quinta-feira, dezembro 29, 2005

Estrela Nua


A morte era obsessão para Nelson Rodrigues. Suburbano universal, criado no então longínqüo bairro de Aldeia Campista, no Rio, Nelson aproximava-se da morte com a curiosidade dos tempos de menino, quando assistia de calças curtas a velórios “sicilianos”, em que as viúvas agarravam-se aos caixões.

Nelson partiu aos 68 anos, em 21 de dezembro de 1980. Enquanto celebravam-se ainda os vinte e cinco anos de seu desaparecimento, no dia 22 do mesmo mês de 2005, há exatamente uma semana atrás, falecia prematuramente o diretor José Antônio Garcia, aos 50 anos de idade.

Além de “O Corpo” (1991), filme que sempre surge à tona quando se toca na produção cinematográfica de José Antônio, a trilogia formada por “O Olho Mágico do Amor” (1981), “Onda Nova” (1983) e “Estrela Nua” (1984) é particularmente saborosa. São obras da mais plena juventude e todas elas co-dirigidas em parceria com o amigo Ícaro Martins.

O roteiro de Garcia “Estrela Nua” traz também uma ponte interessante para o imaginário de Nelson Rodrigues – aspecto nem sempre diagnosticado por parte da crítica –, em um elo de ligação que reflete o entendimento artístico entre os dois.

Glória, dubladora escolhida para substituir Ângela (Cristina Aché) – estrela de cinema, vítima de um acidente de carro –, incorpora fantasmagoricamente a personagem vivida pela atriz. Incestuosa, a personagem de Ângela era adepta de um romance doentio com o pai, levado às últimas consequências com todas as fantasias do gênero.

“O Casamento” – livro célebre de Nelson, espécie de “Ritual dos Sádicos” da literatura nacional, em função dos problemas com a censura – tinha uma mesma personagem central chamada Glória, filha do Dr. Sabino, que sublimava o amor carnal pelo pai através de gestos e atenções. José Antonio e Ícaro colocam o pé no acelerador e em diálogos explícitos ou subentendidos, usam da mitologia rodrigueana combinada com a tendência de subversão da linguagem fílmica.

Mas este é apenas um dos fragmentos que encantam o espectador de “Estrela Nua”. São muitas as informações jogadas pela dupla e que vão se acumulando. Clarice Lispector – lida por Glória e recuperada na narrativa –; cigarros Hollywood – nem tanto pelo merchandising, mas pela lembrança do cinemão americano –; o poster de “Quelé do Pajeú” – filme maldito de Anselmo Duarte –; as músicas dos Mutantes – quando pairava sobre o grupo um certo ostracismo, nos anos oitenta –; Jean-Luc Godard de “Uma Mulher é Uma Mulher” – no apelo bastante feminino do filme.

Assim, a manipulação das regras do cinema – traço marcante em outro colega de “geração” da dupla, Guilherme de Almeida Prado – é um mote utilizado diversas vezes. Quando acaba a projeção, percebemos que na verdade assistimos a três filmes embalados em um único: o “Estrela Nua” de Garcia e Martins; o outro, dublado por Glória; e o terceiro, sonhado por Glória e Ângela, quando então percebemos que são amantes.

Outra característica da trilogia Garcia-Martins está nos personagens homossexuais – lésbicas e gays –, com a non-chalance de quem não via neles qualquer tabu que desmerecesse sua apresentação ao público brasileiro. Moralistas e conservadores devem ficar até hoje com os pêlos em pé ao acompanharem as andanças de Glória e Ângela, do casal Tamara (Vera Zimmerman) e Renée (Selma Egrei), além de Serginho (Patricio Bisso, na voz de Sérgio Mamberti), freqüentador de sauna gay.

Há também uma trupe de profissionais repetida nos filmes, o que os torna afetivamente próximos dos projetos que os diretores criavam. Camurati e Moreyra aparecem nos três, Bisso e Zimmerman em “Estrela Nua” e “Onda Nova”, Arrigo Barnabé – músico e ator em “O Olhar” e “Estrela Nua”. José Antônio e Ícaro surgem em aparições-relâmpago.

A capacidade de superação da dupla sofreria com a política czarista dos anos Collor. Separados, cada qual tocaria suas atividades, ampliando mesmo a atuação, dividida entre o cinema e o teatro. José Antônio dirigiu em 2005 a peça “A Pecadora Querimada e os Anjos Harmoniosos”, baseada uma vez mais nos escritos de Clarice Lispector – como havia sido “O Corpo” e as citações de “Estrela Nua”.

Para relembrá-lo, vale assistir seus divertidíssimos filmes, repletos de um humor sacana e gaiato que não existe mais. E acima de tudo, pensar na arte como o gigante que engole o mundo, e que despreza a barreira misteriosa da morte, eternizando a vida.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

Paixão na Praia


Em 1964, Alfredo Sternheim andava pelos corredores da Vera Cruz, como assistente de direção de Khouri em “Noite Vazia”. Sete anos depois, dirigiu seu longa de estréia, “Paixão na Praia”. Norma Bengell – a escorte de “Noite Vazia” – foi escolhida para estrelá-lo. Sternheim aproveitou o pano de fundo da beira-mar – visível em “A Ilha” (1963), também de Khouri, também auxiliado por ele –, voltando a essa ambientação em outro grande filme, “Pureza Proibida” (1974), produzido pela atriz Rossana Ghessa.

Claro que todo esforço criador conjuga detalhes que são pensados tanto consciente quanto inconscientemente. Se a memória avança sobre o plano da racionalidade, isto se dá porque algum vínculo, digamos afetivo, se estabeleceu entre o autor e seus referenciais. Desta forma, é prazeroso vermos em “Paixão na Praia” o talento diferenciado de Sternheim, que constrói em 100 minutos um monumento próprio, mas embebido vez por outra de caracteres khourianos.

“Paixão na Praia”, ao contrário do idilismo de “Pureza Proibida”, passa-se em um centro urbano, Rio de Janeiro, e conta com o fio-mestre do assalto à casa de um magnata. Débora (Bengell), de trinta e poucos anos, é a esposa do industrial atraído para São Paulo após crimes cometidos contra suas propriedades. Pedro (Adriano Reys) e Jairo (Ewerton de Castro) – autores dos atentados – invadem a mansão no Rio, supondo que estivesse vazia com a saída do milionário, mas deparam-se com Débora, infeliz como sempre, nos estertores da crise conjugal.

Pedro e Jairo prendem a empregada e o motorista na cozinha. Débora, entretanto, é a ponta solta: não sabem o que fazer com ela. Nisto encontramos a tensão e razão de ser de “Paixão na Praia”. O que seria um ato de violência puro e simples, vai se configurando num misto de culpa, revolta e amor, a partir do triângulo formado pela moça e pelos dois rapazes.

