quarta-feira, janeiro 05, 2011

Lilian M.: Relatório Confidencial


Lilian M., sanguinária, invertida, marafona que abandona o lar para se corromper em um coquetel de luxúrias por aí. Essa dona sem eira nem beira, mulher indigna que se esfacela em mil personalidades – e entes fílmicos – quando lhe acopla no cangote um novo e sorrateiro amor.

Nascida na roça, plantadora de chuchus – mais barato não há –, desde sempre o lenço amarrado na cabeça, o vestido de chita. Como ousou a criatura desprezar os rostinhos, as mãozinhas e os pezinhos dos filhinhos que teve, feliz, no matrimônio? Evadiu. Estrada afora. Francamente, has left the building.

Consta que antes de “Lilian”, chamou-se “Maria” – guardamos a pista, pois aí está o “M” da personagem. Esposa de José, Maria não teve as “pequenas mortes”, aquilo que os franceses – esse povo do estrangeiro, que dá pulinhos – gostam de citar. Com o marido era frígida, José lhe cobria, engolida pelo quarto sombrio. Com os homens na selva grande, Lilian – nome da mãe de um namorado – cede aos encantos da pele. Calça Levi's, decote, batão, blush.

Filme de Carlos Oscar Reichenbach Filho, dedicado à mãe, Lula (Louise) Reichenbach – outros “Ls” para o “M”.“Lilian M.: Relatório Confidencial” (1975) ou “Confissões Amorosas” ou “Tragicomédia de Aventuras”, vulgata ecumênica de estilos.

Desenrola um Godard – “Viver a Vida”, Anna Karina e a prostituição –;
Shohei Imamura Mulher Inseto, a entidade feminina; Samuel Fuller – “Naked Kiss”, a pulp fiction. Todos lembrados abertamente pelo diretor.

Mas deve-se dizer que “Lilian M.” é também hipérbole de exploitation, saltos agulha, bunker irreal da represa Billings, industriais opulentos, homens famintos. O elemento da chanchada brasileiríssima – o caixeiro-viajante e o grileiro parecem Zé Trindades em alta rotação, verborrágicos – que deglute o nem sempre lembrado Bo Arne Vibenius, de “Thriller, A Cruel Picture”. Constate-se a bela cena de José atochando a esposa, desesperançada.

Na estrutura narrativa, escolhe o caminho subversivo do diálogo, dentro e fora da tela. Confusão para a audiência, algo que os censores atentos e honestos deveriam fazer constar em parecer. Porque, senhores, não bastasse a protagonista ser Lilian e também Maria (Célia Olga Benvenutti), não é que a moça conversa com a equipe que realiza o próprio filme – e disso resulta o próprio filme? Um dos técnicos é colocado em primeiro plano; o diretor, ouve-se em alto e bom som. Reichenbach executa a dublagem – como de costume em sua obra; ora narrador, ora personagens aleatórios.

Para que tantos truques e libidinagem, aonde foi parar a juventude que, aliás, poderia gostar da correria, das mudanças de ares pelos quais passa Lilian a cada minuto. Atitude meridional, a ser tomada: libera-se “Lilian M.”, vá lá, mas com cortes. Retalhado pela faca, precisará da aceitação externa, em festivais alienígenas de cinema, para se eternizar. Mesmo fenômeno sofrido por “Amor, Palavra Prostituta” (1981). Excesso de liberdade que ataca os pilares, bem ornados, da soberania nacional. Isto aqui não é Christiania.

Com a falta de pudor das libertinas – nome, aliás, do longa de estréia de Reichenbach, em que assina o episódio “Alice”–, Lilian aparece na cama, deitada no apartamento que herdou do amante inaugural, Braga (Benjamin Cattan). Os entrevistadores e o público a acompanham – vejam o narcisismo, a exposição dupla, pois ela sabe que conversa para multidões. Cá entre nós, Lilian queimaria sutiãs em praça pública. Devia consumir pílulas contraceptivas, pecadora irredimida, ímpia.

