhorita Helga (Lilian Lemmertz) – alemã que vive no Brasil sonhando voltar à Europa – é contratada por um fazendeiro, Souza Costa (Rogério Fróes), pai zeloso de Carlos (Marcos Taquechel), rapaz de 15 anos de idade. Ao saber que muitos dos amigos perderam os filhos em casas de prostituição, jogatinas e drogas, Souza Costa chega à “Fraulein”.

Carlos não fica sabendo do plano, mas Souza Costa e Helga combinam que ela iniciará sexualmente o menino, além de ensinar alemão a ele e à irmã, recebendo em troca a bagatela de oito contos de réis, parte da quantia acalentada para deixar de vez os trópicos. Souza pensa ter dado ao filho uma prostituta de luxo; Helga tem outra profissão de fé:

― Eu vim ensinar o amor como deve ser. Amor sincero, elevado. [...] Hoje isto está se tornando uma necessidade, desde que a filosofia invadiu o terreno do amor. É isso o que eu vim ensinar ao seu filho.

O amor – criação do verbo intransitivo, que tem por complemento o mundo – toma Carlos completamente. Não apenas por Fraulein, mas até pelas irmãzinhas. O garoto fica mais calmo, desprezando a técnica irritante dos (pré-adolescentes) de agredir a todos para chamar atenção a si mesmo.

Helga vive a contradição entre querer os oito contos e entregar-se de corpo e alma para o garoto. A tensão acompanhará a trama até o final quando, claro, o pragmatismo vence e a empregada sai da propriedade dos patrões a bordo de um Ford bigode.

Lillian Lemmertz entende de maneira tão rica a densidade do caráter de Helga que torna-o praticamente impossível de ser assumido por outra atriz. Linda, seca, servil, intransigente, Helga a fez ganhar o Kikito do Festival de Gramado, compensando em milhões de vezes a atuação apagada de Taquechel.

Laura (Irene Ravache), esposa de Souza, também excede na atuação. De uma singeleza incrível, ela e Fróes contam uma outra história de amor. Matrona de olhar comedido, tímido, Laura abraça Carlos com imenso carinho, o mesmo que o pai sente mas refreia, deixando-o visível apenas nas atenções. Some-se a música de Francis Hime, a fotografia de Murilo Salles e “Lição de Amor” conspira ao espírito, deixa o coração leve, aponta a delicadeza como guia.

Após passar grande parte da vida profissional junto às moviolas, Eduardo Escorel deu uma escapada para direção de curtas e documentários – “Lição de Amor” é a sua estréia em longas-metragens.

Montador do Cinema Novo, ora aprendia a sumir – caso do trabalho com Joaquim Pedro de Andrade, em “O Padre E A Moça” –, ora aprendia a gritar, deixar a montagem evidente – “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha.

Fez bem em escolher o caminho poético, co-roteirizando Mário de Andrade ao lado de Eduardo Coutinho. Em arte, ser discreto e singelo muitas vezes funciona melhor do que superstições autorais e badalação fútil. A maior prova disso é que trinta anos depois, “Lição de Amor” ainda conserva o frescor jovem, puro, semelhante ao que um dia houve entre o menino e a mulher.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Inquietações de Uma Mulher Casada


"Inquietações de Uma Mulher Casada" (1979) inaugura aqui no site uma pequena série de filmes brasileiros sobre a condição feminina. Naquela década em que Betty Friedan ajudou a virar o foco da mulher para longe do trinômio casa-marido-filhos, os ecos do feminismo que se faziam ouvir no mundo todo também chegaram ao Brasil, produzindo filmes deliciosos e interessantíssimos.

Em "Inquietações" Luísa (Denise Bandeira) era casada com Luiz Antônio (Otávio Augusto), que era amante de Vera, que era casada com Davi (Jonas Bloch), que não conhecia Marcos (Nuno Leal Maia), ex-namorado de Luísa, que volta para reacender a história.

Escrito e dirigido por Alberto Salvá, ressuscita a “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade em uma espiral “cabeça”. Trata de Luísa, mulher semi-emancipada que a poucos metros dos anos 80 vigiava a empregada doméstica, fazia compras no supermercado e voltava para casa com a obrigação de se perfumar, tomar banho e esperar o marido.

Soa incômodo para as mulheres contemporâneas de hoje, assistir à naturalidade com que esta rotina é detalhada. Mas como em todo bom polaróide de uma época, a vida comezinha de Luísa requer uma imersão nos costumes antigos. E mais: obriga o espectador a entender o que está na superfície e o que está prestes a explodir.

Neste sentido, o close inicial em Denise Bandeira olhando-se no espelho do banheiro é significativo. Dali por diante as suas “inquietações” varridas para debaixo do tapete tomariam a forma de agressões verbais ou físicas, externalizadas para cima da mãe, da sogra ou do esposo. Esse pequeno prefácio visual que dura poucos segundos, sem ser pronunciada uma palavra sequer, explica a solidão da confusa dona-de-casa.

Como conseqüência natural, Salvá quebra a normalidade do cenário de classe média. Luísa surta, inventa soluções implausíveis, despacha a filha no apartamento da avó, pega o carro e segue para o Nordeste com o marido, Luiz Antônio, na melhor linha “adolescentes”.

Mas antes do Nordeste, dão um pulo em Jacarépagua, onde revêem amigos, Vera e Davi, bichos-grilos que propõem troca de casais e banho nus, na piscina do quintal. Lula, o caladão hospedado por lá, excita os pensamentos de Luísa, como um bichinho de estimação que, por ser mais novo, encarna as idealizações da ex-universitária – que largou a faculdade para casar e ter filhos, mas anos depois ainda não se acostumou com a idéia.

Lula, porém, é passageiro. Um flerte, não liberta definitivamente o tédio sexual de Luísa, tarefa para outro princípe encantado, Marcos. Os dois se encontram num apartamento usado como locação para um filme brasileiro – o cineasta e professor da Puc-Rio, Pedro Camargo, interpreta a si mesmo, como diretor do filme que está sendo rodado. Impossível não se sensibilizar com as cenas da filmagem desse filme-dentro-do-filme. Trazem aquela naturalidade de happening, que leva o espectador para dentro do set, à moda de David Neves.

Marcos e Luísa saem dali, bebem umas e outras, conversam, transam, tudo muito sofisticado, na crista da onda, como se esperaria de adultos conscientes e modernos, na era da pílula anticoncepcional.

Bem mais civilizado seria o momento em que Luísa chega em casa e conta para o marido o que aconteceu. De início apenas irritado, aceitando a condição de enganado, Luiz Antônio acaba não suportando o afã ninfomaníaco da mulher e descamba para a grosseria.

Na verdade, Luiz Antônio reage dentro da armadilha criada por Salvá: o que faz é imperdoável -- bater na mulher, mesmo que depois de chifrado --, mas corta naquele momento o ciclo neurótico que nutria o casal. Pinicando, cutucando e querendo palestrar sem ouvir, Luísa também erra egoísticamente. Tal qual Nora de “Casa de Bonecas” – peça de Henrik Ibsen, escrita cem anos antes –, larga a filha pelos cantos, em uma tentativa urgente de encontrar a si mesma. Um princípio de road-movie é ensaiado, mas nem Luísa nem o filme tem condições de ir muito longe.

Mesmo assim, Salvá caminha por um realismo inteligente. Explora as contradições comuns de cidadãos absolutamente comuns. Já em “Um Homem Sem Importância” (1971) e depois em “Menina do Lado” (1987) – para citarmos apenas os exemplos comentados neste site e apontarmos uma tendência –, Salvá consegue o resultado pretendido com vários corpos de vantagem.

Em “Inquietações de Uma Mulher Casada”, a música de Miguel Ortiga aumenta a intensidade do produto final. Idealizado por quem sabe muito, é a prova de que Alberto Salvá desde sempre compreendeu que escrever histórias simples não é apelar para o maniqueísmo de fácil digestão. "Inquietações" pode ser trivial, mas resiste ao olhar atento de quem se interessa pelas batalhas do cotidiano.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

O Corpo Ardente


Eixo da inquietação khouriana – a ponto de ser eleito o filme preferido do diretor, Walter Hugo Khouri – “O Corpo Ardente” (1966) manipula erotismo e esterilidade emocional a partir dos arquétipos de mãe – Márcia (Barbara Laage) – e filho – Roberto (Wilfred Khouri).

Os intérpretes mudariam quinze anos depois, em “Eros, O Deus do Amor” (1981). Dina Sfat no referencial materno, Roberto Maia no papel de Marcelo – alter-ego mais conhecido do realizador paulistano.

Note-se que a denominação diferente não impede que Roberto também seja Marcelo, pois o distanciamento entre ambos se dá no plano cronológico, e não essencial. Roberto vive a infância – como o Hugo de “Amor Estranho Amor”. Marcelo atravessa a adolescência – vide “O Último Êxtase” – e a maturidade – a exemplo de “Eros” e “Eu”.

Há, inclusive, um prolongamento natural entre “Eros” e “O Corpo Ardente”. Se o primeiro consagra o homem de meia-idade, insaciável, vazio, o segundo remete à fonte, ao início de tudo, e aproxima-se da mãe. Márcia é retratada por inteiro; Roberto-Marcelo simplesmente coadjuva.

Casada – com o personagem inominado de Pedro Paulo Hatheyer –, adúltera – com os de Mario Benvenutti e Miguel di Pietro –, traída – pela de Lilian Lemmertz, estreando no cinema –, a mulher de trinta e tantos anos procura refúgio no sítio da família, na região serrana, aonde passava férias quando criança. Leva consigo Roberto, e se a vegetação soporífera ao redor não consegue aplacar o comportamento depressivo, decide subir as montanhas como fazia quando pequena. Volta à infância, arrasta o filho junto e através do passado reconstrói o presente: atinge o cume e ao chegar por lá, consagra o filho como ídolo, colocando-o no trono de pedra. Escolhe para cetro um galho de árvore e, como ornamento, uma pedra oval, na mão esquerda.

― Sua Majestade, o rei das pedras. O rei.
― Vem aqui comigo.
― Não, [olhando para o lado] eu sento aqui. Porque o rei é você.

Percebam a cena como quem se aproxima de um achado gigantesco, o fio da meada. Roberto no topo do nada, no meio da neblina, estabelecendo com a mãe um vínculo que por ser intraduzível, é recontado em imagem.

O amor a que assistimos vem embrulhado na memória, daí a composição do quadro envolver a neblina típica das cordilheiras de Itatiaia, cidade ao sul do Estado do Rio. A memória do Roberto-Marcelo passará a ser reconhecida em outros filmes de Khouri pelo uso desta locação. Aqueles que ainda não associaram o lugar ao fato, basta lembrarem-se das últimas cenas de “Eros”. O trono de pedra expressa o drama edipiano.

Roberto veria, ainda, o cavalo puro sangue, indomável – simbologia evidente para o desejo sexual, compartilhado por mãe e filho, que então percebe o rubor da mãe. O nervosismo do filho retorna nos momentos finais, quando assistem juntos às gravações realizadas numa câmera Super-8, presente do pai. A criada, Glória (Dina Sfat, em seu segundo filme) aparece rapidamente.