Jairo atende pelo vértice mais voraz do polígono. Bruto, imaturo, ex-empregado do ricaço, o tipo de garoto que gosta de qualificar de “burguezinhos” os sentimentos de Pedro, um gentleman apaixonado. Débora corresponde ao carinho de Pedro, apesar de repetir em diversas oportunidades o fato de ter uma filha, e do quanto isto é o essencial de seu casamento. Como a menina não está por perto, Débora e Pedro circulam, andam de mãos dadas, vão a festas de casais vizinhos, experimentam a fantasia da traição, que Débora histericamente repele mas histericamente abraça.

A chegada da Baronesa (Lola Brah), chefona do grupo, causa instabilidade no relacionamento. Ex-namorada de Pedro, funciona como válvula de escape para Jairo, furibundo, bem mais a fim de estuprar e pilhar do que conversar por longas horas, madrugada adentro. Os ataques da Baronesa deixam Débora e Pedro isolados – note-se que a esta altura Pedro não é mais o simples assaltante do início, e constrói com Débora um terceiro núcleo narrativo, diferenciado do núcleo familiar de Débora e do núcleo-base dos marginais.

A Baronesa ordena uma resolução para aquele estado de coisas. No que parece ser um ataque primitivo de ciúme, desta vez de Jairo por Pedro, Jairo fuzila o comparsa com uns tiros, pouco depois é alvejado pela chefa, que por sua vez leva um tiro de Jairo, agonizante. Os subversivos que acreditavam na revolução – aos poucos percebemos que não eram tão somente bandidos – morrem ao mesmo tempo, deixando como herança para Débora a coragem de desfazer o casamento.

“Paixão na Praia” opera com grande segurança em um roteiro – igualmente de Sternheim, também jornalista e escritor, autor do recente e obrigatório “Cinema da Boca - Dicionário de Diretores” – que não se contenta com conflitos rasteiros. Os bandidos não matam e vão embora. Pelo contrário, um deles se apaixona à primeira vista. Existe também algo de mágico na morte quase simultânea dos três foras-da-lei, assemelhando-se a uma cena das antigas matinês.

"Paixão na Praia" não se trata portanto de um panfleto político, nem de um romance triste, tampouco de um thriller policial nos moldes clássicos. É antes de tudo uma bela estréia, de um cineasta a ser notado, que na incerteza do ofício praticado concluiu filmes que merecem reavaliação justa e urgente.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

O Homem de Papel


Certos filmes se guardam por um personagem-símbolo. Outros, por um ator ou atriz que os sustenta, atraindo para si a atenção do público. Em um terceiro caso, existem filmes lembrados por cenas únicas, inesquecíveis, que parecem transcender a própria obra onde estão inseridas. No caso de “O Homem de Papel” (1976) temos um misto desses três fenômenos. Quase esquecido nos dias de hoje, quem ainda se recordar de “O Homem de Papel” certamente o fará por conta do personagem-jornalista, vivido com a precisão desleixada de Milton Moraes, que na cena final, faz uma careta absurda, digna de qualquer antologia ou almanaque, como se o ator, o personagem e o roteiro, só tivessem sentido por sua expressão histriônica e debochada eternizada em celulóide.

Apesar do caco magistral, o filme dirigido por Carlos Coimbra – montador de dezenas de clássicos do cinema brasileiro – não vai muito longe: a escolha de um intérprete mítico, isoladamente responsável por uma atmosfera artística tão rica, prejudica o restante da trama, que perde a graça quando ele sai de cena. Carismático, sisudo, perplexo, o monstro sagrado Milton Moraes acertava até distraído, valendo por um batalhão de atores, num timing que ia da comédia escrachada ao drama pesado.

Moraes vive Carlos, repórter policial, picareta louco pela fama, envolvido sem querer no comércio internacional de armas, após inventar uma matéria para impressionar Raul (José Lewgoy), editor-chefe de “A Tribuna”, onde trabalha. Seguidas ameças de morte e perseguições de carro – Dodges e Caravans – fazem Carlos desprezar o amor da noiva (Terezinha Sodré) e ceder à vamp Renata (Vera Gimenez). Em cena antológica, o herói, empapado de suor, por uns 10 minutos alternando o olhar entre a direção e o espelho retrovisor, correndo pelas ruas estreitas de Fortaleza – terra natal de Milton –, decide pelo óbvio. “Preciso fazer alguma coisa”. Até aí, não há dúvidas. “Vamos ao lugar onde tem a melhor batida da cidade”, e cede a um rompante etílico.

A trama é rocambolesca, com desfechos imprevisíveis, tiros, sedução – Gimenez cuida deste ínterim –, criando um sururu que mistura “Panteras”, “Columbo” e “Kojak”. A cidade de Fortaleza, entretanto, é um diferencial curioso. Raríssimas vezes aproveitou-se uma capital do Nordeste para cenário de um thriller urbano. Assistimos a pescadores, rodas folclóricas, músicas-tema sobre a grandeza regional e “O Homem de Papel” transforma-se num policial solar, com praias e dunas que via de regra surgem como elementos centrais da ação.

Por este caminho, o que era para ser restrito se amplia, por que as sucessivas mudanças sobre quem sairá vencedor do duelo – Carlos ou a gangue – são acompanhadas de um qüiproqüó magistral, levado com perfeição pela cara-de-pau do protagonista. Algumas críticas do filme, entretanto, são óbvias demais. A certa altura Carlos proclama um parecer contra Raul, que supostamente uniu-se aos “outros mercenários capitalistas” e não acredita mais no velho contratado. Em outra ocasião, um morto é encontrado na areia, atravessado por uma faca no pescoço, sendo levado ao caixão de ferro do IML. Antes disso, passa pela habitual suposta falta de coração dos fotógrafos, que pedem ao perito que enterre novamente a adaga para captarem a emoção do momento.

Como curiosidade temos Zbigniew Ziembinski, santo padroeiro do teatro moderno no Brasil, no papel do Sr. Rivoni, antagonista de Moraes. Intrigante é que Ziembinski opta todo o tempo por uma gesticulação canhestra, como se fosse de diva da belle époque na Broadway.

Veículo para Milton Moraes e as curvas de Gimenez – então casada com Jece Valadão, que aparece interpretando a si mesmo, amigo de Carlos –, “O Homem de Papel” se salva pelos talentos da dupla. Carlos é um profissional como tantos; a malandragem que ele desfila é igual a de tantos outros, mas dentro dele foi inserida a atuação de um homem que entendeu-o e percebeu ser o momento de apresentar uma bela perfomance. Sorrindo e vivendo o cotidiano mais banal, Milton Moraes encheu o homem de papel com uma eletricidade única, a ponto de fazê-lo adorável. Esta é a sina dos maiores: engrandecer o banal, o sem-graça, e torná-lo um momento sublime e eterno.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Beijo na Boca


Pedro Carlos Rovai era um assistente de direção nos idos de 1960 e tantos, trabalhando com profissionais do naipe de Ozualdo Candeias, Luiz Sérgio Person e Rubem Biáfora. Passou a diretor no sugestivo “Adultério À Brasileira”, abordando o filão nascente da pornochanchada.

Logo depois criou uma lucrativa parceria de dois filmes com a musa hype Adriana Prieto – “A Viúva Virgem” e “Ainda Agarro Esta Vizinha”. Quando aterrisou em “Beijo na Boca” (1981), já estava consolidado como produtor e personalidade do meio cinematográfico brasileiro, em filmografia pra lá de interessante.

