segunda-feira, janeiro 31, 2011

Pecado Horizontal


Quase tudo o que se produziu na Boca do Lixo alçou por décadas o estigma de frouxo, submetido a uma perversidade que poluiu até mesmo o imaginário de técnicos sobreviventes do local e do período. Comum ouvi-los repetindo o óbvio, introjetando uma ética auto-depreciativa. E por essa brecha instala-se outra praga: os menos atentos, os mais burros e ingênuos, podem achar que, para acabar com o ataque sofrido por milanos, a defesa há de ser tão intransigente quanto. Para matar uma gazela, cria-se outra – desde que, dessa outra, tenha-se agora total controle.

Sinto muito, senhores, julgamento errado. Trará problemas a longo prazo, é o reverso do espelho. Defender não significa fechar os olhos aos erros. Combater não significa vestir a histeria homicida. A Boca não foi um pacote homogêneo. Ter o símbolo de auto-sustentáveis não iguala as produções realizadas por lá. Este o soberano – nome do bar de larga história – fato.

Aprendiz de feiticeiro, José Miziara embarca no sonho quando os dramas de costumes, as invenções udigrudi, os filmes garnizés, o tosco e o sublime rodavam alucinados, em espiral. Tarefa inglória a de conviver com pontas de lança. Pior: autores de reputação construída por motivos insólitos, frágeis, aparentemente naturais. Walter Hugo Khouri era o homem dos filmes complicados. Ody Fraga, o intelectual libertino. Jean Garrett – para ficarmos em um dos garotos – se esforçava, fazendo o que podia, contrabandeando erotismo em tragédias e cinema de gênero.

Miziara, tentando colocar o anel de alquimista, joga umas ervas, cozinha o caldeirão. Aonde ele se encaixa, de verdade? Ex-artista de circo, faz-tudo da Rádio Nacional, dublador, cômico, seguiu os filões do rádio que moldaram os pioneiros da televisão. O bem e o mal, o homem e a mulher, o esperto e o enganado. Salpicou de anos 70 a regra e desaguou na malícia, no sexo depois da pílula.

Assim fez enorme sucesso em “O Bem Dotado: O Homem de Itu (1977)” – o jeca versus o povo da cidade grande. Tateia uma reportagem esperta sobre o swing em “Embalos Alucinantes” (1979), cruzamento de revista Veja e “Vai Trabalhar Vagabundo” sem nuances, puro deboche. No polêmico “As Intimidades de Analu e Fernanda” (1980) avança no paternalismo – homem e mulher, colunas estanques. Tenta vender as carícias loucas entre Fernanda e a separada Analu. Na prática, coloca a sombra do homem rondando em loop, desestabilizador da relação das duas. Um garoto na praia significa o elemento fálico faltante, a justificar interdição. Analu diz ao garoto que vá embora, mente que o marido chegará. Ambas se vêem através de um terceiro, não por si. O filme não alcança a voragem de Jean Garrett , que fez de “Karina, Objeto do Prazer” (1981), “A Mulher que Inventou o Amor” (1979), “Possuídas Pelo Pecado” (1976), antros do exploitation, quicando o feminismo e o machismo superficiais.

“Pecado Horizontal" (1982), gravado no ano limite entre a chanchada e o pornô, consegue um caminho mais hábil. Acerta. Coloca o corpo em foco não apenas dos moços, mas das moças. Elas a fim, procuram, gozam, sem o terror da vergonha, da racionalização.

Dirigido e escrito por Miziara, busca a atmosfera, bem nacional, dos subterrâneos de uma cidade do interior. A se prestar atenção na trilha sonora – a valsa “Oh, Minas Gerais” –, chegamos ao estado das Alterosas.

Três conhecidos reúnem-se em volta de uma mesa, bebem cerveja e contam “causos” passados de suas vidas. Relatá-los seria perda de tempo. Estão no limite do grosseiro – o protagonista não consegue traçar Matilde Mastrangi por conta de hemorróidas – e do engraçadíssimo, principalmente o segundo. O que interessa é que idas, vindas e deslizes dos personagens têm um objetivo: a obcecada fornicação. Sentem prazer absurdo em quase perderem a vida por conta desse mito. As mulheres, quando “dão”, sorriem; os homens, vivenciam um êxtase.

Essa vontade natural impressiona as normas egoístas e atualíssimas de conduta. Colocando-se em perspectiva, a "busca existencial" do sexo parece ter morrido no século XXI. Deu lugar ao aspecto esquizóide, narcísico, em que a aparente liberalidade oculta uma perturbação moralista. Ir pra cama não é mais libido, recompensa. Necessita de enrolação, de pose, de frieza. José Miziara nunca foi Betty Friedan, mas “Pecado Horizontal” coloca o desejo feminino atuante. Notem que as três protagonistas são mulheres insatisfeitas, que escolhem seus parceiros e desejam somente aquilo que toda fêmea heterossexual deseja, mas que certos homens costumam atrapalhar com grilos e lentidões.

Um mergulho nos documentos da censura revela dado espantoso: nenhum vigilante do governo militar implicou com a terceira história, na qual um menino de doze anos transa uma coquete aflita. Em 82, o duvidoso intercurso entre menino e mulher podia ser visto tanto no cinema de Miziara, quanto em “Amor Estranho Amor”, de Khouri. Implicando com cenas de sodomia, por outro lado a censura aceitava tranqüilamente o garoto Ric Ostrower cobrindo Mariza Sommer.