O pai em “Eros” vibrava com os instintos priápicos de Marcelo, cedendo-lhe a garçonnière. Aqui em “Corpo Ardente” é ele que ordena a perseguição ao cavalo, a mãe ao volante do carro, o instante do close pela crina e músculos do animal. Em poucos takes “O Corpo Ardente” faz convergir pai, mãe e filho, e deste caldo temos uma espécie de prefácio para as imperfeições futuras de Marcelo.

Aspecto crucial para tanto, a montagem de Mauro Alice excede as expectativas. Através dela o humor de Márcia é percebido por Roberto e pelo público. Um exemplo talvez explique melhor. Depois das férias na casa de campo, Márcia olha para o afresco no fundo de um chafariz, imagem que simula a morte por afogamento da protagonista. Afasta-o com um golpe das mãos sobre a água, as ondinhas balançam a visão do desenho que, mesmo assim, permanece ao fundo.

A própria passagem do campo à cidade é apresentada em “O Corpo Ardente” a partir de descontinuidades temporais, que se alternam em pelo menos cinco momentos. Tempo 1: o affair de Márcia e Benvenutti; tempo 2: a insatisfação de Márcia com Benevenutti; tempo 3: o affair do marido com Lemmertz; tempo 4: a estação em Itatiaia; tempo 5: a festa que inicia, permeia e finaliza o filme. Na festa, há a promessa de um tempo 6, não mostrado à platéia, em que Márcia envolve-se com o novo amante (Pietro).

Mas aliada à ascese artística de Khouri – e que, conforme visto, extrapolou as fronteiras do filme –, existem curiosidades em “O Corpo Ardente” que nem sempre chegam ao conhecimento do público. Como nota de pé de página, podemos citar a toilette da francesa Barbara Laage, confeccionada pelo costureiro Clodovil, em sua fase dândi.

Quanto à mais pitoresca, refere-se ao diretor de produção, David Cardoso – em ponta, ao lado de Sérgio Hingst, como peões. Reza a lenda que o embaixador do Mato Grosso do Sul foi encarregado de tomar conta do alazão. Dentre outras tarefas, teve de acalmá-lo sexualmente – recurso comum em fazendas – com uma loção.

Em “O Corpo Ardente” Khouri ensaiava a criação de uma narrativa fílmica que se irradiaria por anos a fio. Saído da refrega de “Noite Vazia” (1964), em ocasiões posteriores precisou ser explícito, carregando nas cores para arrebanhar a bilheteria e prosseguir. No país que vira as costas aos que não se instalam nos monopólios bancados por incentivos governamentais ou privados, admira-se que existam épicos modernos, como a obra seminal que revisitamos agora. Logo ali, na esquina da eternidade alguém consolidou a paixão do filho pela mãe altiva; presságio de um amor primitivo e traiçoeiro.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Biografia Entrevista - Anselmo Vasconcellos


“Como todo bom filme, terminou em lágrimas”. Com essas palavras, Anselmo Vasconcellos – cinqüenta e três anos de vida e mais de trinta de carreira –, encerrou o longo depoimento que realizamos em seu atual habitat, o Hipódromo Up, onde ensaia e apresenta a peça “Terror no Baixo Gávea”, sucesso absoluto no circuito carioca.

Mais do que uma entrevista, mergulhamos com ele durante duas horas e meia em uma viagem surpreendente. Presença certa na galeria sentimental de qualquer cinéfilo que se preze, Anselmo nos brinda aqui com histórias e revelações incríveis, demonstrando uma rara consciência de seu papel na história dos filmes que ajudou a construir.

A filmografia de Anselmo é tão extensa e complexa, que a melhor forma de entendê-la talvez seja iniciar por um panorama geral. Realizou três filmes com Antonio Calmon, os clássicos “Eu Matei Lúcio Flávio”, “Terror e Êxtase” e “O Torturador”. Com Hugo Carvana atuou em quase todos os filmes do diretor, a ponto de ser sinônimo para o adjetivo “carvaniano”. Além desses e tantos outros, foi a inesquecível Eloína, a coadjuvante mais importante do cinema brasileiro, no clássico “República dos Assassinos”.

Entrevistá-lo não me pareceu tarefa das mais difíceis: tudo em Anselmo é claro e objetivo. Talvez por isso, seus papéis no cinema exalem aquela sensação ímpar de compreensão total do personagem pelo ator, e vice-versa. Em tudo o que fez e faz, Anselmo chama para si a responsabilidade da excelência, que conduz com tranqüilidade e honestidade.

Convido, portanto, os leitores a conhecerem melhor Anselmo Vasconcellos. E admirarem ao final da leitura, não só o gênio, mas o homem por trás da predestinada vocação para a tela grande.


ESTRANHO ENCONTRO – Anselmo, para a gente começar a entender você, fala um pouco das suas origens, das suas primeiras lembranças...

ANSELMO VASCONCELLOS – A minha família, Almeida Carneiro Goulart, tem uma mistura boa de europeus com brasileiros. E uma parte também de origem africana muito forte. Eu cheguei a conhecer uma tia-avó que era negra, uma figura extraordinária. A infância se deu no subúrbio do Rio de Janeiro e na zona rural também, em Bangu, porque uma parte da família morava lá. E isso significava ambientes com grandes proporções geográficas, terrenos baldios. Um ambiente entre o rural e o suburbano. Bonsucesso basicamente, que tinha uma tradição de um lugar bastante interessante em termos culturais. E fui criado brincando em terrenos baldios, em fábricas que havia ali por perto. Por exemplo, uma coisa muito interessante, foi uma fábrica de gesso que havia em frente à casa em que eu morava... Era uma fábrica de imagens. Então as imagens que haviam sido mal formadas ou que não eram vendidas, jogavam em um terreno. E eu brincava muito ali, naquele panteon de imagens. Referências estranhíssimas pra mim, mas eu brincava muito ali...

EE – Você tem irmãos?

AV – Tenho uma irmã, muito mais velha do que eu. Oito anos mais velha. Na realidade sou um temporão, eu sou um acidente na vida dos meus pais. Minha mãe fazia um tratamento para não engravidar e ficou grávida de mim [risos]. E eu nasci em circunstâncias especiais, porque o tratamento que ela fazia na época consistia em coisas pesadas, que poderiam causar algum malefício. Mais estranho ainda foi que a gravidez dela era de gêmeos. Havia eu e mais um outro serzinho lá dentro. E mais estranho ainda é que esse serzinho não se desenvolveu. Ele parou no terceiro ou quarto mês, me conta a minha mãe, e aí o invólucro criado pelo útero cristalizou e não expeliu, isso é que foi estranho. Se tivesse expelido eu tinha dançado, enfim, a natureza tramou ali uma consistência de proteção e eu nasci com uma junta médica, para observar como era aquilo. Ou seja, eu já nasci em um anfiteatro, já nasci com público... [risos]

EE – E sua infância?

AV – Por conta disso, na minha infância acho que tive sempre fascinação pelo duplo. Talvez ainda seja algo presente na minha vida. Sempre queria a mesma coisa duplicada. Devia ser alguma referência inconsciente, que eu absorvi. E brinquei muito. Soltei pipa, inventei brinquedo. Eu tinha um laboratório na minha casa, e tinha visto um filme muito famoso, que era o “Doutor Mabuse”... E a minha fascinação era o mundo científico, então eu tinha um laboratório. Pedi para o meu pai fazer um guarda-pó pra mim e estava escrito lá: “Doutor Mabuse” [risos]. Então era um cientista louco [risos]. Com pouquíssimos anos de idade. Tinha oito, nove, dez anos...

EE – Isso prosseguiu durante a adolescência?

AV – Muitos anos. Essa coisa da ciência prosseguiu durante muitos anos. E minha irmã era uma artista plástica fantástica. Na época, ser normalista era a grande meta, ela estudava no Instituto de Educação e aquelas coisas que ela aprendia, aqueles trabalhos manuais, eu achava o máximo. Então eu trabalhava muito com as mãos e com a imaginação. E meu pai também. Meu pai era da classe dos alfaiates, que é muito importante na história do Rio de Janeiro. Porque era uma bancada comunista. A carteira de trabalho do meu pai foi expedida pelo Partido Comunista Brasileiro, eu tenho guardada até hoje. E foram esses artesãos que pela primeira vez projetaram Charles Chaplin no Brasil, no Rio de Janeiro. E eu fui ver, não a inauguração, porque eu não teria idade pra isso. Mas eu vi muito Chaplin, através desse poeirinha que eles tinham, que era um projetor Pathé. Não sei se era 18 milímetros ou 16 milímetros, 35 não era com certeza. E uma salinha simples assim, onde era projetado, lá em Bonsucesso...

EE – O cinema surgiu aí pra você.

AV – O cinema surgiu aí. E na escola em que eu estudava, tinha uma coisa maravilhosa. Todas as quartas-feiras a escola ia ao cinema, para ver filmes nacionais. Então toda quarta-feira aquela turma de meninos ia visitar o Cinema Paraíso, na Praça das Nações. Quando eu falo isso hoje, por causa do “Cinema Paradiso” as pessoas acham que eu estou inventando [risos]. Mas não é não. Havia um Cinema Paraíso, onde hoje é uma universidade. E nós assistíamos então àquelas comédias. Atlântida, Mazzaropi, os filmes nacionais. Comecei a ver Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade, Wilson Grey. Aquela infinidade de atores brasileiros e me identifiquei demais com eles. Lembro que imediatamente eu tive uma osmose com o jeito deles falarem, com o jeito deles andarem, com o jeito deles comunicarem e brincava com isso sempre, o tempo todo. Gostava de imitar.

EE – E a adolescência?

AV – Nós saímos de Bonsucesso e fomos para a Tijuca. Fundei um grupo de motoqueiros, porque tinha assistido no cinema ao “Wild One”, do Marlon Brando, e fiquei louco. A gente ia para o Café Palheta, que era a Broadway da Tijuca, e o Cinema Metro, que era fantástico, todo art decó. E aprontava um mundo de sacanagens ali. Eu soltei uma galinha dentro do Cinema Metro [risos]. Botava sal de frutas no açucareiro, quer dizer, quando o cara botava no café fazia shwrrrr [imita o ruído]. Tudo isso era um processo meio assim, veio daquele filme, veio um comportamento anárquico. E isso me trouxe um monte de problemas, e esses problemas passaram a ser pontes de reflexão para mim e para minha família... Eu passei a ser um aluno terrível. Lembro de ter feito a escola inteira dar uma gargalhada em uníssono no hasteamento de bandeira, aquela coisa de tocar o hino. E eles pra segurarem a minha onda cometeram um erro. Pediram para eu hastear a bandeira. E aí no que eu fui hastear a bandeira, fiz um trejeito entre Oscarito e Zé Trindade que matou a galera de rir.

EE – Fala mais desse período de formação...