Mas nem sempre a criatura se iguala ao criador. A simples presença de Rovai nos créditos, ainda que na produção, não salva a estabilidade de “Beijo na Boca”, filme que tem muitas semelhanças com “Amor Bandido” – os dois narrando casos verídicos de um casal de jovens assassinos. A diferença maior é que “Beijo na Boca” virou uma obra desigual, inteligente na proposta de acompanhar a história do casal retratado, mas frágil na composição dramática, que necessitava de protagonistas marcantes.

Paulo Sérgio de Almeida, o diretor, conduz bem a ação, sem maiores sustos. O problema parece estar na performance de Mário Gomes, muito aquém do plausível. Gomes interpreta o xará, Mário, chave de cadeia obcecado em conquistar a maluquinha Celeste (Cláudia Ohana), matando e destruindo pelo caminho quem quer que se envolvesse com a menina.

Cláudia Ohana ressalta satisfatoriamente os impulsos hormonais de Celeste. Filha de militar (Milton Moraes) e mãe avoada (Joana Fomm), a garota não estuda, não trabalha, cheira toalhas molhadas de éter e faz questão de guardar na carteira a foto em que aparece nua, do carnaval anterior.

A mulher que não sabe amar e o homem que pretende ser a tábua de salvação para ela, sem ter sequer controle emocional para cuidar de um pote de plantas. Da união destes dois zumbis resulta o saldo de um morto – Artur (Dênis Carvalho), empresário cafajeste, que tirou a foto da “pantera” – e um comatoso – Pardal (Stepan Nercerssian), com quem Celeste havia perdido a virgindade.

Pardal ainda consegue balbuciar um “foi a Celeste” na maca do hospital, e seu testemunho somado ao de um vendedor de cachorro-quentes leva a dupla ao júri. “O casal assassino” vai ao tribunal, responde entrevistas separadas para rádio e tv, cada qual de um canto, com as algemas sob a roupa, para manterem a imagem de faunos badalados. Propositadamente bonitos e egóicos – fora dos padrões novelescos de serial killers –, terminam sem a necessidade de se reverem, pois a explosão de terem se conhecido diz o suficiente sobre o que acontecia ali.

O filme tem longa parte interessante na beirada do abismo, quando Celeste e Mário compartilham horas de sexo ou de planejamentos esdrúxulos, como o de viajarem para o exterior, sem dinheiro suficiente para abastecerem a geladeira. Nada além, pois companheirismo inexistia. Um primo de Mário, Vaporube (Perfeito Fortuna), ainda arranja uns pacotes de drogas para comercializarem, mas àquela altura não soluciona o problema fundamental do vazio paranóico que atormentava o casal.

A diferença entre os dois casais, vistos aqui um em seguida do outro, é que em “Amor Bandido” a dupla Sandra-Toninho deseja uma volta ao útero, um acolhimento esquecido – e mata para manter esse status quo de felicidade instantânea. Já a dupla Mário-Celeste enxerga somente a possibilidade de vingança e auto-realização – fálica, perversa – diante do mundo. Matam por conta desse revanchismo patético.

Mário, não fosse pela interpretação canhestra de Mário Gomes, seria um grande personagem. É absolutamente desprovido de amor, concentrando um ódio morno, inconsequente. Aperta os seios de um travesti, vizinho no prédio em que mora. Em seguida pilota o carro, na vertente machão, saindo à procura de um passatempo. Lembra alguns desses “psicopatas-lights” encontrados pela vida, que ao agirem errado, dão de ombros e arrumam logo uma justificativa vitimizante para sua conduta inadequada. O mesmo pode-se dizer a respeito de Celeste, aterrorizando os pais com gritinhos e o júri com narcisismo patológico.

“Beijo na Boca”, em um sobe e desce de momentos melhores e outros nem tanto, rende no cômputo geral a sensação de ter sido, pelo menos, bem intencionado, não obstante frouxamente realizado. Lançado em dvd recentemente, passou a frente de todos os grandes policiais brasileiros, justificando aquela teoria do maestro Antônio Carlos Jobim -- segundo o qual, no Brasil, a ordem natural das coisas é sempre ao contrário.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Amor Bandido


“Amor Bandido” (1979) representa uma espécie de “filho especial” na filmografia de seu diretor, Bruno Barreto. Vindo na ocasião do megasucesso “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, aqui Bruno respira, faz um filme modesto, porém tão notável quanto o blockbuster de dois anos antes.

Na pequena série de policiais brasileiros, que iniciamos neste final de ano, “Amor Bandido” é do gênero que conquista o mais desatento dos espectadores. Inspirado no famoso caso da crônica policial carioca, o “Matador da Bandeira Dois” – um marginal que assassinava taxistas na zona sul, de madrugada – Barreto constrói, através do roteiro de Leopoldo Serran e José Louzeiro, uma crônica de costumes dissimulada.

Sandra (Cristina Aché) é moça de classe-média, filha do policial Galvão (Paulo Gracindo). Cai na prostituição e se envolve com o autor dos crimes, Toninho (Paulo Guarnieri), caçado pela cidade. De novo o espaço de ação é Copacabana, com seu luxo e lixo, ostentação e decadência.

Lá estão as famigeradas madrugadas nos edifícios de quitinetes e a promiscuidade nas boates, com o eterno oba-oba social-moral do bairro mostrado no varejo, através da tragédia-formiguinha de Sandra. Ela não tem mãe, divide um pequeno apartamento com um amigo travesti, até o dia em que este se suicida, saltando por cima das vigas de uma obra. Então Sandra conhece Toninho, o cafetão da amiga morta, e os dois iniciam relação doentia e simbiótica.

Toninho, como tantos, desembarcou de São Paulo sonhando com gringas e dólares. Na falta disso, junta dinheiro explorando homossexuais, compra uma arma e inicia carreira de homicida. Sandra, apavorada, vira cúmplice – enquanto o detetive Galvão, sem saber do envolvimento da filha, é o investigador do caso.

Vemos com detalhes a vida noturna do bas-fond carioca na virada da década de 70 para 80. As meninas saem da boate e vão para um restaurante barato jantar; Sandra e Toninho esperam o sol nascer em um banco do calçadão da praia, enquanto ele narra para ela sua vida de crimes. No edifício de Sandra, uma babel de classes sociais e profissionais habita, inclusive um taxista que não imagina ser vizinho dos matadores contra quem tanto vocifera.

A compreensão do relacionamento entre Sandra e Toninho é todo o segredo do filme. Ela encontra no garoto tresloucado sua proteção paterna. Ele encontra na menina, carente e promíscua, um simulacro de amor materno. E os dois, como quem precisa de outra metade para sustentar a possibilidade de ser, acabam perdidos um no outro.