Além do princípio de que cinema popular não é pornochanchada, precisamos entender que, dentro dos filmes legítimos do gênero, existem sutilezas a serem pesquisadas e resgatadas. O passado de má vontade dos críticos explicava-se por um (falso) ideal de melhora, que não faz mínimo sentido quando o tempo e as influências são outros. Hoje, um chiste como “Pecado Horizontal” vira subversivo, libertário, porque nos ensina um espanto: a picardia pelo prazer de ser vivida. E que ocorreu, de igual maneira, fora da Boca do Lixo. Carlo Mossy, leitor de Schopenhauer, não fez “Giselle” à toa: nada mais importante para a menina “recém-chegada da Europa” que a vontade cega do corpo. Em tantas pornochanchadas – algumas de Mozael Silveira – o corpo é quem manda. E tal imperativo pede para destroçarmos o labirinto, entendermos as pistas falsas que o enfoque bruto – favorável ou contrário – cisma em corromper.

(in Zingu! #41, janeiro de 2011)

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Memória de Helena


“Memória de Helena” (1969) traz a profissão de fé de David E. Neves, o gosto pelo passado, o espírito que dormia no canto entre ontem e hoje. Remexe a expressão máxima de uma saudade familiar a ele: Diamantina, terra da mãe, origem do sobrenome oculto – Eulálio, o “E.” da assinatura.

Para continuar essa disciplina amorosa, David chama Humberto Mauro – o amigo que havia biografado em um curta (1966). Notem o senhor de cabelos brancos, voz rouca, no papel do tio Mário de Helena (Rosa Maria Penna). Afável, carinhoso, mesmo tratamento que dispensava a David no cotidiano.

E a recíproca era idêntica. Não à toa, o roteiro de Paulo Emílio Salles Gomes – outro referencial, um guru – mostra o cuidado de David com Mauro. Retrata as miudezas do Humberto/Tio Mário que já não enxergava bem à noite, que gostava de conversas intermináveis sobre a cidade da infância. Para tio Mário, era Diamantina. Para Humberto, Cataguases.

Pode parecer pequeno, mas o gesto estabelece um pacto imenso entre os diretores. Humberto lhe dava a mão para o primeiro longa-metragem. David realizava uma projeção masculina, de segurança, de porto seguro.

É assim que caminha mauriano, afastando os galhos das árvores em “Memória de Helena”, visitando o lirismo das coisas – o ferro de passar, o lago, as personagens engolidas pela cosmogonia delicada. Influência inevitável, ainda que em menor escala se comparado ao “Menino de Engenho” (1965), estréia de outro colega de geração, Walter Lima Jr.

David reinventa a nostalgia de Mauro. É urbano, cortes temporais – o Rio de Janeiro se mistura em idas e vindas com Minas –, fetiche metalingüístico pelo cinema – a Super 8 de Helena registra e é registrada de fora, pelo diretor. “Um filme sentimental”, que traz a dúvida sobre ser documentário ou ficção, logo nos créditos iniciais.

Helena, a morta, narra e diz com todas as letras que este é um filme de David Neves. Coloca-se do lado externo – reflete sobre a produção do filme, ao qual os espectadores assistem – e afirma que está no lado interno – narradora onisciente, falando de Helena na terceira pessoa.

Mais do que isto: só depois de alguns minutos é que iremos reconhecemos aquela voz do começo no rosto de Helena. Ginástica de construção que David segura tranqüilo, como o barquinho de papel que bebe o rio e fica-se olhando, em conexão com o divino.

O argumento foi escrito pelo diretor em um jato, beliscando a máquina de escrever. Apresenta-o a Paulo Emílio, que então desenvolve o roteiro, aprofundando e desaprofundando a inspiração dos diários de Helena Morney – pseudônimo de Alice Dayrell, diamantinense, filha de ingleses, século XIX.

Saudado pelo crítico Alexandre Eulálio, primo de David, o livro serviu de fonte para outra Helena, a Solberg, dois séculos depois, em “Vida de Menina” (2003). A Helena de Neves está abandonando a infância, percebe que não tem vocação para a vida conjugal, é saturada pela província, tiranizada pela mãe, pelas tias, pela avó. Tirania muda, desprezo por quem a garota é de fato ou aspira a ser.

Casarões de janelas abertas, ruas de pedras portuguesas, colégio, amizade com a mucama Inês. Algo que a distrai, não a completa por inteiro. Aparece Rosa (Adriana Prieto). Coleguinha de saiote e blusa de renda, laço de fita. Descem da aula, caminham na imensidão, amor que existe, apesar de não explodir no corpo físico. É certo, verdade verdadeira: Helena e Rosa se amam.

Um bêtise-antídoto, válvula de escape para o totalitarismo deliberado do meio – no cinema, vide “Mädchen in Uniform”. Os iguais – aqueles que ninguém adivinharia, pois seria pecado – unem-se em pensamento.

“Ela parece se submeter a mim, mas no fundo sou eu a escrava de sua futilidade.” Conhecida por ser a inteligente do sobrado, Helena sabe que existe com Rosa uma ligação de vidro, maior ainda do que tem com os gatos pulando do quintal. Acaricia-os e deita a cabeça no ombro de Rosa.

Tenta escapar da experiência barroca das procissões, da vila retrógrada, do cartaz de “filme cristão feito por um comunista” – “O Evangelho Segundo São Mateus”, de Pier Paolo Pasolini. Helena, frágil e insegura, quebra o tom monocórdio de tudo aquilo justamente através da maquineta de Super 8, hábito que o Tio Mário havia lhe ensinado.

As filmagens – e pouco dos diários – viram o método de reconstrução da protagonista. Rosa e Renato (Arduíno Colassanti) manipulam as imagens no projetor. Sobrevivem a Helena, que comete o suicídio.

O filme escorrega neste ponto, ao dizer que de alguma forma eles suplantam a garota por estarem vivos. As catequeses católicas de Paulo e de David parecem complicar esta parte do enredo. O acerto da vida versus o erro da morte. E isto apesar de efetivamente os dois se conhecerem por conta da menina – Renato foi ex-namorado de Helena. Perde-se a oportunidade de explicar a movimentação de Rosa, que cobiça e consegue o que foi da outra, última etapa no fusionamento das duas.