AV – Um dia minha irmã me deu um livro que mudou a minha vida, um livro do A. S. Neill, chamado “Liberdade Sem Medo”. E aí eu me embasei, quer dizer, aquela teatralidade, aquele excentricidade comportamental adquirida por essas vias todas, ganhou uma ideologia, ganhou um suporte ideológico, técnico. Comecei a escrever artigos contra o chamado ensino padronizado ao qual eu estava submetido. Fundei um jornal, escrevia isso. E fui contactado, por causa desse jornal, pelo movimento estudantil secundário, que estava começando a surgir, e comecei a entrar no movimento estudantil, comecei a ter uma consciência política. Eu já ouvia muita coisa dos meus pais, meu pai sobretudo, que era um operário consciente. E comecei a ter um suporte ideológico muito forte, muito bacana. Cheguei a participar daquela porradaria que teve na 28 de Setembro, com a polícia, com o Exército.

EE – Aí a gente já está em que ano?

AV – Já pulei pra 67, 68. Acabei expulso do colégio, fiquei sem o direito de estudar num colégio público. Por causa dessas coisas, essas transgressões todas. E minha irmã conseguiu uma bolsa no São Bento, ela era professora do São Bento, que foi assim, num ano eu tive que recuperar tudo. E fui tentar a faculdade e queria fazer medicina. Mas um dia entrou uma professora na sala de aula, e era uma professora de literatura... Era obrigatório naquela época fazer literatura também, ou redação, não me lembro direito. E eu me apaixonei por ela. Imediatamente. Eu olhei pra ela, meu coração zum, pulou. E ela tinha falado que gostaria que a gente fosse ao teatro, então eu parei ela, disse: “Professora”, ela respondeu “O que foi?”. Eu olhei nos olhos dela, na boca dela, por um segundo eu percorri o corpo dela inteiro, e o que veio na minha cabeça foi “Eu faço teatro”. Ela falou “É? Quando é que eu posso ver?”. Era uma segunda-feira, eu falei “Sexta-feira tá bom?”. Ela falou, “Tá ótimo”. Aí voltei pra sala de aula, reuni minha gangue, falei “Olha, nós vamos fazer teatro”. E voltando pra casa, eu pegava um ônibus, um 434, acho, e no ônibus escrevi uma peça ...

EE – Qual era o nome da peça?

AV – Chamava-se “O Auto da Expiação”, com “x”. Escrevi essa peça, basicamente um monólogo. Ensaiei com os meninos e no que eu comecei a fazer, comecei a perceber que aquilo ali era uma coisa muito parecida com o que eu tinha feito a infância inteira, que era criar coisas. Criar ambientes. Aí eu me lembrei da fábrica de imagens, fiz umas imagens. Lembrei também de uma fábrica de fogos que eu visitava, aí bolei uns fogos que explodiram durante o espetáculo, fiz uma luz, fiz um figurino.

EE – E a professora?

AV – Eu vi que depois da apresentação, que foi um sucesso, a professora estava falando com os meus primos, com a minha família. Fui guardar as coisas, trocar de roupa e quando eu voltei, eles estavam meio que em reunião. E um primo, que era um cara muito bacana na minha vida, o Rapuano, ele virou e disse assim: “Anselmo, você não tem que fazer medicina não”. Só falou isso. “Você não tem que fazer medicina não”. E aí aquilo foi um insight, um marco na minha vida, entende? Anos depois achei novamente esse texto e por incrível que pareça ele é um auto português, com as características todas de um auto português. Devia estar no meu inconsciente, nos meus arquétipos, na minha memória afetiva. E aquela paixão pela professora abriu essa comporta, abriu esse hard disk e captou isso. E depois foi uma sucessão de fatos acontecendo e que me encaminharam para a coisa de ator. Mas foi assim, foi um acidente...

EE – E como você chegou em um set de filmagem, como ator?

AV – Foi quando eu fazia uma peça, a minha primeira peça profissional, “Calabar”, que não estreou porque foi proibida pela censura, em 1973. Um dos atores, José Roberto Mendes, que hoje é um diretor, trabalha há anos na TVE. Ele era louco por cinema e tinha uma câmera de 16 milímetros. E o José Roberto teve uma idéia genial. Já que ele não podia fazer um filme, ele decidiu fazer o trailer do filme [risos]. Que era um spot, uma coisa de quatro minutos, de cinco minutos. Chamava-se “Os Revoltados”. Então era só a apresentação dos personagens. Foi a minha primeira experiência com cinema, com um set de filmagem, com iluminação e com uma câmera. E os atores eram atores profissionais, alguns já com uma história de cinema, como por exemplo o Ankito, que foi um ícone do cinema brasileiro. E essa foi a minha estréia em cinema.

EE – E a estréia profissional em cinema?

AV – A estréia profissional também foi resultado de uma participação minha, num espetáculo fantástico chamado “O Último Carro”, que foi a última produção do Grupo Opinião, do João das Neves. Um espetáculo que marcou uma época e que todos os diretores de cinema foram ver. Jabor, Carvana, John Herbert, Leon Hirzsman. O Leon chegou a filmar o espetáculo, inclusive. Todos, todos. Vivia apinhado de gente ali. E eu era um destaque no espetáculo, uma figura que chamava a atenção. E então o Carvana e o Emiliano Ribeiro se apaixonaram pela figura que eu era, que estava ali. Chamaram para fazer o “Se Segura, Malandro!”, que foi o meu primeiro filme profissional. Com salário, carteira assinada, papel. Foi uma delícia.

EE – Foi o início da parceira com o Hugo Carvana, que depois viria a se repetir.

AV – Eu fiz todos os filmes dele, com exceção de “Vai Trabalhar Vagabundo” 1 e 2. Os outros todos eu fiz. E no outro dia, o Canal Brasil colocou uma coisa lá que eu achei emocionante. Falou que eu era uma figura “carvaniana” [risos].

EE – E as filmagens?

AV – O “Se Segura” eu me lembro que a gente filmou numa favela. Na própria favela que aparece no filme. E a coisa que mais me impressionava era a maneira como a gente interferia naquele cotidiano e como que a favela sumia e nós virávamos os personagens da favela. E o que eu me lembro mais mesmo era de um documentário, de um making of que estava sendo feito pelo Sergio Rezende e a Mariza Leão, e eles me perguntaram qual era a minha sensação, de um ator de teatro que estava começando a fazer cinema. E pelas instruções que eu recebia do Carvana e da equipe, dos seus auxiliares, dos assistentes, do fotógrafo e tudo mais, eu tinha percebido o seguinte: que no teatro a minha instrução era representar pra quadragésima fileira do teatro, então eu tinha que expandir a minha representação lá pra quadragésima fileira. E que no cinema, não. No cinema eu tinha só que sentir, porque tinha uma câmera captando. Então essa diferença entre expansão e recolhimento foi uma coisa que eu aprendi muito via o Carvana, muito via aquelas pessoas que fizeram o “Se Segura, Malandro!”.

EE – E daquele papel inicial, na favela do “Se Segura”, você engatou outros.

AV – Na realidade, tudo acontecia em seqüência, porque era a época da Embrafilme. Havia um produção constante no cinema. Eu saí do “Se Segura, Malandro!”, e meu segundo filme foi com o Paulo Porto, chamado “Fim de Festa”. E o Paulo Porto era muito ligado ao Jabor, o Jabor estava começando a fazer o “Tudo Bem”, ele tinha visto “O Último Carro”, as coisas se juntaram e o Jabor me deu aquele fantástico personagem, que é o Washington, do “Tudo Bem”, com aquele super elenco.

EE – Ele alugou o apartamento retratado no filme?

AV – Ele alugou o apartamento, colocou o elenco todo lá e mesmo quando você não filmava ele pedia pra você ir para lá, para ter uma convivência artística ali. Então passei semanas convivendo com a Fernanda Montenegro, com o Paulo Gracindo, com aqueles atores maravilhosos, alguns que estavam surgindo, como o Luiz Fernando Guimarães, a Regina Casé. Enfim, formou-se uma família. E foi um trabalho extraordinário, eu considero este filme uma obra-prima. Um corte cirúrgico na sociedade, na classe média brasileira e isso me preparou muito. Depois veio o Denoy de Oliveira, um cineasta de São Paulo, já falecido, e que queria o Carvana pra fazer um papel que eu acabei fazendo. O Carvana não pôde fazer. “Bom, se não tem o Carvana, tem o Anselmo”. E esse outro filme também me deu um prêmio. E eu faço basicamente uma interpretação carvaniana. Chama-se “O Amigo do Super-Homem”.

EE – De 78, não é?

AV – Acho que sim, não me lembro. Depois houve uma explosão do curta-metragem. Então todas as pessoas que eu conheci, que eram assistentes, como o José Joffily, o Emiliano Ribeiro e tantos outros, o próprio Sergio Rezende, a Mariza Leão, o Jorge Durán, começaram a fazer curtas. E eu era a novidade do cinema brasileiro. Quando os filmes estrearam, eles estrearam em seqüência. Então eu me lembro nitidamente disso, de um dia eu passar pelo Flamengo, tinha aquele cinema duplo ali, e tinha dois filmes diferentes comigo, eu participava dos dois. Fui filmando em seqüência e eles foram estreando em seqüência.

EE – Tudo isso preparando terreno para um clássico belíssimo do cinema policial brasileiro, o “República dos Assassinos”. Como é que chegou pra você o papel da Eloína?

AV – É, então, os filmes tinham estreado e duas pessoas me perceberam de uma maneira muito forte. A primeira foi a Graça Mota, que falou para o Daniel Filho. “Olha, vi um ator, em dois ou três filmes, você tem que levar pra televisão.” E outra foi o Carlos Prieto, que era um diretor de arte, figurinista fantástico, irmão da Adriana Prieto, e que estava no “República dos Assassinos”, dirigido pelo Miguel Faria Jr. E eles precisavam de um jovem ator para fazer o par da Eloína, o homem da Eloína, que por sua vez era um travesti que arquitetava a vingança contra o assassino desse namorado. O Prieto ambicionava muito ser a Eloína. A gente estava na praia, ele me deu o toque. “Anselmo, você tem que fazer esse filme porque eu acho que você tem a sensibilidade, você tem uma masculinidade, você tem uma coisa gostosa. Vai ficar lindo”. Aí o Miguel me chamou, fui lá, fui contratado para fazer o Carlos Alberto dos Santos, papel que o Tonico Pereira acabou fazendo. Saí da produtora feliz da vida. Era um filme com um bom orçamento, papel legal, mais um filme. E fui pra praia, encontrar a mulher com quem eu vivia na época, e eu tava apaixonado pra caramba. E chego na praia...

EE – Pode falar o nome dela ou não?