Sandra sabe que vai entregar o namorado para a polícia, mas só o faz mediante tortura. O roteiro é tão perfeitamente construído que, a rigor, neste estágio do filme, estamos quase torcendo pelo casal. No inferninho onde bate ponto, com marcas das pancadas a que foi submetida, a triste Sandra dança com um cliente, enquanto sabe que lá fora, debaixo da chuva, seu pai é a morte aguardando Toninho. Se fosse cinema francês, o filme levantaria os créditos neste ponto. Mas na brutalidade brasileira vai além – e mostra em cores vivas até onde o crime não compensa.

Como detalhe curioso, temos um imbróglio acontecido na época, envolvendo Barreto – que comprou a música “Amada Amante”, de Roberto Carlos, esperando ser este o título do filme – e o diretor da Boca do Lixo, Cláudio Cunha, que foi mais rápido e lançou o seu “Amada Amante” durante as filmagens de Barreto. Isto explica a estranheza, meio fora do contexto, de Sandra ser obcecada pela música ao longo da história.

É longamente discutível se o diretor é bom cineasta ou não – mas em “Amor Bandido”, e nas produções dos anos 80, ao menos esforçava-se para não dar sono. Se chegando em “Bossanova”, a pretexto de celebrar o bairro que ama, fez um filme de plástico, resta o lembrete de que aqui já havia realizado uma espontânea homenagem, enfiando o pé na jaca e dando ao mundo a visão pessoal – e autoral – de um lugar que prova conhecer tão bem, mas tão bem, que soa exemplarmente perfeito, no ofício nobre de
artesão naturalista.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

J. S. Brown, O Último Herói


Meninos na infância inventam fábulas de heróis de capa e espada, para quem olham com idolatria. O cinema ajudou a construir esta mágica, ao longo de várias gerações. Desde as fitas de William S. Hart, os pequeninos com estrelinhas de xerife coladas sobre a camisa do colégio, matavam com o polegar as hordas de apaches que avançavam sobre diligências formadas por duas ou três carteiras escolares.

“J. S. Brown, O Último Herói” (1980), dirigido por José Frazão, no excelente roteiro do próprio em parceria com Tairone Feitosa, fundamenta-se no amor lúdico, infantil, à sala escura, acompanhando José da Silva Brown (Marcus Vinícius) e Major (Helber Rangel). Amigos desde criança, citam Marlon Brando, Fantasma – o que nunca morria, de Lee Falk –, bang-bang e as matinês em Salvador, Bahia.

No entanto a dupla de atores centrais – um negro, o outro mestiço – não se pretendem heróis wasps, nem poderiam. J. S. Brown coloca os pés na janela do quarto e dá de cara com a lindeza do Farol da Barra, o mar, sonhando em ser um Dick Tracy redivivo, de ébano e calorento. Matricula-se com Major em uma academia de aspirantes a detetives particulares, assistindo às aulas de um professor que coça as partes mas é pedante, usa cinco adjetivos para cada substantivo. O contraste entre realidade e fantasia – apaches não dão em árvores e dinheiro é indispensável para o sustento –, leva Major a abandonar o curso.

J. S. e um colega da classe são os únicos a se diplomarem, recebendo o canudo ao som de uma vitrolinha de plástico. Desce as ruas com orgulho, pára numa loja em que espertamente induz o dono a lhe entregar um sobretudo amarelo e um chapéu, fingindo ser funcionário da aduana, prestes a dar flagrante no lojista por vender produtos contrabandeados. Paramentado com o figurino correto, J. S. andará por toda a narrativa desta forma, como se fosse um personagem de quadrinhos no corpo de um homem que foge ao biotipo dos ídolos que reverencia. O subtexto desta construção é um achado dentre os muitos acertos do filme, que brinca com as linguagens pop – icônicas e cinematográficas.

O primeiro caso do escritório de Brown – o sobrenome em referência clara à indústria norte-americana – é fantástico. Sentado na cadeira de rodinhas, jogando de longe o chapéu côco para encaixar no gancho do cabide, J. S. é surpreendido por dois capangas que o metem em um caixão funerário e o levam à presença de uma senhora (Maria Fernanda) que lhe confia a tarefa de encontrar “Cris”. Nada revela, nem o por quê, nem como, nem onde. Na multidão, achar uma “Cris”.

Não se tem como enumerar cada elemento fílmico, mas basta dizer que neste meio tempo, o carro que levava o caixão havia quebrado no meio da estrada – “nem uma m... de seqüestro a gente sabe fazer?” – e que a senhora apareceu de uma nuvem de fumaça branca, no contraluz, tal qual uma vilã da Televisa. Deixado inconsciente no mesmo caixão após o encontro, J. S. aparece no Abaeté, cercado de lavadeiras, tira as roupas e toma um banho. Apesar de Brown conseguir desvendar o mistério, Frazão e Feitosa não abandonam a meta principal de aliar o lúdico – a paixão pelo cinema – à metalinguagem de zombar, amorosamente, dos referenciais que utilizam.

Cris (Bete Mendes) viria a ser a possível nora de Sandra Caputti – tenebrosa chefa de Brown. Moça airosa para os padrões de Caputti, J. S. tem com ela seus momentos em uma noite. O detetive encontra-a em Itaparica após sucessivos golpes de dedução, auxiliado por Major, que aproveita a kombi da “Itapemirim Cargas” – em bela tacada de marketing da produção do filme – para desempenhar a função de chofer.

Entretanto, não bastassem todos os perigos para resolver o caso – fato que parecia conspirar para uma pasmaceira no filme após o desenlace –, o assassinato da garota tumultua o enredo e dá margem à segunda reviravolta no filme – a primeira surgiu no episódio da contratação. Enquanto J.S. jogava strip-poker com o Major e duas convidadas, um flash rápido de José Dummont sobre Bete compõe a morte de Cris, sobrepondo-se a calmaria de “For No One” à “Helter Skelter” – ambas canções dos Beatles, a última inclusive usada pelo maníaco Charles Manson para justificar suas chacinas de 1969.

A vontade de chegar ao criminoso impulsiona Brown a outras sacadas brilhantes em série, fazendo as perguntas certas às pessoas certas, andando de ônibus pela periferia, suando e vociferando contra o destino. Pouco tempo se passa até que aponte o revólver para Dummont. O bandido safa-se por um instante – depois é morto pela polícia –, através do discurso filosófico de que detetive e marginal são descamisados, gente que se vira, cada um arranjando o seu. O ladrão não fala explicitamente estas idéias, mas ao preferir a morte a voltar para a cadeia, a fúria de Brown vai saindo do terreno instintivo e chegando à realização de que os dois são mais parecidos em sua pobreza do que diferentes em seu ofício. Esta escapada neo-realista rouba um pouco dos primores de “J.S. Brown”, mas não compromete-o por completo.