Igualmente o “defloramento de Helena” por André (Joel Barcellos) – quando ela já havia se separado de Renato. A princípio, André deveria ser o rebelde carioca, o aventureiro. Proposta inconcretizada. A aparição é mínima e não deveria sacudir tanto assim o espírito de Helena, a ponto de dar a ignição no suicídio – André a abandona e volta para a Guanabara.

A atitude sai da órbita que fascina em “Memória”: a idéia de vitalidade, de a protagonista ser única, conectada a Rosa e Renato, em uma angústia eterna. Soa como inconformismo tolo, estranho para a Helena que teoriza a necessidade de transparência, de se ser como se é, despindo-se a formalidade que destrói a essência. Helena age escravizada, de quatro, nem cogita perturbar Rosa – o que seria o próximo passo, no desespero do fusionamento –, àquela altura grudada em um namorado qualquer.

A filosofia se contrapõe à obra de David, adepto de uma liberdade feminina serena. Não incomoda, porém, o encanto descomunal de “Memória de Helena”. Um platô sem pastiche, lugar em que o vazio uiva. Coisa de diretor que sugere e deixa o que é sentido, internalizado, à moda de Morandi esboçando o intrincado, deixando fácil o que é difícil.

Em termos visuais, as soluções transcendem – David Drew Zingg, fotógrafo da Bossa Nova, concretiza o que o xará Neves lhe pede. Em uma delas, todos os núcleos da ação, representados pelos atores, passam na janela em frente aonde Helena está sentada, perto de morrer. Escapam pelos dedos, ela se sente para trás, esquecida, a confiança no fim. O corpo cai, no breu do lago, as ondas tremulam, arrebentam mansas na câmera. Metáfora para o filme em si, David as congela no ar, como expressão de palavras que machucam e não precisam ser ditas.


quinta-feira, janeiro 20, 2011

Paranóia


Alguns dos melhores filmes dirigidos por Antônio Calmon nos anos 70 (“Eu Matei Lúcio Flávio”, “Terror e Êxtase”) lembram uma coleção de idéias reacionárias, quase afrontas ao intelectualismo de militância social – por um lado – e à contracultura e suas tibiezas – por outro.

A última cena de “Eu Matei Lúcio Flávio”, quando Jece Valadão nos encara através das grades, é provavelmente a mais significativa do cinema policial brasileiro. Não só pela representação do policial-bandido, do policial no meio daqueles que deveria combater. Também por ser despudoradamente fascista – pró-repressão, pró-Estado, pró-cafajestagem. Mariel Mariscott irônico, hirto, parece confessar: “Eu fiz o que fiz e venci. Não adianta lutar contra, não adianta murro em ponta de faca. A transa é ficar ao lado do poder. Usá-lo para espancar os fracos e subir na vida.” Os bandidos eram os fracotes. E Lúcio Flávio, antagonista de Mariel, estava morto.

Notem que desse universo cínico, abjeto, Calmon retirou um destino que ninguém iria prever quando trabalhava nas picardias do Cinema Novo – “Terra em Transe”, “A Grande Cidade”, “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”. Aluno de Gustavo Dahl no MAM, segundo lugar no concurso de 16 mm que premia Xavier de Oliveira, Calmon vai colaborando em roteiros, dá umas olhadas na fotografia, na continuidade. Estréia em “O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil” (1971), tentativa de desbunde que antecede “Paranóia (1976).

Deste ponto em diante, encontramos a coleção de pepitas, hoje nebulosas e subestimadas. O Mariscott alucinado (“Eu Matei Lúcio Flávio”), o arrivismo coca-cola (“Nos Embalos de Ipanema”), os
blockbusters (“Menino do Rio”, “Garota Dourada”), o thriller subvertido (“Terror e Êxtase). Neste último, Leninha e Mil e Um no conluio absurdo que revela tanta coisa sobre a elite carioca.

Em “Paranóia”, Calmon e o roteiro de Carlos Heitor Cony flertam com Rubem Fonseca, mais especificamente o conto “Feliz Ano Novo”. “São Paulo - dezembro 1975”, eis que a equipe migra do Rio de Janeiro para a metrópole que melhor realçaria a tal neurose urbana – atitude que o próprio cinema de Calmon ajudou a descolorir no futuro: malandro na praia também vira
noiado.

Bandidos invadem uma casa, destroem, humilham, as referências de Rubem são misturadas a outras por Cony – sobretudo a inclusão de Sílvia (Norma Bengell), a histérica narcisóide.

Insatisfeita com o marido (Marcelo, Anselmo Duarte), Sílvia é um dado puro, personagem que poderia ter sido melhor destrinchada para explicar o que havia nas internas com ela, marido e filhos. Esta é a real origem da trama. O conluio neurótico entre quatro paredes e que sente a futucada do elemento externo: o bando do lalau refinado (João, Paulo Villaça) e dos três quadrúpedes (Capenga, Eduardo Nogueira; Naval, Rubens Araújo; Pimenta, Nuno Leal Maia).

João domina o discurso – espécie de William Professor, o arquiteto do Comando Vermelho. Os intuitivos – Capenga, Naval, Pimenta – arrombam cozinha, atacam a geladeira, estropeiam. Bruno (Bruno Barroso) e Lúcia (Lucélia Santos bebê, pouco antes da escravinha Isaura), filhos de Marcelo e Sílvia, permanecem na sombra, de passagem no enredo. Lúcia, pelo menos, conversa com a mãe um nanossegundo, Sílvia passa da tirania para o Summerhill absoluto. A garota mostra uma bondade obcecada pelos pais e um jogo estranho com o irmão, aspectos que poderiam bombardear ainda mais a desestrutura mental da história.

Na linha Belair, brincando com o escracho, Calmon coloca Lúcia para pular uma musiqueta
fifties; um assaltante lê Tarzan em quadrinhos; o psicanalista (Calmon, mudo, apenas o vulto) atura Sílvia enquanto a mulher se maquia, deitada no divã. Cinema dentro e fora da tela, vê-se um cartaz de “Perfume de Mulher”, prêmio de melhor ator em Cannes, festival em que o intérprete de Marcelo contabilizou a conquista mais problemática de seu currículo.