AV – É Paula. A famosa Paula. E aí chego na praia conversando com o Jorginho Fernando. “E aí?”, “Pintou um filme maravilhoso”, “E o que você vai fazer?”, Eu contei: “É a história de um travesti, que tem um namorado e esse namorado vai morrer, e ela aí empreende toda uma vingança, toda uma revanche contra o cara que matou. É uma história lindíssima, é uma história de amor entre um travesti e um assaltante de carros”. Aí o Jorginho virou pra mim e disse: “Você vai fazer o travesti, não é?” Não consegui dizer para ele que não. Aí a Paula olhou e disse “Ah, você é ator pra fazer isso. Você tem que fazer isso, é a sua cara fazer isso.” Olhei pro outro lado da rua, tinha um orelhão, eu estava com o contratinho, a cópia do contratinho na mão, o telefone da produtora. Falei, “ferrou”. Liguei para a produtora, atendeu o Bigode, o Luiz Carlos Lacerda, que era o produtor executivo do filme. “Bigode, quem vai fazer o travesti?”, “Esse é o problema. A gente já entrevistou aqui vários travestis, eles são muito over pro papel, que é enorme. E estamos em busca de um ator, mas tá um perigo para qualquer ator que vá fazer isso, vai ficar marcado.”, “Eu posso fazer um teste?” “O quê? Você já tá contratado pra fazer o Carlos”. Eu falei: “Pois é, já estou nesse papel, mas eu posso fazer um teste pro travesti?”, “Mas, cara, você tá de bigode, o Miguel não quer que você tire o bigode”. Eu usava um bigode, marcava muito aquela época [risos]. “Mas tudo bem, eu vou falar com o Miguel, se ele topar...” E o Miguel topou fazer um teste e foi engraçadíssimo. O Carlinhos fez uma maquiagem lindíssima, me botou uma peruca e eu estava de bigode [risos].

EE – Essa filmagem se perdeu, existe? Tipo um extra pro dvd...

AV – Seria maravilhoso, seria maravilhoso. Mas foi filmado com película, eu me lembro, com câmera. E aí o Miguel, pra escapar do bigode, mandou a câmera fechar num close-up, num super close-up. Quando ele viu no copião, viu que eu tinha um olhar. E aí ele me deu o papel. Comecei a ir não sei onde fazer laboratório, de isso e daquilo outro e sempre isso. E veio o carnaval e eu esqueci um pouco, estava vivendo aquele grande amor. De repente toca o telefone. “Olha, amanhã você filma. Houve uma mudança aqui na filmagem, amanhã você tem que filmar. Então vai passar um carro aí pra te pegar. O Carlinhos quer que você faça depilação no corpo, para você ficar sem pêlo. Você vai aparecer de calcinha, com um topzinho, ele quer fazer também as suas sobrancelhas e quer pintar o seu cabelo.” Caceta! E aí foram essas etapas. Eu pintei o cabelo, fiz a sobrancelha e aí fui pra depilação. Quando eu fui pra depilação, me lembro como se fosse hoje, era uma traveca que fazia a depilação e quando ela soube que era eu que ia fazer o filme... O papel estava sendo ambicionado por todos os travestis. A Eloína... A Eloína existe. Existe um travesti famosérrimo chamado Eloína. E aí a bicha me olhou assim, e aí ela passava cera quente, puxava... uahhhhh.... quer dizer, na verdade eu passei por uma tortura ali [risos].

EE – Chegou a dar briga?

AV – Não, não. Quando terminou ela se tocou que eu não reclamei, não falei nada. E ela também não falava nada. Aí eu saí de lá, e aquela coisa me pinicando, sabe assim? Lembro que isso foi em Copacabana, eu vi o mar, disse “Vou dar um mergulho no mar”. Do jeito que eu tava. Parei o carro e naquela época a gente usava uma tanguinha zazá. Eu entrei com aquela tanguinha, aquela cuequinha, e dei um mergulho no mar. Quando eu dei um mergulho, foi um choque. Porque os poros estavam todos desprotegidos, falta de pêlo, sensibilidade. E aquilo veio uma sensação, uma sensação muito feminina. Aquela sensação com o mar foi o ponto de partida. Fui pro set de filmagem, fazer um take. Era eu na cama, uma cena que aparece no meio do filme. Eu deitado, assistindo à televisão. Me lembro do Miguel dizer “Nossa, que coxa, que pernas” [risos]. Ele angulou uma câmera de tal jeito que ficou perfeito. E na hora de eu me vestir o Prieto disse “Bota essa calcinha aqui.” Eu botei a calcinha e não gostei. Não me senti bem com aquela calcinha. E a gente usava aquelas mochilas na época, não era mochila, eram umas bolsas nordestinas. Fui pegar um cigarro, alguma coisa assim, e aí quando eu fui pegar tinha a calcinha da Paula dentro [risos]. E eu achei que aquilo era um sinal, sabe, inconscientemente eu vesti a calcinha da Paula. Imediatamente a Paula... sabe... o amor, quando você ama uma pessoa você fica parecido com ela, você apreende ela, você pega o jeito dela. E aí eu deitei naquela cama como eu via aquela mulher deitar, como eu via, como eu observava dentro de mim. Então naquele momento ali não tinha nem como representar, não tinha nem lido ainda.

EE – Como eram os ensaios, a construção dos personagens?

AV – A gente não fazia leitura naquela época, nada. Era uma coisa que era feita na hora mesmo. E o personagem surgiu assim. Surgiu de sensações, das mulheres que eu conheci, que eu amei, que eu observei. E engraçado que o Miguel pedia para eu externar mais o personagem. Não quero usar a palavra desmunhecar porque não foi isso que ele me pediu, mas ele queria uma coisa mais pra fora, mais evidente. E eu não consegui fazer, porque a sensação interna era muito forte. E quando eu me via, o Prieto me maquiava, eu ficava absolutamente igual à minha irmã. Que aí, voltando em tudo isso que eu te falei, oito anos de diferença, a minha irmã já era uma mulher feita e eu era um pré-adolescente. Então eu ficava vendo aquela mulher se vestir, tomar banho, ir à praia. Até mesmo pela distância, pela dificuldade de diálogo com ela por causa da idade, era tudo de observação, não era de aproximação. Então isso ficou muito forte em mim, não coloquei muito o personagem pra fora, eu coloquei o personagem todo pra dentro. Por isso que ele é muito bonito. Por isso que ele é muito intenso, porque ele é todo insight.

EE – Acho que esse foi o diferencial.

AV – Não tem um minutinho que eu faça uma gracinha pra fora, pra conseguir um efeito. Pelo contrário, eu não desgrudo da sensação, da reação com a minha própria anima, com o meu próprio inconsciente feminino. Então isso foi muito bonito. Porque é o trabalho de um ator que consegue colocar para fora sua própria feminilidade. Como todos os homens têm e reprimem. Somos treinados, adestrados pra isso. Muita gente pensa que eu sou gay, bi ou sei lá o quê [risos], e não sou. Por circunstâncias, não sou [risos]. Heterossexual absolutamente convicto e testado. É o surpreendente para o filme. Como que dois atores famosos por serem heterossexuais, se entregaram tanto aos seus personagens. E a segunda cena que eu filmei foi com o Tonico Pereira...

EE – Que é aquela cena da pensão?

AV – É, o início do filme. Eu comecei pelo meio e depois voltei pro início. E o Miguel, durante aquela cena que a gente foi para o terraço, pediu pra gente dançar, ligaram o rádio, e alguém ficou cantando “Ronda”, não me lembro quem foi [Cantando trecho da música:] “De noite, eu rondo a cidade, a te procurar.” Começamos a dançar e o Tonico falou baixinho pra mim: “A gente tem que fazer isso direito, Anselmo”. E aí o Miguel disse: “Beija.” [pausa] E eu beijei. E o Tonico beijou também. E foi a primeira vez que eu beijei um homem dessa maneira. E foi um beijo, um beijo mesmo [risos]. Quando eles viram o copião então, eles falaram “Ninguém incomoda o Anselmo, deixa o Anselmo exalar esse personagem”. Aí o personagem foi ganhando vida própria. Tanto é que ele não matava...

EE – ... Não matava?

AV – Não, no roteiro ele não matava. Isso foi uma conquista do personagem.

EE – E do ator também.

AV – É... Hoje, aos cinqüenta e três anos de idade e trinta e tantos de carreira, acho que determinados trabalhos que você faz como ator, não são propriamente trabalhos de ator. No sentido da construção física, milimétrica, consciente, lógica, ideológica, técnica. Tem trabalhos que transcendem um pouco isso. É como se você conseguisse realmente entrar numa quarta dimensão. Eu não estou aqui tentando vender nenhum peixe “mágico” não. Mas tem isso sim. A Eloína foi um mergulho dentro de um inconsciente. E ali está a base de todo o meu trabalho que viria depois. Engraçado que a Eloína é coadjuvante no filme, ela não é protagonista, e eu ganhava prêmio de melhor ator. Nunca ganhei um prêmio com a Eloína de melhor coadjuvante, sempre foi de melhor ator, inclusive fora do Brasil. Então eu penso sempre, como que eu consegui fazer isso com tão pouco, com tão pouca idade e sem escolaridade, sem formação, sem nada. Eu vejo que trabalhei com a disponibilidade, eu trabalhei com a despreparação, eu trabalhei com a entrega. Isso passou a ser a minha técnica de trabalho. Eu não subordino a minha atuação às técnicas que eu adquiri ao longo da carreira ou às coisas que eu estudei depois. Não. Eu começo sempre do zero. A experiência não significa nada, pelo contrário. Como diz o Pedro Nava, “a experiência é um farol virado para trás”. Ilumina o que já passou.

EE – E é interessante ver um ator como o Tarcísio Meira, o João Coragem da tv, fazer aquela cena de sexo com a Eloína. Houve algum mal estar na hora ou a atmosfera transcendia?

AV – Pelo contrário. Exatamente isso que você tocou. Parecia que inconscientemente, ou conscientemente... Eu, inconscientemente total [risos]. Mas aquelas pessoas, com muito mais consciência, muito mais anos de vida, eles sabiam. O Tarcisão, que é um baratão de pessoa, também. Todo mundo estava sacando que tinham uma coisa importante na mão.

EE – Mais um exemplo de filme para ser redescoberto.

AV – Com certeza. Eu estive agora no Rio Grande do Sul, fui homenageado pelo FLO, Festival do Livre Olhar, e houve a exibição do “República”, com comentários meus. E a garotada de lá, como vocês, tem uma memória crítica do cinema nacional. Uma garotada de 18, 19, 20, 21 anos, falando sobre o que esse filme significa pra eles. Como que esse filme fala da realidade brasileira, dessa conjuntura polícia-bandido-política, de uma maneira extraordinária. E até me conscientizei de uma coisa que eu não tinha percebido até então. Porque quando eu li o panfleto do Festival, estava escrito “Anselmo Vasconcellos, um ícone do Cinema Marginal Brasileiro”. Eu não sabia que eu era isso [risos]. Nunca pensei sobre isso. Porque eu transitei. “Eles Não Usam Black-Tie”, que é Leão de Ouro em Veneza, ao “Segredo da Múmia”, que é isso, é um cinema marginal. Eu transitei nisso aí sem pensar muito. Mas, de repente, essas coisas todas. A Eloína, o Minhoquinha do “Terror e Êxtase”...

EE – ... O Pola Negri, do “Perdoa-me Por Me Traíres”...

AV – O Pola Negri. São iconoclastas. A minha maneira de representar, que é muito particular, muito pessoal. Meus erros. Lembrei de uma coisa agora, eu ia falar de como os meus erros geraram qualidades por generosidade dos outros. Porque eu aprendi, Carvana me dizia uma coisa assim, “Não pára se você errar, porque a gente aproveita e a gente não perde a mágica de estar rodando. Então erra, respira e continua”. No “República”, na cena final, quando eu estou falando com o Tarcísio, convidando ele pro barco, eu dou uma rateada. É lindo, porque o personagem está nervoso, o personagem está em pânico e é bárbaro. E o Miguel manteve. É lindo, porque é normal, é humano. Quer dizer, eu aprendi isso muito cedo.