Os 90 minutos de “J. S. Brown” expõem um domínio grande das intenções de José Frazão e Tairone Feitosa, possibilitando à equipe de atores uma posição confortável, seguros do que iriam fazer. Frazão em 1986 realizaria “Vento Sul”, longa que agrega a estrutura de documentário à dinâmica de romance, para contar o caso verídico da exploração de substâncias tóxicas no Nordeste. Mas foi em “J. S. Brown, O Último Herói”, seu primeiro filme – nunca lançado comercialmente, salvo em vhs –, que Frazão atingiu o ápice. No policial que ousa ser policialesco e inteligente, o diretor aproveita esta dicotomia para implodir convenções e atingir o apuro estético. Brown é o herói de pernas tortas. Falho e criativo como só ele poderia ser.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

O Rei da Boca


O Rei da Boca” (1982) é um destes filmes épicos, tão gratos no cinema brasileiro de policiais e marginais, sobre a ascenção e queda de um dos maiores bandidos da Boca do Lixo, ponto de prostituição e vagabundagem de São Paulo.

Mitificada, retratada em várias obras do cinema, do teatro e da literatura – leiam “Boca do Lixo”, inesquecível romance-documentário escrito pelo cafetão Hiroito Joanides de Morais, tão bem redigido que já se duvidou ter sido escrito pelo próprio – a Boca era área degradada e decadente na São Paulo que orgulhosa, crescia um prédio por hora. Desta antítese e paradoxo, anunciadora do colapso urbano/social, criou-se o folclore de um espaço, um tempo e seus protagonistas.

Um destes foi Pedro Cipriano da Silva. Nascido e criado em um matagal qualquer, em um ponto também qualquer e inacessível do Brasil, o nome é cabalístico, composto de três símbolos que explicam a origem e as maldições de ser a escória, um nada. “Pedro”, como o apóstolo que nega Cristo por três vezes; “Cipriano”, como o bruxo, anti-bíblico que contradiz a citação anterior; “da Silva” como um dos sobrenomes mais arquetípicos das classes populares no país.

A trajetória de Pedro (Roberto Bonfim) é linear até certo ponto. Da roça vai ao garimpo. Lembrem-se que em 1982, ano de “O Rei da Boca”, a referência aos garimpos como mecanismo de ascensão social ainda era factível, e não a preciosidade arqueológica de hoje em dia. Até filme infantil rendeu – o bilionário “Os Trapalhões na Serra Pelada” –, além de inúmeros prêmios para reportagens ora verídicas, ora lacrimoniosas, tendendo para o sensacionalismo barato, fácil de comover a multidão.

Espaços restritos, confinados – diz uma das regras de ouro da dramaturgia –, criam um ânsia de liberdade interessante de ser contada. Misturando-os com a necessidade de sobrevivência – ou a ganância, no caso –, o inferno rola solto. Em “O Rei da Boca” o inferno é encarnado, por exemplo, em Satã, vulgo Melquíades França Neto, ex-lutador de telecatch, grande amigo de José Mojica Marins. Satã é um dos que trabalham para Dr. Lourenço, impedindo o roubo de pedras pelos mineradores. Closes cerebrais de Clery Cunha, diretor do filme, demostram a demência dos assalariados de Lourenço, raivosos como o delegado local, tentando descobrir o paradeiro da pepita sonegada por Pedro.

Fustigam o rapaz, colocam em pau de arara, nu, de cabeça para baixo, obrigam a tomar óleo de rícino, vasculham suas fezes e, depois de todas as negativas, Pedro comete o primeiro assassinato, pré-São Paulo, degolando o delator. Pega-o de tocaia, mata pelas costas. No espírito de jagunço, não há sentimentos éticos, devaneios de hombridade. Há vida ou há morte.

Encerrado o ciclo interiorano, Pedro vende o ouro por um preço risível, sai a São Paulo – mais precisamente os quarteirões da Boca do Lixo – com a trouxa de roupa embrulhada em papel de pão. Logo a seguir, estréia nos pavilhões do Carandiru. O rosto ainda suavizado, um modo de pedir desculpas e de se maravilhar diante do desconhecido. É chamado, ato contínuo, de “otário” pelo trio que o recebe na cela.

Um deles – que durante todo o filme mantém o cacoete de quicar uma bolinha de tênis contra o chão ou a parede – será parceiro de crime. Inicia-o no tráfico de maconha, vendendo em estande de feira, misturada com laranjas. Neste período, Pedro será o cara bacana, protetor das prostitutas locais, o humilde que aceita o fato de não saber ler ou escrever. Mas em breve retorna ao presídio e associa-se com Gringo, este sim traficante de cocaína, dotado de um esquema de grande porte que marca o terceiro ciclo do aprendiz: o de estrela.

Munido com a infra-estrutura dos grandes tóxicos, que se espalha desde a compra de advogados à prostituição de menores, Pedro acaba mordendo o próprio rabo. Num crescendo de onipotência, o imigrante que sonhou ao ouvir a palavra “rei” e jurou tê-la pra si, perde a administração de um esquema antes caseiro, agora dantesco. Piora ao decidir pelo seqüestro de uma jovem virgem, filha de delegado, violentada para pagar uma dívida de jogo. Os mensageiros também não cooperam – Jesse James Costa mais uma vez presente – e como os bárbaros invadindo Bizâncio, a grandiosidade de um império embora tosco e simplório, é destruída. Pedro assassina ainda três garotas no fosso de um elevador, porque, claro, aprendeu com o advogado a como sumir com as provas do delito.

Guardem que a todo momento o espectador é tratado pela direção de Clery – responsável pela adaptação do original de Tião Valadares – como um igual ou pelo menos alguém de sensibilidade extrema para não se chocar com as imposições do cotidiano dos personagens. As prostitutas – uma delas interpretada por Zilda Mayo, comandadas por Wilza Carla – lavam-se depois de fazerem sexo – o ato carnal, e não amor – com homens horrorosos que ainda despidos são obrigados a pagarem o tarifário. Existe ódio, vontade de morrer e de matar, que somente por instantes pode ser ligada àquela indolescência geralmente apreciada em “Quinzinho” – Joaquim Pereira da Costa, o porta-voz do auge da Boca, fonte de muitos causos narrados pelo cinema brasileiro e homenageado no início do filme com uma inscrição.

O que se revela na audiência de um filme do porte de “O Rei da Boca” é a paixão pela verdade. Pela procura de se mostrar o descaso com a vida alheia em um panorama da “selva” – assim chamada literalmente a cidade grande, em um cartão colocado nos últimos segundos. A metrópole é um objetivo sangrento, ela é soma de pessoas que se nutrem e vão se sobrepondo, sabendo que para desafiarem o estado de coisas seria preciso uma força impossível. Sorte de quem está do lado forte da corda – pensam os autoritários. E para manterem-se lá, vale de tudo entre o céu e a terra. Mesmo que amanheçam mortos; nada mais natural. Para muitos, neste “Scarface” paulistano, a morte é apenas a conseqüência de se estar vivo.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

Eu Matei Lúcio Flávio


Depois da obra-prima “Ódio” – que arremessou o cinema policial brasileiro dos anos 70 à altura dos seus similares americanos e europeus – e de “República dos Assassinos” – o épico do gênero – temos completando a trilogia sagrada deste estilo cinematográfico o clássico “Eu Matei Lúcio Flávio” (1979), dirigido por Antônio Calmon, mas que é sinônimo do ator, produtor e por que não dizer?, também gênio do audiovisual brasileiro, Jece Valadão.

