quarta-feira, dezembro 29, 2010

O Cortiço


Escrito em 1890, auge do chamado naturalismo brasileiro, o romance "O Cortiço", do escritor maranhense Aluísio de Azevedo, significa bem mais do que pensam entediados estudantes secundaristas, normalmente fadados a lê-lo por obrigação curricular. Antes de ser vitrine morta, exemplo de tempo e pensamento ultrapassados, "O Cortiço" diagnostica muitas delícias e vícios brasileiros, bem mais até do que certas provocações revisionistas do século XX.

O filme homônimo (1978), dirigido por Francisco Ramalho Jr., infelizmente não alcança a plenitude do livro, e pode-se dizer que, a exemplo de tantas outras adaptações cinematográficas, somente arranha a superfície do tema, como se realizasse em apanhado de imagens uma idéia geral da obra literária.

Vindo de um dos melhores exemplares do cinema setentista – "À Flor da Pele" (1976) – Ramalho nunca mais encontraria, como diretor, a força do embate entre o intelectual quarentão interpretado por Juca de Oliveira e a borderline patricinha incorporada por Denise Bandeira. Verdade que "Filhos e Amantes" (1981) e "Besame Mucho" (1986) são ótimos, porém "À Flor da Pele" indicava um artista nobre, em outro patamar de realização. Sair dessa
tour de force para "O Cortiço" é algo que só um acidente pode explicar.

João Romão, personagem principal do livro e do filme, português avarento, dono da estalagem – cortiço para os detratores – amasiado com a negra Bertoleza (Jacira Silva), ganha tom simpático vivido por Armando Bógus. Romão é daqueles portugueses que prosperam na antiga colônia, às custas de desprendimento moral e crueldade. Dono também de uma pedreira ao lado do cortiço, o gajo sente inveja do patrício Miranda (Maurício do Valle), que compra um título de Barão e tem filha (Zaira Zambelli) em idade de casar.

O resto é o desfile – em baixa freqüência – dos arquétipos do livro. Rita Baiana (Betty Faria) rouba o galego Jerônimo (Mário Gomes) da mulher, e o envolve em uma briga por ciúme. Pombinha (Silvia Salgado), jovem que tinha dificuldades em menstruar, só vira “moça” depois de um gostoso
tête-à-tête lésbico com a madrinha. Os “causos” se sucedem, embora tudo pareça levado a toque de caixa.

Apesar da precariedade, "O Cortiço" foi bastante caro para os padrões nacionais, e a reconstituição de época nem é das piores. Se até hoje sotaques e prosódias são motivos de chacota nas novelas da Globo, aqui o problema maior reside justamente na preguiça dos atores em falarem com gosto oitocentista. Zaira Zambelli, por exemplo, saiu direto de um chopp no Baixo Leblon para o século XIX.

Mário Gomes é o mesmo de sempre, e nem seu entendimento com Betty Faria – importado da novela das oito, "Duas Vidas" – funciona a contento. Ramalho poderia ter trazido Francisco Cuoco – que na novela fazia triângulo amoroso com a dupla – ou mesmo uma indefectível cenoura – mentira sensacionalista espalhada em 1977 contra Gomes, dando conta de que o galã viril curtia experiências sexuais pouco ortodoxas.

O pano de fundo do movimento republicano, da covardia escravagista – Romão falsifica carta de alforria para Bertoleza – e a óbvia metáfora da formação sócio-cultural do país no microcosmo da estalagem, de uma forma ou de outra sobrevivem na revisão fílmica. A montagem do grande Silvio Renoldi, a dedicatória a Lulu de Barros – quem primeiro adaptou O Cortiço para o cinema, nos anos 40 – e a trilha cantada por Zezé Motta melhoram o resultado.

Logo, se o leitor não tiver paciência com o livro, que assista ao filme. Mergulhando em platitudes que fariam Aluísio de Azevedo considerar dar uma mão no roteiro, o cortiço de Francisco Ramalho é curioso, bem-feitinho, porém tão pálido que desapareceu no tempo. Já o de Azevedo – falecido em 1913, o escritor não deve ter conhecido sequer D. W. Griffith – mantém calor inefável, o que prova ser a transposição entre artes uma tarefa dura, hercúlea.