EE – Passando pro “Eu Matei Lúcio Flávio”, acho que foi o seu primeiro trabalho com o Calmon, não é?

AV – Exatamente, foi um encontro com o Calmon, que é uma figura extraordinária. Ele me trouxe uma sofisticação, uma coisa nova-iorquina, freak, underground, um deboche sofisticado. E o Calmon estava ali com o Jece Valadão para fazer uma pequena série de filmes. O Jece Valadão sempre foi um produtor extraordinário, não podemos nos esquecer disso. Embora ele seja uma figura dúbia, num panorama geral, ele é um realizador extraordinário, na minha opinião e na opinião de qualquer pessoa que conheça cinema brasileiro. E o Jece estava produzindo o “Eu matei Lúcio Flávio” sob a concordância e as bençãos do próprio Mariel. Mariel deu pra ele aquele medalhão que ele usa no filme, é o medalhão do Mariel. Tinha uma força bárbara. E o Calmon me chamou para fazer aquele personagem. É um filme que tem quatro leituras no mínimo. E trabalhos extraordinários, como por exemplo o da Monique Lafond. Então foi uma delícia entrar na Magnus Filmes e fazer um filme de estúdio. Dali eu faria três filmes. “Eu Matei Lúcio Flávio”, “O Torturador”, também produção do Jece Valadão, e um curta genial chamado “Elogio Histérico da Razão”, que foi um dos últimos textos do Nelson Rodrigues, filmado pelo sobrinho dele, que é o Alberto Magno, filho do Jece Valadão. Então fiquei dentro de estúdio, e filmar em estúdio é muito interessante. Porque é um trabalho mais de câmera. Câmera... no sentido de “câmara”, de você estar dentro de um ambiente muito propício para filme.

EE – Já no “Terror e Êxtase”, como foi chegar naquela cena brutal em que o Minhoquinha estupra os personagens do André di Biasi e da Denise Dummont?

AV – Ali estava reunido um tripé extraordinário, que era o Calmon, novamente o Carlinhos Prieto, eu, o Bonfim, a Denise Dummont, o André di Biasi, que são pessoas muito próximas, com quem eu vinha filmando muito. No dia dessa cena, que era uma noturna, a gente tinha uma diurna que era a cena em que começa uma crise de sensibilidade do personagem do Bonfim, do Mil e Um, em relação à seqüestrada, que é a Denise Dummont, um caso dele, com quem ele tinha uma relação amorosa. Ele está em silêncio olhando para ela, não sabe o que fazer, ainda há um vestígio de paixão, mas ele tem um trauma muito maior. Ele está executando uma tarefa, ele tem que separar essas duas coisas, e o Minhoquinha é a arma dele. É a faca mais pontiaguda que ele tem. E eu não tinha texto nenhum pra falar naquela cena e o Calmon botou uma música, que por acaso era a Rita Lee. Não me lembro agora, mas era uma Rita Lee. Até tem um poster da Rita Lee, que é um propósito do Calmon, mais uma quarta leitura do Calmon. E aí no ensaio eu comecei a dançar. Na época eu estava ensaiando jazz, com o Lenny Dale, porque ia fazer o “Ciranda Cirandinha” na Globo. Estava estourando aquela coisa dos “Embalos de Sábado à Noite”, e eu ia fazer um cara que dançava. Então eu estava com o corpo todo trabalhadinho para dançar e resolvi dançar, o Calmon achou genial. Aquilo ele manteve no filme. E sem que eu soubesse, aquela atitude corporal me despreparou para quando chegou a noturna. Despreparou pra encarar aquela cena terrível com o André di Biasi e a Denise Dummont, horripilante, que foi barra pesada de fazer, porque são duas pessoas queridas virando absolutamente contra você e você contra elas. Foi muito difícil de fazer, mas a gente fez de primeira. Foi uma coisa assim que... Calmon sabe filmar esse tipo de coisa, então não foi assim doloroso de ter que encarar aquilo muitas vezes. Foi uma coisa que foi um surto. Vai e faz, entende?

EE – E aí no “Amante Latino”, você foi para um filme mais pitoresco, naquela loucura toda da “Magalmania”, de 79...

AV – É o encontro também com outra grande figura, o Pedro Carlos Rovai, que percebeu esse ícone de latinidade, de almas, de explosão, de arquétipo, que é o Sidney Magal. Então o Rovai, que é um visionário na minha opinião, ele percebeu a questão do Magal. E nós fizemos esse filme, que é tipo Roberto Carlos, na linha Roberto Farias, e que teve a sua razão de ser. Foi muito engraçado, porque eu tenho uma certa semelhança com o Magal. Inclusive no teatro já brinquei de fazer o Sidney Magal, com muito resultado. E aí eu tive que ficar diferente dele, pra representar o antagonista dele. Então tive que criar um personagem. Pintei o cabelo, os gestos. Foi muito interessante fazer, foi muito engraçado fazer.

EE – Você interpretou depois outro travesti, o Pola Negri de “Perdoa-me Por Me Traíres”. Teve algum medo de ficar estereotipado pelo “República”?

AV – Bom, sem dúvida nenhuma eu sabia que ficaria marcado, fiquei marcado e acredito até em várias oportunidades que viriam naturalmente se eu tivesse feito, por exemplo, o Carlos Alberto dos Santos, o papel que tinha sido me destinado. Eu teria consolidado uma imagenzinha como o machão, gostosinho, moreno, a figura que eu sou e que foi aproveitado esporadicamente. Mas o “República” é de 79, que é uma virada de década, marcou muito a época, marcou muito a mim sobretudo, e eu fui muito premiado com esse filme. Então eu fiquei um pouco marcado por isso. Não que tivessem aparecido não sei quantos travestis. Pelo contrário, não aconteceu isso...

EE – Ao mesmo tempo, são papéis diferentes, não é?

AV – Completamente diferentes. Porque o Pola Negri não é tão somente um homossexual. Pelo contrário, ele é o que na época do Nelson se chamava “gilete”. Um cara que corta dos dois lados, como a própria expressão quer dizer. E tinha uma masculinidade, porque ele é o gerente daquele prostíbulo, daquele rendez-vous. Ele é o que segura a barra. Este personagem é um personagem do bas-fond carioca, um personagem das entranhas, da malandragem carioca. Tem uma galeria de tipos como esse que passa por Madame Satã, que passa por Miguelzinho Camisa Preta, que passa por Sete Coroas, é uma plêiade de estrelas, desse universo que o Nelson Rodrigues, como bom repórter policial, sabia do que estava falando. Então tinha que ter essa dubiedade. Quem me ajudou muita na composição e na compreensão da Pola Negri foi o saudoso Sadi Cabral, que faz o senador no filme. Ele viveu muito essa época, desses personagens. As prostitutas polonesas, que é a representação da Madame Luba, os rendez-vous que existiam no Rio de Janeiro, que fizeram parte da transformação do comportamento sexual do homem brasileiro, sobretudo carioca, um universo fantástico. Eu comecei a compreender esse tipo de serviçal, dúbio, cheio de arestas, cheio de mistérios, o personagem foi construído com essa consciência.

EE – Vamos pular para o “Segredo da Múmia”, que também renderia horas de papo...

AV – O Ivan Cardoso me convidou pra fazer um projeto dele, um filme B. Tipo aqueles filmes da Hammer, e me convidou para fazer o galã do filme, que era o repórter. E me deu o roteiro, eu li o roteiro. “E aí, vamos fazer, vamos fazer”. Eu falei, “Vou fazer sim, mas só que você disse que estava me convidando pra fazer o papel principal do filme, mas não. Você me convidou pra fazer o repórter.” “Mas é o papel principal do filme”, “Não. Como é o nome do filme?”, “O Segredo da Múmia”, “Não é ‘O Segredo do Repórter’. É o segredo da múmia, a múmia é um personagem extraordinário, só foi feita por grandes atores, eu quero fazer a múmia”, “O quê?” [risos] Eu quero fazer a múmia, depois de ter feito um travesti, depois de ter feito não sei o quê, agora eu quero a máscara total, que é o corpo inteiro. Não aparecer nada do meu corpo. Aí ele percebeu. Falou “É mesmo. Do cacete. Vamos fazer”. E começamos então a fazer. Só que pra coisa ganhar um aspecto legal, a gente começou pela parte em que a múmia era viva. O Runamb, que era um egípcio louco, apaixonado por uma mulher, um psicopata de época [risos]. E aí quando o Oscar Ramos me vestiu com aquela roupa e aquele cajal no olho, aquilo caiu em mim perfeitamente. Eu poderia ter sido um egípcio tranqüilamente. Essa foi a parte maravilhosa. Beijar mulheres, andar de cavalo, até o dia que chegou de fazer a múmia propriamente dita, que aí foi um absurdo de... [risos]. Eu não sabia aonde é que eu estava me metendo. O Oscar Ramos construía a múmia junto com a Nina de Pádua, no meu corpo, então eu era mumificado todos os dias. Eram camadas e mais camadas de gaze.

EE – Isso por quanto tempo?

AV – O filme parou não sei quantas vezes. Era uma produção marginal, tinha uma pequena grana da Embrafilme, mas era uma produção totalmente marginal. E o Ivan Cardoso fazia questão de que o filme tivesse essa característica underground mesmo. Só que as paradas... e na realidade ele vinha fazendo esse filme já de priscas eras, tanto que tem um material preto-e-branco que entra no filme, bem anterior, e até uma múmia que não sou eu [risos]. Não é feita por mim. E aí a gente foi conseguindo adesões. A Regina Casé, o Cláudio Marzo, a Dora Pellegrino, enfim, uma série de pessoas que foram entrando. Quer dizer, o elenco básico mesmo era o Wilson Grey, a Clarice Piovesan, eu e o Felipe Falcão. Eram os personagens básicos. O resto foram participações afetivas, especialíssimas que depois foram entrando. O Evandro Mesquita, a Tânia Boscoli, foram se agregando ao filme. Mas foram filmagens muito interrompidas. Muito tempo. Um verão carioca, eu vestido de múmia andando pela cidade, carregando mulheres, um absurdo. E na hora de fazer xixi, por exemplo? [risos] Como é que fazia? E na hora de beber alguma coisa?

EE – Canudinho?