No rosto duro de Benvenutti encontra-se um desempenho imemorial. Trágico, farsante, conduz o épico que prefere ser e não ser. Assume a grandiosidade ao contar o rito de travessia; deixa-a de lado quando se pretende dela uma cara formal, acadêmica. Lilian chega desconjuntada à Praça da Sé, à rua São Bento, ao assassinar o caixeiro-viajante (Walter Marins) que roubara-lhe do marido – morte espetaculosa, de propósito, em nada lembrando as libertações tradicionais das heroínas em flor.

Sucessão de eventos cáusticos, remexe verticalmente para o mundo abissal. Braga, o filho Fausto (Washington Lasmar) e Lilian cometem o coito. Braga definha, Fausto agrava nas crises, vai para o hospício, sabe-se que espalha as fezes pelo quarto – versão niilista, impensada por Goethe para o rebento famoso. E se o pai faleceu – ou vira colega de estripulia –, tudo se torna possível. Próxima etapa de Liliam: Herr Hartmann (Edward Freund), que a conhece massagista, formada em cursinho.

Houvesse uma estrebaria e cavalos na mansão de Hartmann, adentraríamos no terreno do mito equino, bem cogitado por “Emanuelle in America” – quase contemporâneo, 1977. Mas o sexo em “Lilian M.” não é tão ostensivo, sendo bem mais sugerido. Toca ainda em algumas brechas de cunho político-anárquico, caras a Reichenbach. O diretor confirma, por exemplo, que Hartmann brotou de uma nostalgia por Henning Boilensen, o luva-negra que auxiliava a Operação Bandeirante, semente dos DOI-CODIs.

Enquanto envolvida com Hartmann, Lilian engata o especulador imobiliário Vivaldo Lobo (Wilson Ribeiro). Para descobrir quais as intenções do moço que tenta vender um terreno, Herr contrata o detetive Shell Scorpio, vivido por José Júlio Spiewak – crítico de cinema, próximo de Rubem Biáfora. No misto de José Carlos Burle e filme B da American International Pictures, Scorpio se embrenha na hilária caçada de táxi (Genésio Arruda, coadjuvante da Boca, faz o taxista) ao encontro do grileiro. Scorpio morre, suas bonequinhas de louça – algumas guardadas dentro da geladeira – devem ter ficado inconsoláveis, tanto quanto Lilian Maria que flerta com um bandido priápico (Chico, Lee Bujyja), se entrega à interdição, antes de abraçar o Sr. Gonçalves (Sérgio Hingst).

Gonçalves trabalha num canto qualquer de burocracia, enfrenta a chefe cruel (Lygia Reichenbach, esposa de Carlos, outro “L” na trama). Cordato, penteado, Lilian tenta uma etapa ordeira, lavar suas roupas, costurar suas camisas, rivalizar com a cunhada insana (Lucivalda, Maracy Mello). Trecho interessante, Lucivalda parece animista, tateando as paredes, os lençóis, contando histórias mórbidas sobre a casa.

Como a aventura de Gonçalves vibra mais pela linha da bondade do que pelo prazer, os dois se despedem numa estação da Fepasa, separados pela catraca, que roda lenta. Lilian desce pela estrada, chega de valise bonita, abraça os filhos, ama José – por minutos que sejam. Desta vez o amor pleno, ensina-o ao marido. Antes de aparecer o sol, larga a casa, como o gato que desaparece e deixa, impressionista, o sorriso.

Carlos Alberto Prates Correia em “Perdida” – outro contemporâneo de luxo, 1975 –, narra as desventuras de outra estrela em fuga, prostituta. Na massa de novas referências, existe um “regionalismo cosmopolita” em Prates, banhado de Minas e do universo, de poética inovadora. O que é gritantemente urbano em “Lilian M.”, assume feição diferente em “Perdida”. A cidade está no depois, apesar de ser cogitada nas idiossincrasias do fim de mundo. Lilian, por sua vez, abandona a roça para ir à metrópole, retorna a ela e quem sabe – nada confirmado – atingirá o grande centro mais uma vez. “Perdida” embarca em outra miração, tempos compassados, frenesi íntimo, sem a exteriorização agressiva que marca Lilian.