“Eu Matei Lúcio Flávio” não tem disfarces em dialogar com o filme de Hector Babenco, “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”. Pelo contrário, em uma primeira impressão, a produção da Magnus Filmes pode parecer exploração barata do sucesso de Babenco. A questão é que o filme de Jece é muito, mas muito superior ao filme-denúncia de dois anos antes.

Com roteiro de Alberto Magno e Leopoldo Serran, “Eu Matei Lúcio Flávio” é um filme fascista, reacionário, em deslumbre pró-estado e pró-polícia. Não se enganem: isso o faz maravilhoso, aterrador e, como todo bom policial, doente de um sadismo implacável.

Mariel Mariscott de Mattos (Jece Valadão) é um inspetor da polícia civil que, por sua “firmeza”, se torna famoso em um Rio de Janeiro já assustado com a violência, na metade da década. Não demora muito e Mariel está no centro das atenções, freqüentando as altas rodas da Zona Sul e sendo recebido em casas de boa família – onde, invariavelmente, deixa algum marido corno.

Antes de ser policial, Mariel foi salva-vidas em Copacabana, depois guarda-costas de políticos corruptos. Sua trajetória é mostrada em detalhes. No início da carreira, Mariel salva uma criança do afogamento e depois, em cena surreal, é visto no motel com a mãe da criança (Maria Lúcia Dahl), ao som de (acredite se quiser) Belchior cantando “A Divina Comédia Humana”. Com a madame aos seus pés, o feio e grosso Mariel se olha no espelho e dá o vaticínio: “Mariel, você é demais!”.

Paralela à sua trajetória policial-sexual há uma história de amor, entre ele e a prostituta viciada em drogas Margarida Maria (Monique Lafond, em interpretação fora de órbita), que conhece ao salvar o pai desta do suicídio no mar de Copacabana. Aqui, outro diálogo luxuoso, quando Margarida avisa a Mariel que seu pai voltou ao mar e morreu: “Ele sempre viveu aqui em Copacabana e quis morrer aqui em Copacabana”. Detalhe que Margarida diz isso enquanto é apalpada por dois turistas franceses, com quem estava fazendo um programa.

“Eu Matei Lúcio Flávio” é uma antologia destas pérolas. Quando Mariel chega na polícia, começa a solucionar os crimes no bairro à sua maneira: matando. A cena do assalto na farmácia Vitória Régia, do Lido, tem a mesma carga de violência e crueldade encontrada nos quinze minutos iniciais de “Ódio”. Os bandidos em busca de Mandrix (“Mandrix, Mandrake, tio, porra!”) resolvem estuprar a jovem balconista (Maria Zilda, em franco início de carreira), penetrando sua vagina com um revólver, em trucagem incrivelmente realista. Logo a equipe de Mariel chega (ao som do trash-disco Shake Your Body) e, com um ar de escárnio, mandam todo mundo para o além, como se Copacabana fosse o desbrave do Velho Oeste.

Lúcio Flávio (Paulo Ramos) aparece no filme apenas como a isca maior do alpinismo social de Mariscotte. Rumo ao topo, acaba por integrar o grupo de extermínio “Homens de Ouro” – o mesmo retratado em “República dos Assassinos”. Com licença oficial para matar, Mariel e seus capangas promovem uma chacina. Enquanto torturam um criminoso, a equipe de policiais coloca para tocar um disco de Roberto Carlos, “Lady Laura”. Em seguida, Anselmo Vasconcellos, em papel repugnante e magistral como sempre, puxa uma faca do bolso, repete monocordicamente o lema do grupo, “Marginal tem mais é que morrer”, e esfaqueia o corpo torturado, que é exposto na batida de um ponto de macumba no alto da estátua de São Sebastião, o padroeiro da cidade.

Se o que foi relatado até aqui não basta para convencer os leitores de que este é um filme sensacional, acontece o seguinte: entre idas e vindas, Mariel namora a desequilibrada Margarida Maria. Margarida toma pico em corredores de edifícios de quitinetes, se entrega de pulsos cortados ao amante e acaba internada no Hospital Pinel, onde morre. Desesperado, Mariel rouba o carro do necrotério, murmura “como indigente, vocês vão enterrar a mãe de vocês”, tira o cadáver da geladeira e carrega o corpo nu de Monique Lafond por uma estrada vazia, até encontrar um cemitério. Durante o enterro solitário (com trilha-sonora de “As Rosas não Falam”) é preso por seus colegas policiais.

O cerco se fecha e Mariel, entre idas e vindas da cadeia por conta de seus desvarios, acaba processado junto com outros “homens de ouro” e levado para Ilha Grande, presídio onde brotava o ovo da serpente que viraria o Comando Vermelho. Lá está Lúcio Flávio e o duelo policiais contra bandidos se inicia. Lúcio Flávio é morto. Quando tentam acabar com Mariel, ele se desvencilha e sobrevive. O filme acaba em Jece, com um colar de caveira e ar de triunfo, olhando pelas grades gelidamente. Dá vontade de levantar, aplaudir e dizer “obrigado”.

Mariel Mariscott, bom que se ressalte, não é personagem ficcional. Sua lenda e suas amantes ainda rondam Copacabana, o bairro mais famoso do Brasil, lugar que certamente atraía seu espírito vaidoso, ávido de fama, nobreza e publicidade.

Assim, Mariel foi o artífice deste filme alucinado, escandaloso, sórdido e psicopata, que ao tentar desglamourizar o lugar, o homem e a história, só cria em volta desse mal-estar (anti) civilizatório uma atração irresistível. É, com certeza, um filme a ser visto para se cair de joelhos e compreender o quanto o cinema brasileiro vale a pena. Algo mais precisa ser dito? Ah, sim: antes de ser assassinado, um dos comparsas de Mariel levanta as mãos para o céu e grita: “Salve a Umbanda. Entrego minha alma aos homens da encruzilhada”. E cai duro, fuzilado.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Na Estrada da Vida


Se “Dois Filhos de Francisco” é um ótimo filme, com apelo a ser visto e revisto pelas grandes multidões – em todas as mídias possíveis – pelos próximos vinte anos, deve muito de seu trabalho esquemático a “Na Estrada da Vida” (1980), assim como Zezé di Camargo e Luciano devem um bocado do seu sucesso aos heróis sertanejos da geração anterior, no caso aqui os engraçados, comoventes e humanos Milionário e José Rico.

“Na Estrada da Vida” narra um outro momento da história da música interiorana brasileira, quando esta, já sendo um fenômeno popular, se restringia aos grotões, utilizando das grandes capitais apenas a estrutura logística para gravações e produção de shows. Se Leandro e Leonardo ou Zezé di Camargo e Luciano eram nomes conhecidos por qualquer criança em meados dos anos 90, em 1980 Milionário e Zé Rico ou João Mineiro e Marciano, causavam risos quando citados na frente de seres urbanos, cariocas, paulistas, baianos ou gaúchos.

