sábado, novembro 28, 2009

Bar Esperança


Um dos melhores botequins que o Rio de Janeiro já teve funcionou somente por algumas semanas, e em endereço improvável: o cinzento bairro de São Cristóvão, Rua Sá Freire, 94 -- mais precisamente os estúdios da Magnus Filmes, de Jece Valadão -- onde Hugo Carvana filmava o seu delicioso "Bar Esperança" (1983).

Como em todos os filmes de Carvana, a história simples -- o fechamento de um bar, espaço sentimental de amigos -- melhora na proporção em que compreendemos as intenções do autor: se "Vai Trabalhar Vagabundo" era uma ode ao homem brasileiro urbano, "Bar Esperança" é sobre um estado de espírito -- carioca e cosmopolita -- que àquela altura dos acontecimentos já se mostrava inviável.

No bar trafegam o escritor Zeca (Carvana) e a atriz Ana Moreno (Marília Pêra), sufocados por litros de chopp e toneladas de amigos. Zeca é o típico intelectual da zona sul, equilibrando-se entre a necessidade de ganhar dinheiro e a vontade de rumos mais interessantes. Sente-se mortificado pelo trabalho na tv, refém da arrogância do patrão -- o produtor Baby (Oswaldo Loureiro) -- e da hipocrisia dos próprios colegas.

Zeca e Ana moram em um apartamento enfeitado por um pôster de John Lennon, duas crianças e uma máquina de escrever. Utilizam pouco a casa, extensão do bar. Ao levar chá de cadeira na tv, Zeca dá um piti e joga tudo para o alto. Ana, fazendo sucesso na mesma emissora como a vilã Berenice, se desespera e larga o marido. No bar, discutem e discutem a relação -- e as decisões ganham ares de imersão existencialista.

A loucura dos gestos e falas dos personagens é explicável pelo temperamento histérico e displicente da chamada "esquerda festiva", termo cunhado pelo jornalista Carlos Leonam para designar um mito ipanemense. Revolucionários adoráveis, esculhambavam com o meio, a fauna e a flora. Cariocas militantes, aceitariam o Sig -- aquele ratinho verde do Pasquim -- na mesa de braços abertos, desde que ele não enchesse a paciência e bebesse um bocado.

Os filhos de Ana e Zeca, conhecendo a verve dos pais, fazem até estoque de comida para tempos difíceis. Wilson Grey, como sempre o único lúcido, sugere que "Copacabana e Leme vão acabar tragados pela merda". Um ex-colega de faculdade de Ana, Pessanha -- apelidado Camelo -- denuncia que "enquanto ela fazia política, ele ganhava dinheiro". Ana baixa os olhos, mesmo porque sabe que sem a tv o marido terá que voltar a produzir romances -- sob o mimoso pseudônimo de "Shirley Almada".

Outro que se desfaz nos mesmos dilemas é Tuca (Luis Fernando Guimarães), ator que consegue oportunidade em uma pornochanchada, "A Viúva do Sadomasoquista", contracenando -- e brochando -- com a estrela do gênero, Áurea Celeste. E, de fracasso em fracasso, resta beber, cair duro ou até sequestrar cachorro. Zeca e o amigo Ivan (Nelson Dantas) depois de uma noite e tanta acordam -- ironizando o delirium tremens -- com um belo pastor alemão na cama, roubado de Nina (Louise Cardoso).

No decorrer da separação, Ana diz a Zeca que "crise a gente tem é pra melhorar, se não é desculpa pra fraqueza". O marido parece realmente fraco, confuso, e na hora de pegar a mudança no apartamento toca na vitrola o lp "Cores Nomes" de Caetano Veloso, safra 82. Em seguida junta-se a Nina para fazer teatro em tribos indígenas, enquanto Ana conhece Arnaldo (Daniel Filho), sujeito mais enrolado (e fraco, confuso) que o marido.

História paralela, a de Cabelinho (Paulo Cesar Pereio) e a mulher, Cotinha (Silvia Bandeira), termina em striptease da dedicada esposa, durante louca vernissage do artista plástico Walfrido Salvador (Anselmo Vasconcellos) no banheiro do bar. Humilhado, etilicamente dependente do garçom Prepúcio (Sandro Solviatti), Cabelinho muda do vinho pra água e passa a tratar a mãe de seus filhos como uma deusa, o que de fato naquela época Silvia Bandeira não se furtava a ser.

Segunda extensão de lar carioca, -- além do botequim -- a praia mostra-se tímida, sob a trilha-sonora da famigerada Rádio Cidade, então quase ruído incidental dos acontecimentos locais. Outra figuração datadíssima é do veículo-merchandising em formato de tênis, que circulou pela orla durante alguns verões.