Interessam, rapidamente, as personagens gays de Naval, Capenga e Pimenta – fancho dúbio, que deve ter engatado uma sodomia ou outra, mas não assume. A inclusão deles atualiza o rumo dos filmes policiais. Até mesmo pelo estupro de Capenga na empregada Lurdes (Ana Maria Magalhães), momento em que a orientação sexual é inteligentemente esquecida. Reforça a animalidade do margina e quebra o tatibitati de gays apenas copularem com pessoas do mesmo sexo.

Lurdes, o protótipo de boazuda, paquerada por Bruno, se rebela, consegue torturar Capenga. Um clima de Joe D'Amato envergonhado, os braços e as mãos se movimentando calmos demais, para não machucarem o ator – erro que a montagem de Silvio Renoldi pena para driblar. Tempos depois, o olhar frio, ausente, Lurdes oferece um pano para que ele seque o rosto. À moda de Maria Madalena, mostrando o sudário para a câmera; Capenga, o Cristo algemado. Novo acerto lírico do filme, que iria patinar um pouco na velocidade assustadora com que a punição aparece para os criminosos.

Os empregados fogem, encontram os policiais dando sopa, desfilando no exato momento pelo quarteirão. Naval é encaçapado a bala por um coadjuvante tímido. Pimenta larga o canivete, Lúcia o esfaqueia.

Estilização da violência, Marcelo queima João (Paulo Villaça) pelas costas, psicopata, cravando uns balaços. Acompanhamento
trance de um ponto de macumba durante a morte de Naval – mudança brusca, que tira a vinheta do rock progressivo de Cláudio Savietto e Dino Vicente. Sílvia assassina Marcelo, acaba com a tentação de final feliz. A piscina empapada de sangue, pesadelo que a acompanha desde o início, já havia aparecido habilmente ao ser violentada – dopada de tranqüilizantes – por João.

Em tudo, perversidade que a família manipulava por osmose e que aumenta ao ser cuspida de volta. Jaula muito mais terrível do que qualquer petardo sociologizante, cheio de gritos fáceis, que costumam bater na ordem do cinema denúncia, do marxismo chinfrim de quem nunca leu Marx. Calmon, ao contrário, implodia o elemento burguês por dentro, provando que suas imagens não eram apenas cínicas, reacionárias. Sabiam dar meia volta e colocar uma bomba na luta de classes, vista sob o ponto de vista do dominador.

E não se espantem, leitores, se um dia acordarmos com as boas novas de que mimos como este existem – junto com “Ódio”, “República dos Assassinos”, “Rainha Diaba”, inúmeros. Só não se esqueçam de que avisei por aqui em primeiríssima mão, como a pastorinha louca da Avenida Ipiranga, fitas vhs em punho, uniformizada de branco em frente ao Marabá.

domingo, janeiro 16, 2011

As Borboletas Também Amam


Josip Bogoslaw Tanko, o croata por trás da alcunha de J. B. Tanko, passou aquele pão com água de refugiado na Segunda Guerra. Antes da virada dos anos 50, conhece o patropi de outras crises, outros sufocos, indústria cinematográfica com o freio de mão puxado. Tanto lá quanto aqui, acostumou-se aos estúdios. Dá para se entender a fama de midas do público, os breves hiatos nos filmes ditos cricris -- um deles, o policial "Massacre no Supermercado" (1968) --, logo substituídos pelas chanchadas e sátiras. Rodou na Atlântida, na Herbert Richers, montou a própria J. B. Tanko Filmes. Especializou-se na franquia de "Os Trapalhões", com alguns dos maiores momentos do grupo -- "Os Trapalhão nas Minas do Rei Salomão" (1977), "Os Saltimbancos Trapalhões" (1981).

Em 1979, no auge do quarteto, Tanko associa-se à Ventania Filmes, de Paulo Porto, para roteirizar e dirigir o chororô "As Borboletas Também Amam". Quase uma paródia involuntária de Nelson Rodrigues, tamanha a interseção com o dramaturgo -- já havia adaptado "Asfalto Selvagem", em 1964. Mesmo nascido no leste europeu, Tanko parece confirmar aquele triste princípio de que certos nacionais quando vêem algo bem feito copiam, e copiam tão ruim que acabam diluindo e estragando o prazer do original.

Assistindo-se a "As Borboletas Também Amam", o leitor ou vai necessitar reler (rever) Nelson correndo, ou passar longe do universo rodrigueano por enjôo do genérico.
“Borboletas" deveria ser um filme sobre prostituição e prostitutas, sobre as agruras do ofício. E começa olhando Mônica (Angelina Muniz), estudante de subúrbio, que carrega junto ao peito um fichário com adesivo de Roberto Carlos e sonha, impossivelmente sonha, em um dia mudar-se para Copacabana.

Sabemos que Mônica é “anjo caído”, pois relata suas desventuras para um sujeito fim-de-noite, em um bar calorento. Relutante em se abrir, filosofa: "Todo homem antes de ir pra cama quer ouvir uma história. Da mulher abandonada, do filho ilegítimo".


Depois, se empolga. A narrativa em flashback prossegue com a mocinha indo passear no bairro adorado e voltando pra casa de ônibus. Um dia, encontra a amiga Virgínia (Rossana Ghessa), que lhe informa sobre uma casa discreta, onde podem fazer dinheiro servindo a homens mais velhos. Nesse meio tempo, Mônica frequenta a famigerada New York Disco Laser -- a mesma boate de “Sábado Alucinante”, de Cláudio Cunha -- e conhece também Flávio (Arlindo Barreto), que começa a namorar.