(in Zingu! #40, novembro de 2010)

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Viagem aos Seios de Duília


“Viagem aos Seios de Duília” (1964) narra a tragédia, sem alívios ou conselhos, retrato do conto homônimo de Aníbal Machado. Véu lançado pelo diretor, Carlos Hugo Christensen, constatação sobre o arco de uma vida que se foi embora.

Solteiro, funcionário público, circunspecto, José Maria (Rodolfo Mayer) não criou vínculos durante os 36 anos de repartição. Era cúmplice no esforço mecânico de pessoas que entravam, saíam, batiam o ponto, acendiam e desligavam as luzes.

Agora de pijamas, descasca ovos cozidos, perde o bonde que passa no quintal de casa. Aposentou-se. E ao repetir os elogios de que desfrutará da boa vida, da grande boa vida do descanso, o faz por reflexo. Rapidamente esquece as promessas de frisson da boemia, encara a sombra que colou no paletó.

As pilastras, escadas e salas internas do Ministério da Fazenda – prédio inaugurado por Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, estilização do governo fascista – auxiliam o espírito opressivo do local de trabalho. Na despedida, Adélia (Natália Timberg) entrega-lhe um presente. José fantasia o amor que não terá. Homem passivo por osmose, deixou a Pouso Triste natal ainda menino, sem pensar no troco do que lhe seria cobrado.

Tudo na adaptação da história altíssima de Aníbal Machado, nos diálogos de Orígenes Lessa, no roteiro de CHC, fascina pela humanidade, espantosa e destrutiva. Goles estóicos de café nos botequins, observatório de gente, frieza travestida de amizade, abraço no passante. Filme voyeur da solidão, prova de que a câmera estava livre, havia abandonado os estúdios e experimentava uma prerrogativa que não era exclusividade dos angry young men – aqueles que, ao longo da década de 1960, começavam a povoar colônias.

Tímido, José Maria se mete em um night club – os clubbers antigos: gravatas no pescoço, lenços milimetricamente ajeitados na lapela. Criação do roteiro, ausente no conto, um ex-comandado de José, metido a boa pinta, arranja-lhe o papel oficial de pagador da conta. Carrega as pequenas para o abate, mas frustra a noitada do chefe.

Longe dali, no enterro de um escriturário – outro achado da adaptação, brilham as tiradas de Orígenes – a quantidade de salamaleques vazios o deprimem. As frases feitas, os convidados circulando para contabilizarem o velório no currículo.

A situação piora quando o protagonista percebe que a inatingível Adélia, de fato o é. Surge, então, a empreitada de ouro: retornar a Duília, ao amor adolescente, ao que possa aliviá-lo. Vasculha as malas, embarca no trem, troca o chope por uísque. Precisa refazer o drama, o pacto de quarenta anos atrás.

No conto, pelo suporte das minúcias, são melhor explicadas as nuances de Duília – eco entre esse nome e o de Adélia; os fonemas, os “dês” que batem nos dentes, um continuum que delira, confundindo imagens e desejo. Duília que no ato puro, impensado, quebrou as expectativas, mostrou-lhe o seio – totem materno, fase oral. José Maria quer revê-la, encaixar as arestas, conectar-se com o absoluto.

Cavalga pelas estradas de terra, pelas plantações, no lombo de um burro, guiado pelo tropeiro (Osvaldo Louzada). “Tudo o que vinha percorrendo já era país de Duília”, cantava Machado. Nos barulhos espectrais – música de Lyrio Panicalli –, ouve-se “Duília” como uivo, semelhante ao de “Heathcliff”. O vulto de José Maria fusiona-se com as alamedas de Pouso Triste, lembrete de que se tornou um ente dissociado, fantasma de carne.