O desaparecimento do Esperança, para dar vez a um shopping center, serve de paralelo lúdico ao que o Rio perdeu. E quando celebram a perda, os frequentadores não escapam à triste sina da metrópole que assistiu passiva à retirada do status de capital, à demolição do Palácio Monroe, à fusão com o estado do Rio -- e ao sacrifício de quase tudo que um dia foi orgulho, sem receber qualquer compensação em troca.

Discutindo com Passarinho (Antônio Pedro), Zeca faz auto-crítica: viravam todos caricaturas de si mesmos. Mais uma vez o sentido do diálogo é amplo: dispersos em seu estilo de vida, orfãos de um bem-estar nostálgico, os frequentadores do Bar Esperança são a cidade e seus habitantes acuados pelo progresso decadente, insatisfeitos com uma transformação artificiosa.

Misto de vários bares reais: o Lagoa, o Lamas, o Bar Luiz, a Confeitaria Colombo, "Bar Esperança" acumula emoções vivas, psicanálise dionisíaca, etnocentrismo de primeira. Não à toa, o roteiro passou por diversos tratamentos (Carvana, Denise Bandeira, Martha Alencar, Armando Costa, Euclydes Marinho), montando um comovente retrato da classe-média nos anos 80. Justo quando o país -- e sua urbanidade-síntese -- descobriam-se em exasperante ressaca.


domingo, novembro 22, 2009

Menino do Rio


Grande momento do cinema brasileiro, "Menino do Rio" (1982) representou epítome da geração nascida em meados dos anos 60, e que a partir de então assumiria de vez o panorama cultural do país. Não à toa foi estrelado por André De Biase, Evandro Mesquita e Sérgio Mallandro -- nomes que um futuro distante, repleto de nostalgia oitentista, adoraria como semideuses.

Foi também o filme que jogou o diretor Antônio Calmon a outro patamar de realização, infelizmente afastando-o daquilo que sabia fazer melhor: o cinema policial sem escrúpulos, desvairado, de "Paranóia" (1976) ou do clássico "Eu Matei Lúcio Flávio" (1979).

Produção da família Barreto, "Menino do Rio" anunciava novos tempos. Os anos 60 e 70 da psicanálise, de Marx, Marcuse e dos roqueiros "com cara de bandido" -- nas palavras de Rita Lee -- ficavam para trás. Nascia uma juventude saudável, ideologicamente neutra, que começaria a puxar ré ao neoconservadorismo que vivemos hoje.

Adepto deste ar bom-moço, o protagonista Valente (André De Biase) mora em local ignorado, próximo da Barra, conserta pranchas de surfe e se alimenta basicamente de peixe, vinho em garrafão e vitaminas de frutas. Seus amigos seguem o mesmo estilo: Zeca (Sérgio Mallandro), o casal zen-surfista Aninha (Cissa Guimarães) e Paulinho (Evandro Mesquita); além do agregado Pepeu (Ricardo Graça Mello).

Voam de asa-delta, fazem luau em Saquarema e até arriscam um baseado. Quem não conhecesse as noites "brilhantes" do Rio na época -- fielmente retratadas em "Rio Babilônia" -- poderia achar que a cidade mergulhara no jardim de infância. Ou que a moçada barra-pesada do Leblon, que o próprio Calmon alimentara a pires de leite em "Terror e Êxtase", tinha se mudado para Belo Horizonte.

Tanta ingenuidade cria armadilha maniqueísta, onde jovens bons se contrapõem a uma sociedade intrusa, essencialmente má, habitada pelos adultos e outros jovens "por fora". Caso de Patrícia (Claudia Magno), noiva de Adolfinho (Ricardo Zambelli), e amante de Braga (Adriano Reys). Quando namora Valente, filho de Braga, Patrícia termina cooptada pelo mundo "bom". Sua fisionomia muda. Deslumbra-se com a revelação -- em cores cítricas -- da verdade balneária.

Detalhe atraente, os nativos falam o lindo dialeto carioca, captado pouco antes de doses maçiças do Xou da Xuxa transformarem a prosódia da cidade em uma espécie de submiguxês. Também a trilha sonora interpretada por Ricardo Graça Mello e o marketing obsessivo da Energia, loja de "moda surf" em Ipanema, encantam os corações ouriçados.

Aos puristas fica o aviso de que faltou a Company -- marca onipresente na zona sul -- e a Rádio Cidade, para que o instantâneo adquirisse completa verossimilhança. Misturar praia e esportes afins com gestuais e acessórios do cotidiano começava a ganhar tintas de holocausto, marginalizando ao longo da década qualquer jovem que se recusasse a ter aparência de havaiano.

No mundo adulto, Adriano Reys bem que tenta segurar a onda, não compra vestuário em Bali e termina perdendo Cláudia Magno -- precocemente falecida aos 35 anos, em 1994 -- para o chalé do filho. Exagero da produção, o príncipe valente André de Biase surge várias vezes com o cabelo imóvel, provavelmente com boas doses de laquê Aspa.