Em uma série de coincidências só possíveis no cinema brasileiro, o melhor cliente de Mônica é um certo Raimundo (Paulo Porto), professor de Mônica e pai de Flávio. A piada involuntária do “Professor Raimundo”, traçando a aluna em um quarto de rendez-vous, agrada a quem tenha sido criança nos anos 80 e 90, mas aqui é somente dado soporífero. Paulo Porto vive Raimundo como um Herculano em baixa rotação, não sendo Angelina Muniz nenhuma Darlene Glória e muito menos o roteiro mequetrefe, pálido, algo à altura do gênio da Aldeia Campista.

“Só a morte sabe as verdades da vida”, frase de Goethe, estampa o prólogo dos créditos. Isso deve explicar o rocambole em que vamos nos metendo: Flávio é filho bastardo de Raimundo. A mãe, sabendo que o marido não podia ter filhos, após consultar o ginecologista Dr. Franz Miller (de segunda a sexta, das 15 às 18h), sai em viagem para engravidar do primeiro que aparecesse. No caso, um chofer de caminhão. Depois de contar toda a verdade, a mãe morre. Restam Flávio e o pai. Descobrindo a frequência de Raimundo com sua namorada no bordel, Flávio obriga o pai a casar-se com ela, “honrá-la”.

Macambúzio xarope, a história permite ao menos um passeio pelo Rio do final dos 70. Cheia do tutu com os programas, Mônica anda pra cima e pra baixo de rádio-táxi, opalas azuis que faziam o trajeto Galeão-Zona Sul até meados da década seguinte. Também gosta de espiar as vitrines da Sapasso, loja de calçados que ficava na Av. Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina da rua Figueiredo Magalhães. E, quando viaja de ônibus para fora da cidade, vai de Itapemirim, provavelmente os modelos Tribus, recém-lançados.

Amaldiçoada no cafofo copacabanense, Mônica tenta assumir seu emprego fictício, fachada para a profissão, o de "vendas exclusivas direto ao consumidor". Termina topando com Carlos Kurt, importado direto dos Trapalhões, que tenta estuprá-la junto com ninguém menos que Wilson Grey.

Somando-se Arlindo Barreto -- que seria o palhaço Bozo na TVS -- vivendo o filho do Professor Raimundo, Angelina Muniz poderia solicitar ao Fofão uma carona na nave de Adriano Stuart, outro profícuo diretor de filmes dos Trapalhões. Embora rico em ligações esdrúxulas, “As Borboletas Também Amam” é o tipo de drama que sequer envelheceu mal, pois já era antiquíssimo, com cara de Aída Cury, no mesmo período em que “Giselle” e “Império do Desejo” douravam no forno, prontos para serem lançados.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

A Menina e o Estuprador


Nos jogos eróticos da Boca havia sempre um mato, inferno verde onde personagens - notoriamente os femininos - expurgavam pecados e vícios. É dessa forma que encontramos a menina Vanessa (Vanessa Alves), subjugada pelo homem negro, que a coloca de bruços, levantando sua saia. Em seguida, descobrimos que nada daquilo acontecia de fato: Vanessa estava delirando. De certa forma, compartilha seu delírio com o do espectador, ávido na poltrona do cinema por uma espécie de punição, de humilhação ao ente mulher. Indefesa, bumbum inocente à mostra, disponível para um qualquer, Vanessa celebra nossos esgares sádicos, perversos. E reafirma o ethos selvagem e fascinante do meio em que sobrevivia como atriz.

Conrado Sanchez, diretor de "A Menina e o Estuprador" (1982), será lembrado para sempre na história do cinema brasileiro como o gênio de "Cinederela Baiana" (1998), cinebiografia de Carla Perez que tornou-se objeto de assombro. Porém, dezesseis anos antes de sua magnum opus, Conrado estreava na direção com essa produção baratíssima, feita às pressas por encomenda de Antonio Polo Galante. O roteiro que escreve e filma é Freud puro: Vanessa guarda um trauma. Esse trauma retorna através de sonhos/delírios. Lembrado, desrecalcado, o trauma deixa de ser trauma e Vanessa torna-se, repentinamente, feliz e plena. Toma banho de cachoeira, entrega-se de verdade a um namorado real.

Entre começo e fim o recheio é obsessivo, repugnante. Mas Conrado sabe, em última instância, que o ser humano é fraco e não presta. Portanto, gosta daquilo. A atriz Vanessa Alves era adolescente de 18, 19 anos, no auge da beleza física, e os seios, a boca e até as mãos ganham um aspecto de pureza devassada. Diferente de outras baluartes - Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Zilda Mayo - em que a sexualidade madura nos convida a sonhá-las plenamente, a de Vanessa Alves transparece inefável. Em ação magoa, dói, constrange.

À parte os problemas sexuais, Vanessa mora em uma casa típica das produções da Boca, escoltada pela empregada (Jussara Calmon) e pelo motorista Pedro (Zózimo Bulbul). A óbvia discussão sobre racismo na maneira em que se aborda a figura do negro é plenamente válida. Embora tudo se explique no final, há um exploitation, um sensacionalismo em volta dos abusos repetidos, como se a famosa sequência de Lucélia Santos em "Bonitinha Mas Ordinária" ganhasse um filme inteiro só pra si. Além disso, a trilha-sonora de Jairo Ferreira apela até para o lp "Missa Luba", do coro "Les Troubadours du Roi Baudouin". Imaginemos um filme em que uma heroína negra fosse estuprada por wasps ao som de "Yellow Rose of Texas" e teríamos a mesma exaltação da raça e seus símbolos como discrepância entre dois seres humanos. Nem D. W. Griffith, em sequência animadíssima, faria pior.

Pilotando um Passat branco, poltronas de couro, quatro portas, o motorista carrega Vanessa de um lado para outro, enquanto ela delira. Cabe à amiga libertina, Denise, as sequências de sexo "saudáveis", inclusive com o psicanalista (Rubens Pignatari) que atende ambas. Estávamos no limiar do pornô, o que gera observação interessante: em Vanessa, os algozes passam mãos, línguas, no máximo roçam o colo entre as suas pernas. Em Denise chega-se às vias de fato: no coito à beira da represa de Guarapiranga e no fellatio estilo cama-de-motel, lugar comum a partir daquele período em tantas cenas que os próprios atores e diretores não devem se recordar de nenhuma.