AV – Canudinho, depois a gente foi se aperfeiçoando. Aí tinha um macete aqui, na parte do sexo, que dava pra tirar, a gente foi descobrindo. Mas foi engraçadíssimo. No primeiro dia da filmagem com o Grey, era a primeira vez que a múmia aparecia e cortava a cabeça do Igor, que era o Felipe Falcão. A cabeça dele rolava no chão. E o Grey entrava, porque era o cara que ele tinha criado. E o Grey entrou, over-acting total. [Imitando:] “Iiiiiigooooorrrrrr”. Aquilo assustou todo mundo. Porque até então a gente estava com a idéia de fazer um filme B. O filme B, ele é feito com uma verdade, ele não é feito com um humor trash, com um humor crítico, ele é feito na verdade mesmo. Resulta numa coisa trash, mas não é feito para tal. E aí eu senti que o Grey tinha dado o tom do filme, e eu acho que o Ivan captou isso também. E o filme começou a ganhar características de chanchada. De humor, de gags, de trash. E na hora da edição foi aquele banho de criatividade. Botar música de filmes famosos, coisas engraçadíssimas. Porque estava previsto de a gente ir pro Cairo filmar, e claro que a gente não foi pro Cairo filmar. O Ivan teve uma solução fantástica, filmar o cartão postal do Cairo. “Cairo, mil novecentos e...” era o cartão postal. E corta para onde hoje é o Novo Leblon, aquelas dunas que tinham ali na Sernambetiba, eu num cavalo. Maravilhoso isso, entendeu, maravilhoso. E aí se descobriu o terrir, descobriu esse filão fantástico, em que eu trabalho até hoje. Hoje eu faço uma coisa chamada “Teatro do Terror” que são comédias trash, inspiradas nesses produtos “equivocados” entre aspas e que geram uma comicidade extraordinária.

EE – Indo para um extremo oposto, como foi o “Eles Não Usam Black-Tie”, com Leon Hirszman ?

AV – O Leon e o Guarnieri eram a dupla que executou o trabalho e que pensou o trabalho com uma formação política muito declarada, muito assumida, muito conseqüente. Leon, uma pessoa que faz uma falta enorme, um pensador político extraordinário. Esse filme é muito diferente de todos os outros que eu fiz. É um filme que teve ensaio, é um filme que teve leitura de mesa, que teve uma discussão política sobre as intenções que iam percorrer todos os setores do filme. E eu queria fazer o Tião. Dessa vez não deu certo a troca [risos]. Ele já estava fechado com o Riccelli, que faz um lindo Tião. E eu fiquei então com o Gesuíno, que é o pelego, que é o cara do lado dos patrões. Era muito difícil para mim fazer. Talvez foi o personagem que eu encontrei mais dificuldades. Eu representar o lado pelego, o lado traidor, o lado vendido, era muito sofrido para mim. Eu via as cenas da greve, da marcha dos operários, a porrada com a polícia e eu tinha tomado porrada da polícia, eu queria estar desse lado, mas eu estava do outro lado. Me lembro de uma cena, em que eu ficava dentro da fábrica. Todo o elenco ficava do lado de fora [risos]. E o Leon olhava pra mim, dizia “Não se deixe seduzir por isso, não se deixe seduzir por isso, você não olha dessa maneira”. E aí ele foi me dirigindo, me dirigindo, e eu tive dificuldade de confeccionar o olhar de quem debochava daquilo, de quem achava que aquilo estava errado. O Gesuíno, na realidade, é o apêndice do Tião, tanto que é um personagem que resume... vem de uma peça tetral. Ele resume todo o lado patronal, a esperança de ter um way of life, que seduz o Tião. Pouca gente sabe disso, foi muito pouco divulgado, mas quando o filme foi exibido no Palácio de Veneza, quando terminou a projeção o cinema inteiro levantou e aplaudiu de pé, aplaudiu o elenco de pé. Ficaram extremamente comovidos com a grandeza do filme, mas foi muito difícil fazer.

EE – “Bar Esperança”, de 1983, já foi em outro contexto e trabalhando com o Carvana. Tenta explicar melhor o imaginário dele.

AV – Tanto eu quanto ele nos identificamos com a proposta de sermos atores populares. E que buscam basicamente representar o homem brasileiro. O comportamento do homem brasileiro e sobretudo uma coisa muito carioca que ele tem e eu também, muito coincidente. Ele é carioca, eu sou carioca; ele é Fluminense, eu sou Fluminense; ele tem uma veia espírita, eu também tenho. Então, é assim... eu acho que... essas semelhanças são muito grandes. Tanto que quando eu ganhei o meu primeiro prêmio como ator eu fiz questão que ele me entregasse. O Carvana, pra mim, seria o que eu acho que o Fellini é para Roma, Itália. Carvana é pro Rio de Janeiro. E “Bar Esperança, O Último que Fecha” fala de uma memória afetiva, ele fala daquilo que o tocou. Tem uma reunião de personagens muito característicos da boemia dos anos sessenta, setenta. O meu personagem, por exemplo, o Walfrido Salvador, “o salvador daqui”, ele retira algumas características do Hugo Bidet, que foi um extraordinário piadista, um cara que chegou a alugar um camelo pra ir a uma festa...

EE – Deu feijoada no bidet...

AV – [risos] Exatamente... A história do rato, que virou Sigmund, todo mundo fingia que não via porque achava que era delirium tremens. E a história do Millor, que fez uma exposição com quadros brancos e que vendeu tudo. E essa coisa de exibir no banheiro, a exposição ser no banheiro, que é uma sacação da contracultura, daquela geração. Uma coisa iconoclasta que tinha naquelas pessoas, que o Carvana retrata muito bem. Então o Walfrido Salvador é o típico artista daquela conjuntura, daquele tecido extremamente colorido, pedaços daquela colcha de retalhos de influências, de culturas. Contracultura, underground, udigrudi, cinema. Tudo está misturado. E é lindo. É um filme... Mário Lago dizia que era o filme mais emocionante que ele já tinha visto.

EE – Você viu um período áureo do cinema feito aqui no Brasil, dos anos 50, 60, 70. Agora eu queria que você passasse para um período um tanto quanto negro, dos anos 90, antes da Retomada.

AV – Eu acho que... algumas pessoas foram exiladas do Brasil e foram morar fora. Não por sua vontade, mas forçadas a fazerem isso. O período Collor, a extinção do patrimônio cultural da Embrafilme... Se discute muito a Embrafilme, não cabe aqui a gente discutir isso, é um outro papo. Mas era um fomento real, era um processo de desenvolvimento de uma pré-industria. E eu me sentia exilado. Eu deixei de fazer cinema. Eu e todos nós. E vimos atrocidades serem cometidas. Cadê o patrimônio todo? Enfim, muito complicado. Foi muito difícil mesmo. Foi muito doloroso. E eu consegui fazer algumas coisas nesse período que foram...

EE – ... “A Maldição de Sampaku”...

AV – É. A bondade do Zé Joffilly, de me botar pra fazer uma aparição, só para eu sentir novamente o gosto da câmera. Mas eu fiz com uns canadenses, o “Comme Les Oiseaux Dans Rio” e um americanóide, chamado “Bocca”, que foi feito em cima do filme do Walter Avancini, o “Boca de Ouro”. E fiz um filme finlandês, chamado “Filhos de Yemanjá”, com uma diretora finlandesa, Pia Tikka, que na época era mulher do Mika, um cineasta finlandês radicado aqui no Rio. Então, de repente eu fazia filmes estrangeiros no Brasil. Olha que loucura. Uma coisa meio de exilado. De repente eu estava representando em inglês na minha terra.

EE – Qual a diferença de você estar num filme estrangeiro, ainda que seja no seu próprio país, e você estar num filme brasileiríssimo, como todos esses que a gente falou?

AV – Ah, uma diferença brutal. Por mais que seja gostoso, tentador, e até uma ambição que eu acho que todo ator deve ter, que é representar numa outra língua. Por exemplo, no caso do “Les Oiseaux”, era um filme em francês, os canadenses falam em francês, e o “Bocca” era em inglês. Eu falei muito pouco no filme, mas eu ouvia o tempo todo os diálogos serem falados nessas línguas. E eu não estava no Brasil. Não era um filme brasileiro, não era, entendeu? A equipe não era brasileira, tinha um ou outro brasileiro. Então era como se eu tivesse ido pra fora, descolado uma ponta pra fazer uns filmes fora. E muito estranho, muito esquisito. Apesar do fato deles estarem filmando aqui e que dava a eles um grau de gentileza, de cortesia muito interessante. A questão financeira era excelente, pagavam direitinho, bem. Mas a língua é uma identidade muito forte. E foi muito bom eu ter feito, pra sacar isso. Como é bom você pronunciar tua língua, falar do teu jeito de falar.

EE – E no cinema, o que você tem feito? Projetos futuros também, o que você tem em mente, já engatilhados.

AV – Olha, um dia eu estava num festival e um diretor francês me falou: “Conheço o seu trabalho, vi muitos filmes seus. Acho você um coadjuvante extraordinário, mas eu queria ver você como o protagonista absoluto”. Aquilo não me saiu da cabeça, porque eu nunca pensei nisso. Eu nunca parei pra pensar... a carreira, o que que eu vou fazer agora. Isso é mais de um ator de primeiro mundo. Um ator que tenha tido uma sorte e uma estabilidade dentro da carreira que eu nunca tive. Sempre tive que correr muito atrás. E depois dessa observação, eu fiquei pensando. E aí eu concebi uma história, chamada “O Apostador”, que é um homem dentro de um apartamento, e ele tem até o último páreo do jóquei pra tentar salvar a sua vida. Coincidentemente o MinC lançou um concurso e um dos roteiros selecionados foi esse e eu filmei. O Emiliano Ribeiro dirigiu, ele tá quase pronto. A única produção que existe no filme é a interpretação. Então estou louco para ver o resultado disso, para ver como isso vai resultar. E o outro projeto também, é a adaptação do livro do Antonio Torres, “Um Táxi Para Viena D’Áustria”. Que é sobre um cara que mata, começa o filme matando o seu melhor amigo, você não sabe por que, só vai descobrir no final do filme, do livro [risos]... Olha aí, já estou falando do filme. Eu peguei, tive a ousadia de eu mesmo fazer a adaptação, o Antônio Torres aprovou, acha que é bacana. Botei num concurso do MinC, foi premiado como roteiro pra longa-metragem. Depois de “O Apostador”, eu espero ganhar credibilidade pra poder tentar, então, fazer o “Um Táxi Pra Viena D’Áustria”.

EE – Ouvindo tudo isso que você falou, eu vejo a trajetória de um cara que sonhou o cinema. São milhões de coisas fora dele, mas especificamente no cinema brasileiro, o que você acha que fica do Anselmo Vasconcellos?

AV – Ah... são esses fotogramas todos assim, que alguém talvez junte... não é tarefa minha... Eu acho que a essência do ator é justamente essa. Ele faz para que o outro veja. Pra que o outro perceba e dê a dimensão que ele tem. Eu não saberia...

terça-feira, janeiro 10, 2006

Os Sete Gatinhos


A velha tentativa de se desmerecer o legado autoral de Nelson Rodrigues como mero subproduto de pornografia sensacionalista, tem o mesmo resultado da insistente citação do nome de Ingmar Bergman a cada vez em que se fala do cinema de Walter Hugo Khouri. Nada acrescenta, ou melhor, torna a compreensão do que já é difícil, ainda mais nebulosa.

Óbvio que nos dois casos a maldade dialética é evidente: com o rótulo de “imitador” de Bergman, abre-se espaço para difamar a obra de um ourives como Khouri. No papel de simples pornógrafo, Nelson também pode ser chutado para escanteio, possibilitando à burritzia fazer com ele tudo aquilo que se deseja fazer com assuntos que metem medo: ignorar, esconder, tornar invisível.