A própria abordagem de “Na Estrada da Vida”, dirigido pelo cinemanovista Nelson Pereira dos Santos – em seu filme mais popular e, paradoxalmente, menos repleto de clichês previsíveis – nos causa certa vontade de “achar graça” dos protagonistas. Distante da seriedade respeitosa de “Dois Filhos de Francisco”, Milionário e José Rico, no papel dos próprios, são autênticos clowns, prontos para a galhofa da própria vida e dos próprios hábitos.

Os dois ajudantes de obra, com vagos sonhos de fazerem carreira artística, se conhecem em uma espelunca de São Paulo, apelidada de “Hotel dos Artistas”. Ali, cantores sertanejos de todos os tipos formam uma espécie de pátio dos milagres, esperando o chamado de algum empresário para shows mambembes e mal remunerados. Caem logo nas garras de um inescrupuloso, se apresentam em um circo chamado “Fundinho” e, irritados com a maneira como o empresário pé-rapado os trata, demonstram habilidade com o público para humilhá-lo diante do povo.

A partir desse episódio, a vida vai sendo difícil, de tentativa em tentativa, de canção em canção. Nádia Lippi, na flor dos seus vinte e poucos anos, faz a mineirinha ingênua, namorada de Milionário. A melhor cena do filme mostra os dois artistas, ainda desconhecidos, pintando as paredes de uma loja de discos, quando avistam do alto da escada seu lp recém-lançado. Com vergonha de serem reconhecidos, tentam a todo custo tirar os exemplares da prateleira, causando confusão e sendo ridicularizados pelo gerente do estabelecimento.

A moral delineada é simples, mas cheia de originalidade em sua concepção. “Nunca ria de quem está por baixo, pois com força de vontade subimos e chegamos onde nossos sonhos alcançarem”. Quem viu “Dois Filhos de Francisco” vai perceber em “Na Estrada da Vida” estes ciclos presentes em ambos: sonho-purgação-redenção-consagração. E os shows que encerram as duas histórias demonstram como o universo popular sertanejo mudou em vinte e cinco anos. O que era uma quadra de rodeios numa cidade interiorana (1980) transforma-se em ginásio sofisticado de capital (2005).

Salientemos em “Na Estrada da Vida” a qualidade invulgar de se fazer um filme com dois protagonistas representando magistralmente bem a si próprios. Coincidência ou não, passamos a amar Milionário e Zé Rico ao fim da trama, enquanto em “Dois Filhos de Francisco” o máximo que se fixa da dupla retratada é uma leve simpatia.

Este curto exercício de cinema comparado visa apenas a dizer o seguinte: sem compreensão do passado, criticar, entender e produzir o cinema brasileiro no presente torna-se um flerte de cegos. Em todas as inúmeras críticas escritas sobre “Dois Filhos de Francisco” durante o ano de 2005, apenas uma ou duas deixaram o lembrete de que “Na Estrada da Vida” existe. E que se visto pelo público que lotou os cinemas no presente, é capaz de emocionar tanto ou mais do que seu filho mais novo, recriado e renovado da fonte pródiga que é esta festa de dois anônimos que contrariando seu destino, ousaram se superar.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Joelma, 23o. Andar


Filmes como “Love Letters of a Portuguese Nun” de Jess Franco, ou o mexicano “Alucarda”, celebram um estranho gênero cinematográfico: o nun-exploitation, a discutível tentativa de se ganhar dinheiro no cinema com filmes de temas supostamente “religiosos” (no caso dos nuns, a esquematização gira quase sempre em volta da vida secreta nos conventos, repleta de sexo, drogas e no lugar do rock and roll, religião). Outros filmes como “Stigmata”, do final dos anos 90, também trazem o filão da religião à tona, de forma explorativa e polêmica, convertendo em fé aquilo que deveria ser apenas entretenimento.

Mas só no Brasil (ah, o Brasil...!) se criou um gênero exploitation único, original, envolvendo temas religiosos cristãos: o espiritismo exploitation. Maior país espírita kardecista do mundo, o cinema brasileiro pode e deve encontrar no kardecismo temas e variantes sensacionais. É o caso de “Joelma, 23o,. andar” (1979), adaptado por Dulce Santucci a partir de um livro psicografado por Chico Xavier. Narra-se, do além, a desencarnação de vítimas na tragédia do Edifício Joelma, São Paulo, ocorrida em 1o. de fevereiro de 1974.

“Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência”. Contradição em termos, desprezem este aviso porque se fosse desta forma, qual a graça de se rodar e divulgar um filme sobre o evento ressaltando-se a presença de Chico? Vamos ao que de fato interessa.

O incêndio do Joelma entrou para a história – assim como o do Edifício Andraus e o do Andorinha. 184 morreram. As imagens da época não deixam mentir sobre o estardalhaço geral. Milhares de transeuntes acochambrados no viaduto da Praça da Bandeira, ou pela televisão, acompanhavam o drama como se numa mistura de pão e circo, aderindo ao voyeurismo tétrico que sempre se vê em ocasiões do gênero. Resumindo: público havia para “Joelma”, dinheiro foi levantado e o roteiro seguiu um cerimonial kardecista para contar o depoimento de Lucimar (Beth Goulart, aos 15 anos), universitária que trabalhava no vigésimo terceiro andar do prédio.

Os computadores jurássicos, de uns 500 quilos, ocupando paredes inteiras no setor de Lucimar, acentuam o acabamento cuidadoso da produção – até o fogo não é de brinquedo e recria com veracidade os momentos de tensão mais claustrofóbica. Jesse James Costa – assistente na produção – encarna um sobrevivente que escalou as paredes externas do Joelma, andar por andar. Sim, isto aconteceu na vida real, por mais absurdo que pareça.

Quanto a detalhes técnicos do conjunto, percebe-se no branco e preto uma escolha acertada para costurar o tom sério da religião com o estilo documentarista de antigos programas como “Globo Repórter” e “Amaral Neto”. Passo a passo, a história de Lucimar é desvendada.

Menina doce, que “pressentia a brevidade da vida” e auxiliava os próximos, esquecendo de si mesma. Não namorava, só estudava e trabalhava, boa filha, irmã, amiga. Do tipo que come empadinhas feitas pela mãe e vibra quando saem para fazer compras juntas.

Tem visões, sonhos, e em um deles sente labaredas enormes – maiores do que as que quase avançam sobre ela, ao ligar um simples fogão. Espiritualizada, quando passa em frente a livros de Chico Xavier inicia um transe no qual, assustadísimos, vemos o rosto congelado de Chico, produto da montagem pra lá de espectral.

A direção de Clery Cunha – atuou no adolescente “A Virgem” (1973), ao lado de Kadu Moliterno e Nadia Lippi – faz pouco para atenuar a verdade maior de “Joelma”: o culto à personalidade de Xavier, um profeta emblemático para dar sentido à catequese do filme. Ouvimos lições de esperança para aqueles que ficaram na Terra e choram os entes queridos. Provavelmente aumentou a romaria à cidade de Uberaba, onde o médium dava consultas, distribuía comida aos pobres e fazias preleções à sombra de uma árvore.