Talvez a maior qualidade de "A Menina e o Estuprador" esteja mesmo em seus aspectos deprimentes, torpes. Eles não nos iludem, não nos prometem nada. Não são a graça humorística de Cláudio Cunha em "Oh! Rebuceteio", nem tão pouco a vergonha de um Jean Garrett dirigindo pornôs sob pseudônimo. Conjugam a nudez de uma ninfeta lindíssima com fantasias imundas, sacodem psicologia de botequim e, ao fundo, ouvimos ainda "Another Brick in the Wall", do Pink Floyd. No meio de tantos brasileiros, descesse um marciano para também tirar uma casquinha de Vanessa, Antonio Polo Galante venderia tranquilamente o petardo como ficção científica. Tudo era uma questão do que o público acatasse. E o público andava turbinado, pronto para qualquer coisa.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

O Que é Isso, Companheiro?


O roteirista Leopoldo Serran faleceu no dia 20 de agosto de 2008, e pouca gente se deu conta de que o efeito da perda equivale a um maremoto. Em entrevista de 2001, concedida a Marco Freitas, Serran afirmava: “Nós estamos passando por uma ideologização e idealização de tudo. Ideologizaram a cultura, a religião, e ideologia, como se sabe, é a arma dos débeis mentais. É uma coisa triste...”

A frase, polêmica e deliciosa, serve de provocação a seu trabalho em “O Que é Isso, Companheiro?” (1997), baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira, direção de Bruno Barreto. Ao contrário do que muitos repetem (sob prisma ideológico, sectário) o filme de Barreto não chega a ser propriamente escândalo, ou afronta histórica. É apenas daquelas coisas que Barreto tenta, tenta, mas erra, desde o excelente “Romance da Empregada” (1987). Além disso, a obra de Fernando Gabeira, repleta de um dialeto ultrapassado, cheia de gírias que morreram antes das fronteiras de Ipanema, igualmente não ajuda.

Serran bem que se esforça para desidratar a metralhadora narcisista, auto-referencial, pseudo-psicanalítica, que é o texto do ex-guerrilheiro, lançado pela editora do Pasquim, a Codecri, em 79. Sobre Gabeira vale engrossarmos o lugar comum: toda a sua transição (ideológica) daria em cinebiografia bem mais interessante que o episódio do sequestro. Nasceu militante do MR-8, nas janelas da antiga sede do Jornal do Brasil; voltou do exílio em vibe odara, pansexual (sua fase ótima); e, de alguns anos pra cá, confundiu o discurso da vanguarda ecológica com o de liberal capitalista. Percebam que nem Arnaldo Jabor ou Paulo Francis mudaram tanto de opinião no simples espaço de uma vida.

É do Gabeira jovenzinho, chegado de Minas em 63, que livro e filme tratam. Um moço com ar de existencialista, no alter-ego Paulo (Pedro Cardoso), a quem o compêndio sobre aventuras da revolução parecia já estar sendo escrito antes mesmo do primeiro tiro. Engraçado é que Cardoso, ator sem muitos recursos, insere em Gabeira certos tiques de seu personagem sessentista anterior: o maluco-beleza Galeno, da minissérie “Anos Rebeldes”, exibida na Globo em 92.

“Estamos completando seis meses de imprensa censurada, a extrema direita se instalou no país e não dá nenhum sinal de que vai sair. Nós queremos saber, Arthur (Eduardo Moscovis), o que você pretende fazer a respeito?”. É com essa frase, batendo recordes nos marcadores de vergonha alheia, que Gabeira/Galeno dá a senha para o início da luta armada. Pretende arregimentar o amigo, e o amigo prefere sobreviver como ator em uma peça de Ibsen. Junto com Paulo vai César (Selton Mello), que também discursa uma cantilena impostada, no apartamento emoldurado por um pôster de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Sem nunca ter matado nem passarinho, mergulhando na clandestinidade, Paulo e os colegas descobrirão uma verdade incômoda: revoluções armadas oferecem risco de vida, geram mortes, separam famílias. A delicadeza dos garotos de classe média, em um primeiro momento, parece não combinar com aquilo. Mas eles estão dispostos a ir até o fim, treinando com o casca grossa Marcão (Luis Fernando Guimarães, pose irônica, rediviva da TV Pirata) e com Maria (Fernanda Torres), outra campeã em explicações didáticas.

Nem o roteiro nem a maneira como Barreto o filma concebem aquele bando inexperiente, vacilante, com alguma fagulha de heroísmo romântico. Sua posição heróica será forjada, sim, pela história, pelo futuro – como Fidel Castro desenhou no célebre discurso, quando da sua prisão e julgamento, 1953-54. Neste vagar de sentimentos, de angústias e esperanças, eles decidem por uma ação ousada: o sequestro do embaixador dos EUA, Charles Elbrick (Alan Arkin), para a troca de 13 presos políticos.

A convivência com o seqüestrado, a chegada de companheiros mais experientes – Toledo (Nelson Dantas) e Jonas (Matheus Nachtergaele) – transformam-se em reles pano de fundo para uma historinha de ação, suspense. O interrogatório do embaixador – a cargo de Jonas, que aponta uma arma na cabeça do homem, tentando enquadrá-lo – nos faz sonhar com uma esplêndida participação especial de Jece Valadão, soltando um “shut up, gringo” e mostrando toda a malícia e o veneno da luta anti-imperialista nacional. Infelizmente, em 97, o cinema brasileiro já seguia frouxo.