Khouri pode ter influências de Bergman, assim como Nelson utilizava o escândalo sexual como recurso dramático importante. No entanto, substituir o todo pelo detalhe é ignorância, tolice, fraude – estrutura de pensamento que no Brasil, infelizmente, mesmo aqueles que se dizem “esclarecidos” adoram abraçar ou simplesmente repetir por medo da formulação de uma alternativa original de questionamento.

Faço toda esta introdução para chegar em “Os Sete Gatinhos” (1980), filme de Neville de Almeida baseado na peça escrita por Nelson em 1958. Em “Os Sete Gatinhos” o já calejado Nelson, embriagado pelo fuzilamento que recebia dos seus pares, usa os recursos mais simples que conhecia para produzir um texto entremeado de simbolismos. O resultado deixa transparecer a grande questão da genialidade rodrigueana: a fronteira onde começa a arte e termina o simples desfile de existências torpes.

O filme de Neville é interessante por captar e animar exatamente o que Nelson pensa de seu próprio paradigma. O roteiro co-escrito por Nelson ajuda, mas o elenco fascinante e a direção segura amplificam o esforço. Toda a atmosfera do filme parece remeter exatamente àquilo o que a peça diz. O quadro da família Noronha, mesquinha e socada no massacrante e onírico subúrbio carioca, não poderia ser diferente do que foi composto e filmado.

Noronha (Lima Duarte), é um contínuo de repartição, pai de cinco filhas: Silene (Cristina Aché), Aurora (Ana Maria Magalhães), Arlete (Regina Casé), Hilda (Sura Berditchevsky) e Débora (Sônia Dias). Quatro delas se prostituem – ou melhor, não chegam a ser profissionais gabaritadas, mas prestam favores sexuais esporádicos a homens em troca de dinheiro. Tudo o que ganham entregam à mãe, que sonha com um casamento virginal para a filha caçula, Silene, estudante em um colégio interno.

Este equilíbrio patológico vai sendo quebrado aos poucos, dentro da estrutura comum aos textos de Nelson. Inicialmente apresentando um recorte social que parece perfeito, desenvolve a narrativa retratando sua dissolução. A mãe, apelidada de “Gorda” pelo marido – em alguns lugares do Brasil o tratamento é carinhoso; no Rio, ofensivo e humilhante –, tem um impulso sexual fora do comum. Como o marido não a procura, masturba-se e pinta desenhos obscenos no banheiro.

Paralela à questão da Gorda, surge o personagem do cafetão Bibelô (Antônio Fagundes), que engravida Silene e tem um caso com Aurora. Bibelô usa a desculpa canalha tão familiar a mitologia rodrigueana, mentindo sobre uma esposa à beira da morte, repleta de chagas pelo corpo, banhada pelo marido que, em tamanho sacrifício, esquece-se do monte de pele e ossos em que a coitada se transformou. O resultado desta balela provoca um encantamento ainda maior na tonta Aurora, que aguarda a viuvez do cafa para ser a nova esposa.

Cada parte da trama vai se encaixando até o assassinato de Noronha pelas filhas – sideradas como bacantes, entulhando o cadáver sobre a mesa de jantar. Assim, basta dizer que antes do caso com Bibelô, Silene fora violada pelo pai. Um dia matara a pauladas, no pátio do colégio, uma gata que depois de morta deu à luz sete gatinhos. O entojo com o bichinho, ela explica, talvez tenha surgido do fato de estar grávida, não desejar um aborto e idolatrar o peito cabeludo e suarento de Bibelô.

Dias antes, Noronha teve um presságio. Sonhou com o “homem que chorava por um olho só”, responsável pela dissolução do seu lar. Esquecera-se, no entanto, de gritar em voz alta que o vilão era ele mesmo. Rufião de todas as garotas, oferece-as a Saul (Sady Fraga) e Dr. Bordalo (Cláudio Correa e Castro) – este, suicida-se ao concretizar com Silene o desejo incestuoso de amar a própria filha.

Abre-se aqui um parênteses, pois apesar de ser quase um anti-freudiano, em “Os Sete Gatinhos” Nelson trabalha o tempo todo com temáticas psicanalíticas. O assassinato da gata, em resposta ao trauma invejoso de Silene – se a ela não é permitido ter filhos, ao animal também não deve ser – parece uma vinheta clínica retirada de um texto de Melanie Klein. O próprio movimento “atrair-possuir-destruir”, tão estudado em relações interpessoais de inveja, ocorre ipsi literis entre Silene e a gata.

Há outra grande questão psicanalítica a ser percebida, dessa vez refletida em todo o universo autoral de Nelson: a exagerada perversidade masculina, no fundo, é o mais legítimo recalque, concluindo-se que no jogo rodrigueano, o homem é quase sempre um náufrago invejoso do feminino e seus desdobramentos.

Voltando a detalhes mais amenos, em “A Dama do Lotação” – também dirigido por Neville D’Almeida – a lendária banda “A Cor do Som” pontuava a narrativa com uma música incidental, criada a partir da trilha sonora de Caetano Veloso. “Os Sete Gatinhos” tem a felicidade de trazer o conjunto novamente, desta vez recriando as composições de Erasmo Carlos.

Num volume agudíssimo, as guitarras distorcidas produzem um estranhamento que se assemelha a miados de gatos, tocadas quando a fúria na família de Silene aumenta. Além disso, prestem atenção a outro trecho. O arranjo para a canção “Pecado Original” – retirada de “A Dama do Lotação” – é ouvido enquanto Silene conta a Aurora sobre o namorado.

Por tudo e contra tudo, “Os Sete Gatinhos” afirma-se como um filme prazeroso, daqueles que se fazem com a observação atenta do enredo que se quer descortinar. Sady Cabral, veterano ator e compositor, chegava ao estúdio e adquiria um porre de vida que medicamento algum ainda conseguiu inocular. Thelma Reston, Regina Casé e Maurício do Valle garantem o ritmo da chanchada libertina, mas num plano maior temos Lima Duarte.
Desfigurado, anormal, Noronha comanda as atividades como um pêndulo que tende sempre ao erro, à flagelação. Não espanta que sua morte leve a um recomeço, a um orgasmo final que alivia sadicamente aos espectadores, antes dos letreiros subirem. No clima da festa macabra, vamos nos despedindo de um por um, sabendo que a algazarra não esconde, mas adoça a tortura emocional.

sábado, janeiro 07, 2006

Bonitinha Mas Ordinária


Se um filme não é um bombom de cereja, como diria Nelson Rodrigues, “Bonitinha Mas Ordinária” possui taxa baixíssima de glicose. Geralmente associada à pornografia vazia – sem pelo menos o benefício da dúvida –, a película de Braz Chediak domina a peça teatral de Nelson com a técnica de quem desde cedo era familiarizado com a obra do dramaturgo.

Amante da literatura, Chediak aterrissou aos poucos na indústria cinematográfica. Aproveitava a vida e a arte dos anos 60, sem qualquer pretensão de tornar-se diretor. Quando em 1963 é sondado por Joffre Rodrigues – filho de Nelson e produtor da primeira versão de “Bonitinha Mas Ordinária” –, é na condição de ator que recusa o convite para integrar o elenco e viaja para a Itália, aproveitando uma bolsa de estudos.

Na volta ao Brasil dirigiria, anos depois, “Navalha na Carne” (1969), da peça de Plínio Marcos. A dimensão expressionista de “Navalha” precisa ser urgentemente estudada por aqueles que ainda confundem altos recursos financeiros como pré-requisito para vôos artísticos. Dispondo de apenas um apartamento, atores em ponto de bala e um diretor que sabia perfeitamente aonde queria chegar, temos como resultado algo que supera em muito a mediocridade que por vezes lhe é imputada.

O mesmo pode ser dito sobre seu trabalho em “Bonitinha Mas Ordinária” (1981), recebido com salva de palmas por Nelson. O escritor compreendeu os alvos de Chediak. A meta era fazer com que o texto soasse palatável para a massa espectadora, além de extrair do elenco e dos referenciais do autor uma plástica tremendamente sincera.

Chediak não distorce, não ilude. Ao optar de caso pensado por uma narrativa linear, nem por isto desmerece o texto. Ao contrário: torna-o pleno.

Se prestarmos atenção em profissionais acostumados a esforços de peso – como Milton Moraes (Peixoto) e Carlos Kroeber (Dr. Werneck) –, bastam alguns segundos para entendermos que apesar de os personagens usarem uma fachada histriônica, cheia de piadinhas, o que eles revelam são doenças horríveis, que esmurram a sensibilidade do observador.

Lucélia Santos – ex-esposa de John Neschling, atual maestro da Osesp, autor da trilha sonora do filme – sobressai na amostragem dos planos de consciência e inconsciência de Maria Cecília, a protagonista infernal.

Seja nos estupros grupais – sim, nos tão comentados estupros grupais –, quanto nas conversas com o futuro noivo, Edgard (José Wilker), e em absolutamente todos os takes em que aparece, percebemos na personagem de Lucélia as rubricas do escritor e do diretor. Há uma sintonia indisfarçável entre os dois. Nelson, aliás, adorou a encenação dos estupros. Com as mãos presas, seguras pelos homens, Maria Cecília era crucificada como o Cristo espúrio que pretendia por ocasião da peça. Por sua vez, a imagem vista nas telas foi concebida por Chediak, a partir de um quadro de Salvador Dali.

Outros momentos impactam pela selvageria sexual. O “banquete” em que três meninas, irmãs da prostituta Ritinha (Vera Fischer) – namorada de Edgard –, são violadas sob o olhar de convidados em uma festa é um deles. Num rasgo de hiper-violência, Chediak deixa a cena durar por mais minutos do que o suportável.

Abandonando esta abordagem, em um compasso um pouco mais cínico, vemos com espanto o mendigo que masturba-se, a conversa de Edgard e Ritinha numa cova de cemitério, o abuso do chefe (Rubem Corrêa) pela filha (Ritinha) de uma funcionária (Miriam Pires, em grande forma, como uma catatônica desmemoriada).

Como todos repetem a toda hora, numa insistência surreal, “o mineiro só é solidário no câncer”. A orientação da peça e do filme é quase completamente a do desprezo pela hipocrisia humana. O “câncer” existe, é uma realidade indefectível, mas a possibilidade de curá-lo rareia à medida em que pessoas como Werneck, Peixoto e Maria Cecília mostram a vontade de se denegrirem e exilarem-se na podridão.

Sobra para o casal de apaixonados (Ritinha e Edgard) uma esperança discreta, caminhando pela praia juntos, iluminados pelo nascer do sol. Aqui Chediak voltaria ao melodrama e dá a ele próprio e a todos nós, o direito de sermos ingênuos pelo menos por um tempo.

No fim “Bonitinha Mas Ordinária” é exemplar do fenômeno das produções envolvendo a obra teatral do autor, que se não chegavam a soar autenticamente rodrigueanas, dialogavam com o universo de Nelson e formavam um terceiro híbrido, onde a mão criteriosa do realizador cinematográfico também fica evidente.

Atento aos filhotes interessantes que seu imaginário produziu, Nelson valorizou as criações de Chediak, Jabor e outros com êxtase juvenil – o que, com certeza, torna ainda mais duvidoso o idiota da objetividade que torça o nariz para estes filmes, rindo deles como se fossem entretenimento pitoresco.