E Duília (Lícia Magna) e José Maria se revêem. Ela casou-se, enviuvou, casou os filhos. Extasiada, incomodada pela visita, por um átimo de segundo lembra ser mulher. Confere a roupa mas congela o ato antes de alcançá-la. Cabeça baixa, sabe que o corpo mudou, fogo extinto.

José Maria se assusta. Na raspa da neurose que cai pelos dedos, se dá conta de que criou e cumpriu uma superstição estranha. Sem para quê nem por quê, nunca se aproximou antes de Duília; não agradou ao espírito, abdicou do mundo, enfurnou-se, esqueceu a essência – agora perdida.

Para demonstrar o surto – a despersonalização – que acontece nesse momento, intervém a mão firme de Carlos Hugo Christensen. Consegue proezas, coloca na mesma sequência a árvore que povoa os sonhos de José – ali Duília cometeu o ato antigo de loucura –, a igreja da infância, a cruz, a expressão transtornada.

Aparecem antes dos flashes das ruas, dos lugares que a câmera visitara com protagonista e que, vazios, dão o testemunho. Idealização infrutífera de José, retomar o que não se pode, o que não existe, o que é escuro, úmido e habita os sonhos. Corte seco para o fim, letreiro na tela.

Nello Melli, argentino, montador de longa data dos filmes de CHC, ainda na época platense – “Águila Blanca” (1941) – integra o pacote de acertos. Conselheiro do Cinema Novo, esteve em momentos como “Porto das Caixas” (1962), “Os Cafajestes” (1962), “Garrincha, Alegria do Povo” (1962) e “Vidas Secas” (1963).

Christensen também se manteve vizinho de Pedro Bloch, o que se percebe em “Duília”. É de Bloch o texto de “As Mãos de Eurídice”, peça estrelada à exaustão por Rodolfo Mayer. Partiu dele a idéia de importar Artur Semedo – o colega espaçoso de José Maria. Português, Semedo acabou no elenco de “Crônica da Cidade Amada” (1965) – um dos esquetes, escrito pelo dramaturgo –, dirigido por CHC no circuito sobre o Rio de Janeiro.

“Anjos e Demônios” (1970) e “A Morte Transparente” (1978) contemplam o outro lado da elegia à cidade. Rodados nos anos 70, encavalados no golpismo, no bas fond, no desfile de garotinhas e – por que não? – de garotões. Desafiam os sentimentos de culpa, circulam copos de malícia, algo a que Carlos Hugo já se acostumara desde “Safo, História de Una Pasión” (1943) – marco da cinematografia argentina. Realizador erudito que tocou no popular, Christensen fez o elo entre doçura, medo – típicos do “Viagem aos Seios de Duília” – e a profusão de temas – sexualidade, um deles. São rastros de imagens, fragmentos no saguão que cobriu lentamente por mais de meio século de filmes.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Textos Novos


Aqui abaixo, "A Noite do Desejo", de Fauzi Mansur. Na Cinética, "Muita Calma Nessa Hora".


terça-feira, dezembro 14, 2010

A Noite do Desejo


Uma das chaves para compreendermos a produção paulista dos anos 70 e início dos 80 pode ser encontrada em "Noite Vazia" (1964), de Walter Hugo Khouri. Não à toa, críticos apressados consideram este o melhor filme do diretor – talvez o único a que assistiram – sem atentarem para a riqueza da obra coerente e íntegra.

É fácil e verdadeiro dizermos que "Noite Vazia" libertou definitivamente São Paulo do trauma dos grandes estúdios falidos, da inadequação com certos temas folclóricos e de todo aquele penoso receio de pertencer ao país em genuflexão mais crítica e independente do que o patriotismo incondicional consegue suportar. Exatamente por isso, foi construção distante de regionalismos e provincianismos. Atento ao meio, o acordo de Khouri, seu compromisso, se traía universal. E só em São Paulo Khouri ousaria filmá-lo daquela forma. Mesmo porque estava protegido do centralismo cultural carioca, tão forte no período, que através de grupos de influência buscava patrulhar e pautar a produção fílmica. Livre em São Paulo, Khouri libertou a si e em grande parte ao cinema paulista.