Baixíssima densidade psicológica salva a narrativa de mergulhar no distorcido protagonismo de Gabeira. Mesmo assim, a verossimilhança do filme sofreu críticas por várias testemunhas dos fatos, ao que Barreto responderia sofismando tratar-se de obra de “ficção” (?). Já Serran, na supracitada entrevista de 2001, afirma sobre as esquerdas: “(...) essa gente anda em bando, tentando me aporrinhar a vida...”.

Ponto para ambos terem ficado em saia justa: ora patrulhados por quem julgava a história uma ode aos seqüestradores, ora por quem cheirava naquilo “higienização” da realidade, edulcoração quase hollywoodiana, bem ao gosto da retomada do cinema brasileiro na metade dos anos 90. E, enquanto se discutia nos corredores universitários, nas salas de aula da Puc, se o filme era de direita, esquerda ou de ladinho, ninguém atinou o meio-termo de que, por ser fraquíssima, água morna, a produção nem tem fôlego para uma tomada honesta e declarada de posição.

Sensacionalismo erótico – Reneé (Cláudia Abreu, outra egressa de “Anos Rebeldes”) dorme com o chefe de segurança da embaixada (Milton Gonçalves); a conversa de torturadores sobre uma torturada que casou com seu algoz – mescla-se ao desamparo infantil de Maria. Acaba aos beijos com Paulo, a dizer que nem todo a utopia do mundo resolveria sua carência de afeto. Filmes esquecíveis são feitos desta matéria mal digerida, instantâneos e colagens grotescas, absurdas.

Ao lado de “A Paixão de Jacobina” (2002), descobrimos o pior trabalho escrito por Serran. Talvez por não acreditar no sonho (na ideologia) dos garotos, talvez por não conseguir desconstruí-la de modo satisfatório ou talvez pelas amarras impostas por um aparato de esforço oscarizável, despacho de umbanda para Hollywood. São ilações que nutrem uma certeza: quanto mais os anos passam, o cruel e paranóico “Pra Frente Brasil” (1983) melhora a olhos vistos. Já “O que é Isso, Companheiro?” e meia dúzia recentes – que tal "Em Teu Nome" (2009)? – montam coleção jabuticaba, de como não se olhar uma passagem que ainda é ferida aberta no país.

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Lilian M.: Relatório Confidencial


Lilian M., sanguinária, invertida, marafona que abandona o lar para se corromper em um coquetel de luxúrias por aí. Essa dona sem eira nem beira, mulher indigna que se esfacela em mil personalidades – e entes fílmicos – quando lhe acopla no cangote um novo e sorrateiro amor.

Nascida na roça, plantadora de chuchus – mais barato não há –, desde sempre o lenço amarrado na cabeça, o vestido de chita. Como ousou a criatura desprezar os rostinhos, as mãozinhas e os pezinhos dos filhinhos que teve, feliz, no matrimônio? Evadiu. Estrada afora. Francamente, has left the building.

Consta que antes de “Lilian”, chamou-se “Maria” – guardamos a pista, pois aí está o “M” da personagem. Esposa de José, Maria não teve as “pequenas mortes”, aquilo que os franceses – esse povo do estrangeiro, que dá pulinhos – gostam de citar. Com o marido era frígida, José lhe cobria, engolida pelo quarto sombrio. Com os homens na selva grande, Lilian – nome da mãe de um namorado – cede aos encantos da pele. Calça Levi's, decote, batão, blush.

Filme de Carlos Oscar Reichenbach Filho, dedicado à mãe, Lula (Louise) Reichenbach – outros “Ls” para o “M”.“Lilian M.: Relatório Confidencial” (1975) ou “Confissões Amorosas” ou “Tragicomédia de Aventuras”, vulgata ecumênica de estilos.

Desenrola um Godard – “Viver a Vida”, Anna Karina e a prostituição –;
Shohei Imamura Mulher Inseto, a entidade feminina; Samuel Fuller – “Naked Kiss”, a pulp fiction. Todos lembrados abertamente pelo diretor.

Mas deve-se dizer que “Lilian M.” é também hipérbole de exploitation, saltos agulha, bunker irreal da represa Billings, industriais opulentos, homens famintos. O elemento da chanchada brasileiríssima – o caixeiro-viajante e o grileiro parecem Zé Trindades em alta rotação, verborrágicos – que deglute o nem sempre lembrado Bo Arne Vibenius, de “Thriller, A Cruel Picture”. Constate-se a bela cena de José atochando a esposa, desesperançada.

Na estrutura narrativa, escolhe o caminho subversivo do diálogo, dentro e fora da tela. Confusão para a audiência, algo que os censores atentos e honestos deveriam fazer constar em parecer. Porque, senhores, não bastasse a protagonista ser Lilian e também Maria (Célia Olga Benvenutti), não é que a moça conversa com a equipe que realiza o próprio filme – e disso resulta o próprio filme? Um dos técnicos é colocado em primeiro plano; o diretor, ouve-se em alto e bom som. Reichenbach executa a dublagem – como de costume em sua obra; ora narrador, ora personagens aleatórios.

Para que tantos truques e libidinagem, aonde foi parar a juventude que, aliás, poderia gostar da correria, das mudanças de ares pelos quais passa Lilian a cada minuto. Atitude meridional, a ser tomada: libera-se “Lilian M.”, vá lá, mas com cortes. Retalhado pela faca, precisará da aceitação externa, em festivais alienígenas de cinema, para se eternizar. Mesmo fenômeno sofrido por “Amor, Palavra Prostituta” (1981). Excesso de liberdade que ataca os pilares, bem ornados, da soberania nacional. Isto aqui não é Christiania.

Com a falta de pudor das libertinas – nome, aliás, do longa de estréia de Reichenbach, em que assina o episódio “Alice”–, Lilian aparece na cama, deitada no apartamento que herdou do amante inaugural, Braga (Benjamin Cattan). Os entrevistadores e o público a acompanham – vejam o narcisismo, a exposição dupla, pois ela sabe que conversa para multidões. Cá entre nós, Lilian queimaria sutiãs em praça pública. Devia consumir pílulas contraceptivas, pecadora irredimida, ímpia.