Inegável que os arquétipos convencionais esgotam a paciência de quem quiser ser um pouco mais cético. Estão no filme todos os clichês possíveis, semelhantes às dos folhetins-padrão. Vejamos: a menina pura, a mãe sofredora, o irmão boa-praça, o comerciante gordo, rico e prepotente que fuma charutos, a valorização do trabalho árduo acima do prazer e do dinheiro.

É preciso juntarmos, porém, dois fatores de “Joelma” para refletirmos sobre a sua originalidade. Primeiro: o filme é realmente primitivo ao falar sobre bondade como um atributo estanque. Lucimar é boa, mas tão boa que dói, e só alguns conseguiriam ser fora das câmeras ou dos livros da “Biblioteca das Moças”. Segundo fator – e este sim a ser lembrado –: o filme sai fortalecido de uma análise mais cuidadosa.

“Joelma, 23o. andar” capricha nos tons bombásticos, na falta de tato, vai direto ao caos. Devemos nos aproximar dele com lupas de aumento, deixando ainda mais claro o quanto a linguagem é pitoresca. Apesar de não ser entronizado nos cânones mais “respeitáveis”, faz vibrar a sensibilidade dos pesquisadores e cinéfilos de plantão, conseguindo resultados surpreendentes, que marcam um impacto que nem todo blockbuster – carregado das campanhas midiáticas – consegue atingir. É um autêntico produto da singularidade nacional.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

A Viúva Virgem


Carlos Imperial é o nome do homem. Carioca do Espírito Santo, criado em Copacabana, de Imperial há muita coisa boa a se falar e apenas um ou outro deslize em sua rocambolesca “carreira”. Produtor e diretor musical e cinematográfico, compositor, jornalista, escritor, apresentador de programas de auditório, e, em certa época da vida, ator bufo dos melhores, Carlos Imperial foi um destes loucos que não existem mais, por quem o Brasil deveria babar de orgulho.

Mas pelo contrário, antes das trevas do esquecimento onde mergulharam sua memória hoje em dia, imprimiu-se a versão de um Imperial aproveitador, canalha, sem cultura e salafrário. Nada mais injusto para alguém que dedicou sua vida a criar. Com um décimo da versatilidade e da grandeza cultural de um Carlos Imperial, a maioria dos intelectuais brasileiros teria conduzido uma revolução positiva no país da segunda metade do século XX, ao invés de se enclausurarem nas cátedras medíocres de nossas universidades públicas deficitárias.

Existe, portanto, um ramo da cultura brasileira onde o malandro, o gordo cafajeste, o terror da Rua Miguel Lemos, Carlos Imperial, é sinônimo de história e selo de qualidade. Junto com Adriana Prieto, Jardel Filho e Darlene Glória, é ele quem dá a tônica em “A Viúva Virgem” (1972), intrincada comédia de situação, campeã de bilheteria naquele ano, contando a história de Cristina (Prieto), moça do interior de Minas, recém-casada com o ogro barbudo, Coronel Alexandrão (Imperial).

Desleixado e oleoso, o Coronel ganha na música do próprio Imperial – embebida dos hits rurais de Tim Maia, na fase “Coroné Antônio Bento” – sua melhor definição: “Uai, uai, coroné, coroné Alexandrão, deitou forte, bicho macho, povoou a região”. Pai de mais de setenta filhos, Alexandrão vai ao altar novamente, interrompe o padre (José Lewgoy) ao pedir para que se apresse, mas logo após os comes e bebes da recepção, enfarta sobre Cristina sem consumar o casamento.

A “viúva virgem” Prieto, que repetidas vezes ora diverte-se em cena – um vago sorriso no canto da boca, principalmente nas cenas com o endemoniado Imperial – ora parece perguntar-se aonde foi parar o estilo seríssimo de “Memória de Helena” (1969), estrelado por ela três anos antes – o momento em que hesita ao aceitar o Coronel na cama transparece um requinte interpretativo que não combina lá muito bem com os gracejos do filme.

A partir do enterro do morto, tem-se início a guinada em direção à cidade grande, quando acompanhada pela tia (Henriquieta Brieba), Cristina cumpre orientações médicas e pretende relaxar. Encontra, porém, Constantino Gonçalves (Jardel Filho), falsário que apresenta-se como industrial, dono da revendedora de sucos “Meu Limão, Meu Limoeiro” – na realidade, uma oficina mecânica caindo aos pedaços, especializada em lanternagem. A intenção, como não poderia deixar de ser, é a de aplicar-lhe um sonoro golpe do baú.

Constantino tem a idéia de criar o “Empreendimento Matrimonial Constantino Gonçalves”, vendendo pequenas cotas resgatáveis financeiramente após o enlace matrimonial com a pobre viúva. Quem o auxilia é a trupe formada por sua irmã Tamara (Darlene Glória), que namora o raquítico bicho-grilo Paulinho (Marcelo, astro de “Minha Namorada”, já resenhado neste blog) e é amiga de Janete (Sônia Clara) – garota no estilo certinha do Lalau, mas ensandecida, que vive dando pulos e cometendo gestos esdrúxulos, no contraponto à autoridade risonha de Tamara.

O imbróglio central, porém, está na hilária volta do Coronel, que vaga em espírito atormentando ex-mulher, Constatino e tia – que acaba servindo de “cavalo” ocasional para a incorporação do rotundo fazendeiro. Flutuando sobre os cômodos, indo à praia, aparecendo atrás de árvores ou de quatro, andando em gatinhas, Imperial é um show deslumbrante à parte, comanda o enredo e conspira de modo sobrenatural contra o estelionato do sr. Gonçalves.

Aumentando a população nas telas, muitos personagens seguem no encalço da virgem em ritmo de screwball comedy. Carlos Prieto, falecido irmão de Adriana, faz o amigo de trejeitos duvidosos. Otávio Augusto, de bigodinho, dirige um comercial. Wilson Grey, é bom que se diga, marca presença quando menos se espera, feliz que só, trocando olhares com Henriquieta Brieba.

Frustrado o golpe do baú, Cristina encontra o amor nos braços de Paulinho e é vista pela última vez ao seu lado, no carro cujo capô é tomado pelo vulto de Alexandrão. Sem mortos e sem feridos – apenas presos, por uma série de confusões num motel –, um comboio policial leva todos os atores, à exceção daquele trio, em clima de encontro de final de ano, sorridentes para um último passeio pela câmera do diretor Pedro Carlos Rovai. A cena final, como em filme brasileiro dos anos 70 que se preza, congela na imagem de Imperial mandando o espectador para aquele lugar.

Ninguém se importa, porque somos todos – espectadores, atores e diretor – convidados para a festa que, afinal, são os filmes e a vida deste monstro sagrado brasileiro. Treze anos depois do Coronel Alexandrão, Imperial seria candidato a prefeito do Rio pedindo voto para as crianças (“Eu sou a zebra, peça ao seu papai para votar na zebrinha!”), assumiu a função de apresentador fixo da apuração das notas do Carnaval carioca (“Beija-Flor de Nilópolis, dez, nota dez!”), até falecer e ir diretamente para o céu, sem escalas, em Novembro de 1992. Um tributo ao gênio.