Já em 1973, "A Noite do Desejo", um dos melhores trabalhos de Fauzi Mansur, escrito em parceria com Luiz Castellini, recebeu o estigma – ainda presente – de mais uma cópia inspirada no clássico khouriano. Engano apressado, pois deve-se louvar sua abordagem inventiva, muito além da reles paráfrase, transbordando "a noite" e a influência do maior cineasta brasileiro.

O leitor que está aos poucos descobrindo a riqueza do cinema paulista, suas infinitas leituras e possibilidades, não custará a se surpreender com a fúria criativa de Fauzi, principalmente no período entre 1971 e 1977. Na fase, digamos, ginecológica do sexo explícito, assinou como Victor Triunfo – ruas emblemáticas, Vitória e Triunfo –, De Bako – dionísio recauchutado – e Izuaf Rusnam – letras embaralhadas ao contrário, nos moldes que José Mojica Marins batizou Oaxiac Odéz, em “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” (1968). Tocou um breve hiato no gore, “Ritual Macabro” (1990) e “Atração Satânica” (1991), aposta que se ouviu de longe em “Belas e Corrompidas” (1977).

O núcleo formado por “Cio, Uma Verdadeira História de Amor” (1971), “Sinal Vermelho, As Fêmeas” (1972) e “A Noite do Desejo” (1973) estampa um carimbo de autoridade. O primeiro dissimula o amor homossexual do galã (Francisco di Franco), retorce a angústia do personagem, deixa o incômodo. Vera Fischer, Miss Brasil 1969, experimenta o fenômeno de mídia em “As Fêmeas”, escudada por David Cardoso, Marlene França, Roberto Bolant, Jean Garrett, Ozualdo Candeias. Os quatro últimos migram para “A Noite do Desejo” – Marlene e Roberto, atores; Candeias divide fotografia e câmera com Antonio Meliande; Garrett, a montagem com Inácio Araújo e o próprio Fauzi.

Naquela desolação de dar dó, Toninho (Ney Latorraca) e Giba (Roberto Bolant) encoxam meninas em ônibus, fazem hora extra numa fábrica qualquer do arrabalde. Decidem praticar a caça noturna, gastar os salários nos bordéis, barbarizar nas casas de strip-tease. Juntam os cheques do serviço, viajam para as ruas Major Sertório, Bento Freitas, Nestor Pestana, a onda “boca do luxo” das clássicas boates La Vie en Rose, La Licorne, Versailles, La Ronde, Scarabocchio, florestas onde os lókis tinham vez.


"Noite Vazia" pode soar um parente natural do rabicho, sem dar conta de tudo. Solidão existe, os garotos se ajeitam com uma dupla de prostitutas, Marcela (Marlene França) e Ivete (Betina Vianny, filha de Alex). Enrolam-se, fracassados, medrosos.

Em WHK, o controle de Luisinho (Mário Benvenutti), a dúvida de Nelson (Gabrielle Tinti) contavam com o espelho de Regina (Odete Lara) e Mara (Norma Bengell), jogo intermediado pelo abismo imenso das partes, linha-mestra fechada nos quatro até o limite da crise. “A Noite do Desejo” possui um ambiente setentista, montagem e fotografia partindo para o clima feérico de cores, cortes secos, jive, pop. Jairo Ferreira, o corsário, dá um ar híbrido na seleção musical. Satiriza os momentos de tensão, escolhe Roberto Carlos para a pasmaceira do subúrbio. O cinema marginal é referência, expurga a individualidade do expressionismo de Khouri – que, em 1973, emplacava “O Último Êxtase” (1973), entreato sobre o Marcelo adolescente.

Retalhado o original de "A Noite do Desejo" pela censura, Fauzi armou um novo foco no enredo, paralelo ao de Toninho e Giba. Por conta do acaso, as sequências de Ewerton de Castro – participa de “O Último Êxtase” – (Pedrinho) e Selma Egrei (Selma, vulgo Tereza, nome de batalha) agregam dramaticidade.