No rosto duro de Benvenutti encontra-se um desempenho imemorial. Trágico, farsante, conduz o épico que prefere ser e não ser. Assume a grandiosidade ao contar o rito de travessia; deixa-a de lado quando se pretende dela uma cara formal, acadêmica. Lilian chega desconjuntada à Praça da Sé, à rua São Bento, ao assassinar o caixeiro-viajante (Walter Marins) que roubara-lhe do marido – morte espetaculosa, de propósito, em nada lembrando as libertações tradicionais das heroínas em flor.

Sucessão de eventos cáusticos, remexe verticalmente para o mundo abissal. Braga, o filho Fausto (Washington Lasmar) e Lilian cometem o coito. Braga definha, Fausto agrava nas crises, vai para o hospício, sabe-se que espalha as fezes pelo quarto – versão niilista, impensada por Goethe para o rebento famoso. E se o pai faleceu – ou vira colega de estripulia –, tudo se torna possível. Próxima etapa de Liliam: Herr Hartmann (Edward Freund), que a conhece massagista, formada em cursinho.

Houvesse uma estrebaria e cavalos na mansão de Hartmann, adentraríamos no terreno do mito equino, bem cogitado por “Emanuelle in America” – quase contemporâneo, 1977. Mas o sexo em “Lilian M.” não é tão ostensivo, sendo bem mais sugerido. Toca ainda em algumas brechas de cunho político-anárquico, caras a Reichenbach. O diretor confirma, por exemplo, que Hartmann brotou de uma nostalgia por Henning Boilensen, o luva-negra que auxiliava a Operação Bandeirante, semente dos DOI-CODIs.

Enquanto envolvida com Hartmann, Lilian engata o especulador imobiliário Vivaldo Lobo (Wilson Ribeiro). Para descobrir quais as intenções do moço que tenta vender um terreno, Herr contrata o detetive Shell Scorpio, vivido por José Júlio Spiewak – crítico de cinema, próximo de Rubem Biáfora. No misto de José Carlos Burle e filme B da American International Pictures, Scorpio se embrenha na hilária caçada de táxi (Genésio Arruda, coadjuvante da Boca, faz o taxista) ao encontro do grileiro. Scorpio morre, suas bonequinhas de louça – algumas guardadas dentro da geladeira – devem ter ficado inconsoláveis, tanto quanto Lilian Maria que flerta com um bandido priápico (Chico, Lee Bujyja), se entrega à interdição, antes de abraçar o Sr. Gonçalves (Sérgio Hingst).

Gonçalves trabalha num canto qualquer de burocracia, enfrenta a chefe cruel (Lygia Reichenbach, esposa de Carlos, outro “L” na trama). Cordato, penteado, Lilian tenta uma etapa ordeira, lavar suas roupas, costurar suas camisas, rivalizar com a cunhada insana (Lucivalda, Maracy Mello). Trecho interessante, Lucivalda parece animista, tateando as paredes, os lençóis, contando histórias mórbidas sobre a casa.

Como a aventura de Gonçalves vibra mais pela linha da bondade do que pelo prazer, os dois se despedem numa estação da Fepasa, separados pela catraca, que roda lenta. Lilian desce pela estrada, chega de valise bonita, abraça os filhos, ama José – por minutos que sejam. Desta vez o amor pleno, ensina-o ao marido. Antes de aparecer o sol, larga a casa, como o gato que desaparece e deixa, impressionista, o sorriso.

Carlos Alberto Prates Correia em “Perdida” – outro contemporâneo de luxo, 1975 –, narra as desventuras de outra estrela em fuga, prostituta. Na massa de novas referências, existe um “regionalismo cosmopolita” em Prates, banhado de Minas e do universo, de poética inovadora. O que é gritantemente urbano em “Lilian M.”, assume feição diferente em “Perdida”. A cidade está no depois, apesar de ser cogitada nas idiossincrasias do fim de mundo. Lilian, por sua vez, abandona a roça para ir à metrópole, retorna a ela e quem sabe – nada confirmado – atingirá o grande centro mais uma vez. “Perdida” embarca em outra miração, tempos compassados, frenesi íntimo, sem a exteriorização agressiva que marca Lilian.

Enquanto assistia da janela ao milagre econômico, Reichenbach cofiava as madeixas no escritório dos Serviços Publicitários Jota Filmes – métier que sustentou vários colegas de cinema, alguns emigrando de São Paulo. Inquieto na versão engomada, decide aproveitar sobras de material em que pudesse injetar um filme, o libelo redentor, a catarse daquele momento estranho de vida.

Pelo sem número de aspectos seus, pessoais, “Lilian M.” surge como marco zero. Inclui a atenção com a trilha sonora – standards em inglês, português e alemão, Chico Viola, pré-Segunda Guerra, 78 rotações –, que Reinchenbach assumiria em dias futuros, compondo as partituras. Emplaca roteiro, direção, fotografia, deixa a montagem a cargo de um Inácio Araújo crivado pelas bençãos de Fauzi Mansur – “A Noite do Desejo” (1973) – e Cláudio Cunha – “O Dia em que o Santo Pecou” (1975).

Concluído o exorcismo, o bode negro que o rondava, Carlos Reichenbach elabora parceria aliviada com o cinema. Faz nele um rodopio metalinguístico
desses que invadem “Lilian M.”: descubram o rapaz alto, bancando o brutamontes, no filmete incidental que os personagens vêem na sala escura. Quem o encarasse de perto na cena, furibundo, arrastando os braços, bem poderia colocá-lo na vertente doce de degenerado. Reza a lenda, contada ontem no Marabá, que foi com aquele tipo que Lilian – a pagã, liberta, incendiária – se encontrou depois de José. Abriram a valise, rezaram um prece a Orlando Parolini e, incrédulos, um se viu espelhado no outro.