Enquanto assistia da janela ao milagre econômico, Reichenbach cofiava as madeixas no escritório dos Serviços Publicitários Jota Filmes – métier que sustentou vários colegas de cinema, alguns emigrando de São Paulo. Inquieto na versão engomada, decide aproveitar sobras de material em que pudesse injetar um filme, o libelo redentor, a catarse daquele momento estranho de vida.

Pelo sem número de aspectos seus, pessoais, “Lilian M.” surge como marco zero. Inclui a atenção com a trilha sonora – standards em inglês, português e alemão, Chico Viola, pré-Segunda Guerra, 78 rotações –, que Reinchenbach assumiria em dias futuros, compondo as partituras. Emplaca roteiro, direção, fotografia, deixa a montagem a cargo de um Inácio Araújo crivado pelas bençãos de Fauzi Mansur – “A Noite do Desejo” (1973) – e Cláudio Cunha – “O Dia em que o Santo Pecou” (1975).

Concluído o exorcismo, o bode negro que o rondava, Carlos Reichenbach elabora parceria aliviada com o cinema. Faz nele um rodopio metalinguístico
desses que invadem “Lilian M.”: descubram o rapaz alto, bancando o brutamontes, no filmete incidental que os personagens vêem na sala escura. Quem o encarasse de perto na cena, furibundo, arrastando os braços, bem poderia colocá-lo na vertente doce de degenerado. Reza a lenda, contada ontem no Marabá, que foi com aquele tipo que Lilian – a pagã, liberta, incendiária – se encontrou depois de José. Abriram a valise, rezaram um prece a Orlando Parolini e, incrédulos, um se viu espelhado no outro.

8 comentários:

André Setaro disse...

Considero "Lilian M", do Comodoro, um dos mais inteligentes filmes brasileiros. Mudando de assunto, há um cineasta brasileiro que precisa, e urgentemente, ser reabilitado: Flávio Tambellini, que fez, entre outros, 'O beijo' (melhor do que a versão de Bruno), 'Relatório de um homem casado', 'A extorsão', 'Um whisky antes...um cigarro depois'. Também entrou no 'index' cinemanovista. O filho dele, Flávio também, solicitou a restauração de 'O beijo' à Cinemateca Paulista, mas o pedido lhe foi negado. Absurdo!

pseudo-autor disse...

Tenho procurado Lilian M. pra baixar, mas sem sucesso, há mais de dois anos. Quero muito ver, mas conseguir acesso a certas produções nacionais é uma tarefa árdua. No caso deste, até nos meios ilegais está complicado.

Cultura na web:
http://culturaexmachina.blogspot.com

José Rodolfo disse...

Adorei Lilian M. quando vi. E não sabia que tinham sido mutilados os filmes para ir a festivais estrangeiros.


André Setaro,

Concordo com você. "Um whisky antes... um cigarro depois" é ótimo! Principalmente o último segmento. Tenho um trecho do filme no meu canal do youtube. (deixo o link...)

Andrea Ormond disse...

Setaro, concordo, o "Lilian M." se destaca na filmografia brasileira. Em breve vou falar do Tambellini. Gosto bastante do "Um uísque antes, um cigarro depois". É aquela situação que se repete, essas condenações em vida e após a morte. Uma paranóia horrorosa, descaso total.

pseudo-autor, o "Lilian M." está fácil de encontrar, saiu há pouco tempo em dvd.

José Rodolfo, na realidade o filme foi retalhado e precisou ir ao exterior para ser habilitado enquanto obra. Ganhou prestígio. Bela seleção no seu canal do Youtube.

Markito disse...

Tem no meu blog pra baixar..


Texto maravilhoso da Andrea...como sempre.

Alías esse filme me irrita na mesma proporção que me encanta.

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Markito. Entendo o que vc quer dizer. O "Lilian M." não é muito fácil, meio espinhoso de se assistir mas fascina.

mãe lilia disse...

INCRÍVEL ESSE SEU TEXTO, LI OUTROS SEMANA PASSADA, COINCIDÊNCIA, MAS A DE HJ FOI FODA! BEM, a gente vai se conhecer!

ADEMAR AMANCIO disse...

Vou procurar o filme correndo,estou vendo um vídeo com a Andrea Ormond falando sobre esse filme.