Prostituta grávida (Selma) é perseguida pelo namorado coió (Pedrinho), que chega na cidade grande para levá-la de volta. Toninho e Giba vêem a garota, consideram o abate, mas a barriga os constrange. Neste ponto, outra vertente no imbróglio: o dono gay da boate se encanta por Giba. Doentio, meia-idade, leva um soco do rapaz, cai no chão humilhado, sórdido, à beira do urinol.

Esses três fatores – rapazes com prostitutas; interiorano e sua ex; o dândi masô – levam a três clímaces, bem azeitados no roteiro de Castelini e Fauzi. O forte de todos está no tabu do ciúme homossexual, encalacrado, violento. Explica a “falha” de Giba com Marcela, a entrega da moça a Toninho, Giba observando os dois na prática do belo esporte. Explica o espancamento do idoso por Toninho, possesso, os olhos esbugalhados enquanto asfixia o concorrente que se engraçava, final da madrugada, para cima do amigo.

O hotel “extritamente [sic] familiar”, freqüentado por casais – o crítico José Júlio Spiewak, numa ponta –, vê ainda o assassinato do bandido (Caçador Guerreiro, que atuou com Spiewak em “Lilliam M., Relatório Confidencial”, de Carlos Reinchenbach). Os tiros são intercalados pelo punhal do cafifa de Selma (Pedro Stepanenko) e apesar da falta de uma luva negra – ou de um cacoete obsessivo –, a alternância encarna um quase-giallo, tão brasileiro quanto o suor que escorre nas papadas do porta-chaves (Carlos Bucka). Camisa regata, olhar fujão, parece engolir os mistérios do povo casto que sobe as escadas.

Perdoamos alguns elementos inverossímeis. Ivete e Giba conversam cucas-frescas e razoáveis demais sobre os foras que levaram na noite. Um pouco mais de tato na histeria das meninas (Marcela/Ivete), na insegurança dos rapazes (Toninho/Giba), levantaria a tese – pretendida – de que os quatro se doam como se doam. O ladrão surge rápido no início da fita, sem por quê. A demora em atacar o hotel fica frouxa. Mas o ciúme oculto e as conseqüências, o achado da gravidez na escorte, o mundo cachorro, a atmosfera instalada pelo filme, redimem e se sobressaem na equipe conduzida pelo destino. A necessidade de escapar da interdição e dos prejuízos deu o salto que faltava. E aumentou as apostas em “A Noite do Desejo”, fruto da indústria auto-sustentável que trilhava, inquieta, a proposta de sobrevivência.

terça-feira, dezembro 07, 2010

Menino de Engenho


Walter Lima Jr. separou umas bananas de dinamite para transpor o obstáculo terrível, gigante. Deu tratos ao primeiro longa-metragem, “Menino de Engenho” (1965), na rebarba de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) – entidade mítica de Glauber Rocha –, em que participara como segundo diretor. Lidando com a herança recente, o batismo de fogo trouxe outro aspecto problemático: o embrião da Mapa Filmes – leia-se, mais uma vez, GR – produziu a obra. Os indícios de uma industrialidade familiar poderiam ser perigosos, sobretudo pelo casamento de Walter com a atriz Anecy Rocha – também estreante –, irmã de Glauber. No meio das prováveis acusações de nepotismo, somadas à dor e à delícia de dialogar com esposa e cunhado, o resultado final se impôs suavemente.

Fortalecido pelas batalhas na crítica – foi companheiro de redação de Antonio Moniz Vianna, no “Correio da Manhã” –, Lima Jr. decidiu adaptar, dirigir e roteirizar o livro igualmente estreante de José Lins do Rego, lançado em 1932. Fração do “ciclo da cana-de-açúcar” pretendido pelo escritor, “Menino de Engenho” invoca o naturalismo habitado no nordeste brasileiro – Várzea do Paraíba, locações do filme no exato engenho onde viveu José Lins – com o aroma firme das memórias.