Não esqueçamos que na "Resenha Facit", programa de debates esportivos do qual participava, quando tinha opinião sua confrontada com a evidência de um videotape, Nelson vaticinava: “- Estou certo e o videotape errado! O videotape é burro!”. Escutemos Nelson, pois sua razão era batata, batatíssima.

Ver também:
Dois Perdidos Numa Noite Suja
Navalha Na Carne
A Dama do Lotação
Os Sete Gatinhos

quarta-feira, janeiro 04, 2006

A Dama do Lotação


Ao contrário de Arnaldo Jabor, que partiu da experiência de condensar “O Casamento” – romance de mais de 200 páginas –, Neville D’Almeida teve que expandir o enredo de “A Dama do Lotação” (1978) – pequeno conto originalmente publicado em “A Vida Como Ela É...”, coluna assinada por Nelson Rodrigues em “A Última Hora” entre 1951 e 1961.

Antes de virar série de televisão nos anos 90, “A Vida Como Ela É...” aproximou o escritor de um publico heterogêneo, acostumado tanto a Dostoievski quanto a embrulhar peixe no jornal da véspera.

Essa frugalidade do material jornalístico – assumida sem traumas por outro mestre da literatura, Rubem Braga – não impediu o refinamento cada vez maior dos textos de Nelson, um jovem senhor àquela época, no auge dos seus quarenta e tantos anos de idade, acostumado a teclar na máquina Remington com os dois dedos indicadores.

Em “A Dama do Lotação” Solange e Carlinhos, namorados de infância, casam-se e o marido começa a suspeitar da esposa. Ficamos sabendo detalhes das famílias, do melhor amigo de Carlos, Assunção, e das rotinas de Solange, interessada a entregar-se todos os dias ao primeiro homem que visse no “lotação” – sinônimo antigo para os ônibus do perímetro urbano da antiga capital federal.

Frágil e recatada com Carlos, Solange recusa-se a deitar com ele. Acreditando-se pura, sem qualquer indício de culpa, preserva o amor de Carlos acima de todas as coisas, deixando a parte “suja” aos homens quaisquer.

Na versão adaptada e dirigida por Neville D’Almeida, há a intenção clara de dar caras e corpos aos conflitos subentendidos por Nelson, narrados no tempo em que não havia motéis, pílulas anticoncepcionais e o máximo de bestialidade que chegava ao público eram as curras de jovens consumidores de lança-perfume.

Assim, a atmosfera ultra-naturalista do filme, de suor, calor e sexo, está refletida em muitas criações do diretor. O episódio em que Assunção (Paulo César Peréio) e Solange (Sônia Braga) flertam com os pés debaixo da mesa do jantar, é ambientado no show das mulatas de Sargentelli, o “Oba-Oba”. Na crônica, o momento servia de mero gancho, no qual Carlos (Nuno Leal Maia) percebia o algo mais entre os dois.

Idem a clássica cena do banho de cachoeira com o motorista de ônibus, Bacalhau (Roberto Bonfim) – amigo do trocador Mosquito (o impagável e saudoso Ivan Setta) –; o psicanalista entediado (Cláudio Marzo) –; o affair com pai de Carlos (Jorge Dória), chicoteado pelas roupas da nora; os coitos no meio do cemitério – enquanto passa o cortejo de sepultamento –, na praia, com um vadio (Paulo Villaça) ou no mato, com um ex-funcionário do marido.

O caso entre a falecida mãe de Carlos e uma amiga de colégio (Yara Amaral), merece consideração especial. No filme a carta bombástica, escrita pela última e entregue ao viúvo, parece ter saído das páginas de “Suzana Flag” – pseudônimo de Nelson, nos tempos de conselheiro sentimental –, apesar de não existir no conto original de “A Dama do Lotação”.

Mas quando Carlos descobre as aventuras de Solange e declara-se morto para o mundo, trajado de cadáver sobre a cama, as mãos fixas, entrelaçadas sobre o peito, voltamos às sensações do texto em estado bruto. O fim revela o realismo quase-fantástico de Nelson, na imagem da morte imponderável, carregada nas tintas até para o próprio recreamento do escritor.

Na ocasião do filme, a estrela Sônia Braga estampava as telenovelas, as revistas “Amiga”, e os produtos de exportação internacional, como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Encarou o desafio de encarnar a neurótica com grande talento, a ser considerado sem os preconceitos que rondam atrizes bem fornidas. Delicada ou fora do eixo, uivando no encontro com Dória, transtornada entre os bancos do ônibus, a Solange de Sônia Braga não é diminuída na comparação com a ficcional. Ressalte-se também a qualidade da trilha sonora de Caetano Veloso, assobiada por dez entre dez pessoas depois da projeção.

Se Neville D’Almeida empenhasse uma porcentagem da energia gasta em suas produções, para a consagração como diretor “sério”, poderia se deitar em berço esplêndido, com medalhões de louvor. O trabalho em “A Dama do Lotação” deve ser visto com calma por suas referências inter e extra-textuais, além de alcançar a sexualidade feérica, objetivo óbvio.

Nelson co-produziu “A Dama do Lotação” – como de praxe nas adaptações de seus filmes nos anos 70, levando consigo a família Rodrigues, irmã e filho, para participar da equipe técnica. Nas entrevistas, repetia a máxima conhecidíssima, rebatendo comentários sobre o excesso de cenas picantes em adaptações para sua obra. Ouçam ao fundo aquela voz inconfundível, emitida num fiapo de força, antes de cair o pano: “Mas afinal o que vocês queriam do filme? Meu doce de coco, um filme não é um bombom de cereja!”.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

O Casamento


O Canal Brasil oferece nestes dias uma enorme retrospectiva dos filmes baseados na obra do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, morto há vinte e cinco anos atrás. Aproveitando a oportunidade, vamos abrir o ano com uma pequena série destes filmes – se não todos, os mais importantes para ilustrar a repercussão do gênio de Nelson no cinema.

Falar de Nelson Rodrigues no alvorecer de 2006 me parece difícil, muito por conta da quantidade de estudos, recriações, adaptações e diluições que castigam a obra de Nelson nos últimos anos. A esse fenômeno culpe-se benignamente Ruy Castro, que lançou em 1992 uma biografia definitiva, “O Anjo Pornográfico”, e tirou o autor do limbo em que a intelligentsia brasileira, sempre zelosa do seu index, havia colocado o autor por conta de suas posições políticas conservadoras.

Nelson, no entanto, tem a cretina pecha de “conservador” apenas para aqueles que, como ele mesmo definiria, pastam no terreno baldio e bebem água em cuia de queijo Palmira. Sua filosofia libertária era extrema e extensa, por isso talvez desconfiasse tanto de Freud e Marx, os cânones adorados por seus contemporâneos do século XX. Daí para estes contemporâneos acusarem Nelson de ser aquilo que não era – um anti-intelectual reacionário – foi um pulo.

Por outro lado, se não tinha a simpatia da parcela dita avançada da intelectualidade brasileira, também era odiado pelos legítimos conservadores, que viam na sua escrita uma ameaça aos bons costumes. Em certo momento da vida, Nelson foi portanto um homem artisticamente isolado e para onde quer que olhasse, não o viam com bons olhos.

Esse estado de coisas encontra um ápice em 1966, ano em que, por incrível encomenda do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, escreveu “O Casamento”, um dos melhores romances da literatura nacional de todos os tempos.

“O Casamento” (1975), o filme, dirigido por seu amigo Arnaldo Jabor, é muito bom, mas não consegue ser um décimo do que é o livro, a obra-prima. Talvez porque bons romances não dêem bons filmes, Nelson no cinema funcionou bem apenas na adaptação de suas peças. Logo, para falarmos do filme de Jabor, talvez seja melhor voltarmos nossas atenções para a força da obra literária e o resultado da transposição de uma linguagem para outra.

“O Casamento” versa basicamente sobre a fúria do corpo sufocada pela hipocrisia social e moral. Sabino Uchôa Maranhão (Paulo Porto) é um homem bem-sucedido, que vai casar a filha Glorinha (Adriana Prieto), a quem devota paixão incestuosa. O noivo de Glorinha, por sua vez, é um homossexual enrustido, que beija Zé Honório (André Valli), e é pego em flagrante pelo Doutor Camarinha (Fregolente), ginecologista de Glorinha e pai de Antônio Carlos (Érico Vidal), playboy tresloucado com quem Glorinha perdeu a virgindade. Contando assim, essa ciranda de personagens interligados parece fácil, mas Nelson oferece ao leitor o inferno em vida através do que anda pela cabeça das suas criaturas.

No filme há uma nítida diluição destes pensamentos escusos rodrigueanos. Antes podemos dizer que o universo subjetivo apresentado no livro é tão forte que acaba por ser inadequado ao audiovisual, gerando uma obra de meia-força. Jabor entende Nelson, isso parece visível, mas o romancista Nelson é tão grande que o cineasta Jabor apenas o toca na superfície, sem conseguir aprofundá-lo.

A melhor parte do livro – e do filme – no entanto são coincidentes. Trata-se do dia em que Glorinha perdeu a virgindade. Antônio Carlos guia o seu carro pela praia de Copacabana, passeando com Glorinha e uma amiga dela, as duas hipnotizadas por sua cafajestagem.

Depois de várias ameaças de suicídio teatralizadas, Antônio Carlos arrasta as garotas até a casa de Zé Honório, que pretende ter relações sexuais com outro homem na frente do pai, que o surrava por ser gay. André Valli dá aqui seu show particular no papel do homossexual amargo, com sede de vingança. Mas o que no livro soava apavorante, doentio, no filme transparece apenas como encenação vazia, histérica.

E detalhe interessante: na obra de Nelson, Glorinha e a amiga mantêm relações sexuais uma com a outra por ordem de Antônio Carlos, antes que ele deflore Glorinha. No filme essa parte fundamental da trama é descartada – talvez por conta da censura de 1975. Já a parte onde Sabino avança sobre sua secretária Noêmia (Camila Amado), encontra na dupla de atores uma tensão fantástica, se igualando ao que no livro era respiração suspensa, delírio sadomasoquista.

De todos os personagens transpostos, o mais fraco talvez seja Antônio Carlos, fascinante e dionisíaco na obra literária e vacilante e estereotipado no filme. Ao final, quando Sabino tenta agarrar Glorinha, Noêmia é morta pelo namorado (Nelson Dantas) e, num movimento de espelhamento de culpa, Sabino se entrega como responsável pela morte de Noêmia, temos a nítida sensação de que assistimos a um grande espetáculo. Mas a plenitude e a virtude da história que acabou de ser contada residem ainda no texto de Nelson, a ser lido e relido.

Não à toa sua obra encantou e encanta gente tão díspare quanto o cineasta José Antônio Garcia; o ex-advogado, então cineasta e hoje cronista Arnaldo Jabor (que na dúvida copia na forma o estilo de Nelson para agradar seus leitores); e toda uma nova geração de atores e atrizes teatrais, para quem Nelson é a gigantesca referência estudada em teatro brasileiro. Merecidamente, o antigo reacionário maldito se tornou quase uma unanimidade – o que talvez o desagradasse um bocado.