Oralidade, lendas, retratos do anacronismo de sinhôs monarquistas na Primeira República tentando guardar plantações quase mortas. As narrativas, literária e cinematográfica, seguem a linha da inexorabilidade do tempo – “Pois foi essa mesma fera/ que engole moça e criança/ que fez o barão, regente/ e a baronesa, lembrança”, epígrafe de Carlos Pena Filho, escolhida por WLJ. Utilizam a infância como instrumento para demonstrar o reinado de um garoto (Carlinhos, Sávio Rolim) que se torna todos, aos olhos da platéia.

Corre de calças curtas pelo matagal, acompanha as enchentes, os relatos dos negros escravizados apesar de libertos, a cadeira de balanço estalando na varanda, a interdição adulta qualquer. Crianças não costumam assistir ao assassinato da mãe pelo pai – tal como Carlinhos –, mas independente dessa limitação no plano fático, a infância surge como imã inaugural, estendendo-se no infinito. Período às vezes triste, cruel, bárbaro, cheio de grandiosidade – o avô, Coronel José Paulino (Rodolfo Arena), espécie de semideus – e medo – do amor frustrado, talvez correspondido, como o de Tia Maria (Anecy Rocha), substituta de mãe boa.

A morte da mãe de Carlos é, aliás, resolvida de maneira extremamente hábil na montagem de João Ramiro Mello. Ênfase no silêncio, mãos do garoto roçando a parede, poça de sangue limpada pelo pano, apitos de trem, a câmera violando galpões abandonados e demonstrando o futuro de Carlos – que sabemos passado, dada a reconstituição histórica –, transformado em presente à medida em que avança.

WLJ optou por letrificar as canções – de Pedro Santos –, ritual semelhante ao de “Deus e o Diabo”, dando as senhas para o filme. Vez por outra Villa-Lobos invade o bucolismo, em tom bem menos extravasado do que o de GR. Relance de um cego sentado no meio-fio, imagem que o diretor reputa a resquício da obra anterior – apesar de nesta o cego Júlio ter uma onisciência que não cabe na métrica de Walter, centrado na interiorização e raramente aberta a apelos. Humberto Mauro ecoa de maneira categórica na construção da nostalgia, seja o da era de Cataguases, seja o dos institucionais do INCE. “Meus Oito Anos” idem, ponte com Casimiro de Abreu – Mauro lhe fez um curta – no alumbramento.

A fidelidade ao livro não bateu nos extremos, na mera transcrição do texto. Apoiado na consultoria do jornalista Virginius da Gama e Melo, bem como em entrevistas feitas com a tia de José Lins, Walter Lima Jr. criou um recorte seletivo. O desespero do menino, solitário, filho do louco homicida, criado pelos Tio Juca (Geraldo Del Rey) e Tia Maria, se altera perante o livro. Além de cortejar o cangaceiro Antônio Silvino – trecho intocado por Lima Jr. –, cai de maneira muito mais brutal no clamor do sexo. Os exibidores cercaram o filme de uma curiosa estratégia, dando ênfase aos escândalos que não são vistos em cena. Contam-se selinhos, cenas breves de acasalamento entre, digamos, vegetais e os moleques. Estranho que a libido infantil ainda aterrorizasse – ainda aterroriza –, mesmo sendo constatação demodê.

Piques pelos corredores, convívio de Carlos com os primos. Invadem a igreja, profanam santos, fingem confissão entre si, tiram umas com o aloprado Primo Vitorino – idoso, gordote andando a burrico. Espuma de barba imaginária, balanço na rede, idas à escola, nova morte – da prima Lili –, antes de chegar à terceira: a despedida de tia Maria, que sai do engenho para o casório. Sacrifício do carneiro prometido por Tio Juca como animalzinho de estimação. Quebra de confiança, ensimesmamento do guri roceiro que vê as primas de Recife passarem temporada. Uma delas comete uma estripolia bem pueril, continuando o processo de iniciação amorosa do menino.

Os primos se vão, Carlos partirá. Hora aguardada, clímax em que o adeus não é só aos que acenam ou correm pela colina, esgueirando-se para verem o trem. A pá de cal fica para a estabilidade conquistada nos modos, nos lugares, na fase enterrada, que se abre para uma nova.

Os equívocos em “Menino de Engenho” devem-se a questões de continuidade – compartilhadas com a montagem, como na rápida transição entre o luto pela prima e as brincadeiras com os demais garotos. A dublagem carioca prejudica um tanto – em especial quando misturada à prosódia da região –, aspecto porém afastável, submergindo no intento do diretor. O filme vence ao driblar a pieguice, concretizar a saudade. Saudade que toma o futuro em “Brasil Ano 2000” (1969), projeto seguinte, no córner do ascenso setentista, quando Walter Lima Jr. migra para o desbunde, mescalina de uma nova ficção.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Todas as Mulheres do Mundo


Correndo por fora no jóquei, balançando o chapéu no ar de vitória, “Todas as Mulheres do Mundo” (1967) entra e sai da programação do Cinema Novo com a non chalance do diretor-roteirista Domingos de Oliveira. Tijucano, migrante em Copacabana, incorpora o ideal de suavidade na produção, a câmera livre, mas renega o pragmatismo, a defesa iracunda do movimento.

Joaquim Pedro de Andrade convida-o para assistência nos curtas “Manoel Bandeira, o Poeta do Castelo” e “Couro de Gato” – este, um quinto de “Cinco Vezes Favela” (1962), em que também sua o paletó na versão ator. Rodopiou o cine Ópera, durante a exibição de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, deu um urra ao épico agreste, mas o cinéfilo deteve – como ainda detém – posição secundária. Concentrou os esforços no teatro, alguns deles ao lado de Gláucio Gil, o que justifica o bilhete-dedicatória em “Todas as Mulheres”.

Marco sensorial no trajeto, une-se a Leila Diniz, ainda ex-professora de crianças de colo, adepta intuitiva de Summerhill – dado não à toa inserido no roteiro. Quando já atriz em pequenas pontas, separam-se. Surge “Todas as Mulheres do Mundo”, e até que instância chega a fingir que é dor a dor que deveras sente, o curioso público fica na escuta; por determinadas insinuações, supõe-se que sim.

Afirmativo ou negativo o fato de ser catarse, Domingos constrói um cântico devotado, promessa de eternidade costurada em narrativa ágil, cara de pau, reflexiva nas brechas, tintas claras da Guanabara. Fotografia em preto-e-branco – câmera do múltiplo Mário Carneiro –, “Todas as Mulheres do Mundo” influenciou a vinda de outros filmes, retocados na moviola para não fazerem feio. O estrondo de aceitação, no público e na crítica, foi excepcional; abriu as ventanas para alas mais ortodoxas respirarem um pouco. Porque bode demais não dá, recitaria Hugo Bidet ao mexer as conchas da infame feijoada que o nomeou.

“Os Paqueras” (1969), quem diria, sucesso do cinema popular brasileiro, divide tulipas de chope com este clássico da Saga Filmes – comandada por Marcos Faria e Leon Hirszman –, produção associada de Cyll Farney. Exatamente: o leitor que esperava entrar em óbito sem conjugar na mesma frase Cyll Farney e Leon Hirzman pode mudar de planos, a surreal realidade se impõe.

Alterando uns graus no colarinho, digerindo um tanto do éter poético de Domingos – sobretudo escritor, antes de roteirista –, “Os Paqueras” coloca decibéis dos Mutantes, Roberto Carlos, Ronaldo Bôscoli e um lado cafa que as oficinas de Carlos Imperial lhe emprestou. Em “Todas as Mulheres” a trilha é de fanfarra, pop bubblegum, circo cínico, redesenha algo que não é chanchada porém soa cômico, o que não é intelectualizado porém soa doído. Tudo com a delicadeza fulgurante de quem encontrava Marília de Dirceu – trajando duas peças, batendo perna, sorriso no rosto amado.

Previstos para serem dois médias-metragens, o longa tomou corpo sem arredar um milímetro. Paulo (Paulo José) conta a Edu (Flávio Migliaccio) a falseta que uma pequena, Maria Alice (Leila Diniz), lhe aplicou. No segundo média, Edu lembraria ele próprio seus causos ao amigo. Eduardo Prado, autor dos contos que serviram de mote a “Todas as Mulheres”, auxiliou Domingos em “Edu, Coração de Ouro” (1968) – estrelado mais uma vez por Paulo José –, projeto que atende parcialmente à ideia da interlocução.

Acompanhamos o casal andando pelo centro do Rio, Cinelândia, praias, boates, apartamentos, desfile de cocotas que inclui Maria Gladys e Marieta Severo pós-púberes. A cobiça de Paulo, o flagrante do beijo, Don Juan que se perde no ar, estatelado pela Maria Alice então namorando a sério o boa-praça Leopoldo (Ivan de Albuquerque) – “Você não acha chato não, Maria Alice, namorar um cara chamado Leopoldo?” Paulo faz o impensável, o que nem Erasmo Carlos suportaria: dá um tchau para o caderninho. Rasga da memória as meninas antigas. Uma delas, que fazer?, o traía com Edu, paciência. Outra, figurante escondida na novela “O Sheik” – em que Leila, aliás, trabalhava.

É de Leila todo o subtexto do filme, todo o agrado em ser e dizer-se independente – a personagem pigarreia um toco, confessa o desejo de casar, véu e grinalda. “Todas as Mulheres” lançou-a, de maneira irreversível, no cotidiano brasileiro. Pularia vedete, namoradinha televisiva, entrevistada do Pasquim, asterísticos à solta para contornar os palavrões que saíam em cascata, na naturalidade de quem escova os dentes e choca por querer ou por instinto. Alvo de feministas encalacradas, futura mãe do ano – eleita no programa do Chacrinha – é figura inevitável em qualquer escavação sobre os anos 60. Dentre os destroços do acidente que a matou, os resquícios do diário, pensando na filha, reforçam a tragédia e a elegia ao seu redor.

De solaridade, canalhices perdoadas, fossa homérica – Leopoldo morre –, nucas e encucações, o filme se enche, frenesi que agrada ainda hoje. Espaço para trisal, brincadeirinhas sutilmente lésbicas, prima Bárbara (Joana Fomm) e Dúnia (Isabel Ribeiro) num clima vamp, saborosíssimo, além da amante argentina – um quê da diva italiana Mina Mazzini. Reparem que a montagem de Raimundo Higino e João Ramiro Mello – assistência de Nazareth O'Hana, mãe de Cláudia – contribui para a esperteza no encadeamento das imagens que espocam por todo o filme, incluindo um close da carteira de identidade de Flávio Migliaccio e fotos vintage. “Ilha das Flores” (1989), de Jorge Furtado, mantém esse ritmo duas décadas depois – na era Collor –, coincidentemente narrado por Paulo José.

Logo em seguida da experiência no Serro, em “O Padre e a Moça” (1966), Paulo adere ao espírito aloprado do xará fílmico, embarca no que parecia alienação de cineasta pequeno-burguês, frequentador das mesas do Veloso. Fauzi Arap – o bêbado arauto de “O Padre e a Moça” – aparece como o paulistano obcecado, do tipo lenda urbana, encurralando Maria Alice durante um almoço.

Cartaz desenhado por Jaguar, sacerdote do decathlon nas revoadas noturnas, “Todas as Mulheres do Mundo” instalou-se em um gomo da afetividade. Alimenta-se ali, convive com os demais, diz uma graça que caia bem e acena para o dia seguinte mais tranquilo. Estratégia de abraçar o possível – dúvidas e ceticismos no meio do processo, como os de Edu, incrédulo na festinha entre crianças e adultos. Acredita no amor – pleno, tanto quanto der – e consegue a proeza, indisfarçável, de tornar imbecil quem, se opondo, levantar o indicador em riste.