Tamanha cafonice devolveria qualquer heroína às mãos felpudas do pai, mas Patrícia e uma amiga, interpretada por Nina de Pádua, também abusam de ombreiras e peruagem surreal. Cissa Guimarães e Cláudia Ohana, gatinhas de praia, já não caem nessas armadilhas e, de biquíni e cara lavada, atravessaram as décadas tão naturalmente apetitosas quanto deviam parecer em 1982.

Na estréia do filme, em janeiro daquele ano, à eterna má vontade da crítica somou-se certa tentativa de desmerecê-lo como reles escapismo. Salvyano Cavalcanti de Paiva, no Globo, chegou a falar em "anestésico". O tempo demonstraria que apesar da fórmula feita, do medo de errar, Calmon e Bruno Barreto -- o produtor -- geraram otimismo imenso, recompensado pelo sucesso nas bilheterias -- propiciando até uma continuação fraquíssima: "Garota Dourada" (1984).

De fato a epifania do mar, do sol e da vida coletiva era ótima de se querer na saída do cinema. De se curtir dirigindo um bugre cheio de amigos até o Pontal. E é assim que devemos nos impressionar por "Menino do Rio": idealização do que aqueles jovens gostariam de viver, de ser. Espécie de nova utopia, sobrepondo a paisagem e o bronzeado ao humanismo e à racionalidade.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Quando as Mulheres Paqueram


De um tempo em que as pessoas podiam fumar à vontade, Chacrinha não era considerado politicamente incorreto e pernocas de fora motivavam suspiros em vez de ódio, "Quando as Mulheres Paqueram" (1971) causará no espectador, quarenta anos depois, a incômoda impressão de ser avançado e ousado em excesso.

Na gênese da pornochanchada, a direção de Victor di Mello -- roteiro da atriz Dilma Lóes, sua mulher -- acertou em tudo, e não parece exagero dizermos que, ao lado de "Os Paqueras", esta foi a melhor comédia erótica realizada no país. Inicialmente chamado "Assim Nem a Cama Aguenta", exibido em festivais internacionais com esse título, angariou grande simpatia pelo lindo e jovem casal diretor-roteirista. Voltando ao Brasil a censura implicou, e a liberação terminou vinculada à troca de nome.

"Quando as Mulheres Paqueram" estreou no Rio em fevereiro de 1972. Carlos Imperial, em sua coluna, o definiu mais ou menos assim: "Conta a história de três garotas super da pesada que ficam abatendo os grandes abatedores de lebres que existem por aí" (sic). Traduzindo para o português de hoje, o filme pretende avançar na questão feminista -- grande pauta daquele ano que se iniciava -- mostrando duas primas, Ângela (Eva Christian) e Patrícia (Sandra Barsotti), além de uma amiga esquisitona, Meg (a própria Dilma Lóes), invertendo papéis e transformando em caça dúzias de garanhões caçadores.

Ângela é filha de um casal de meia-idade -- interpretado pelos pais de Dilma na vida real, Urbano Lóes e Lídia Mattos. Já a prima Patrícia retorna ao Brasil, junto com Meg, depois de longa temporada estudando em Londres. A produção se esforçou, despachando equipe para a Inglaterra e filmando na capital britânica as atrizes-turistas caminhando pela Carnaby Street, ouvindo discursos no Speaker´s Corner do Hyde Park e tumultuando a guarda do Palácio de Buckingham.

Por alguma razão misteriosa -- patrocínio? -- elas dispensam a Varig e compram passagens de volta ao Brasil pela Lufthansa. Já instaladas em terras cariocas iniciam um périplo, cada uma com seu objetivo: Meg pretende fazer pesquisas de comportamento; Patrícia quer faturar quantos homens puder. Ângela antipatiza com ambas, a quem considera umas "caretas".

Não se enganem com argumentos simplórios. Passeamos pela cidade maravilhosa do Antonio´s, do Zeppelin, do Castelinho e pelas inúmeras camas onde se deitam Ângela e Patrícia. Sandra Barsotti logo aprende a catequizar os locais com uma singela piscadinha, enquanto Eva Christian pratica topless em um apartamento cheio de amigos. Rivalizando em gostosura, vão enfileirando homens e situações não muito engraçadas, mas que servem de pano de fundo à crônica de costumes, tão ao estilo shagadellic da época.

Em certo momento o ator Cláudio Cavalcanti, antes de se apaixonar por uma melancia em "Vereda Tropical", faz o papel de si mesmo, saindo de uma incrível loja de artigos sonoros no Posto 6 -- e sendo abordado pelas furiosas. Outras vítimas são os galãs Carlo Mossy, David Cardoso e Francisco di Franco.

Sim, esta foi a primeira vez em que Carlo Mossy e David Cardoso -- os reis da pornochanchada - -- aparecem juntos nos créditos, embora não contracenem. Repetiram a dose, dezoito anos depois, no lendário "Solidão, Uma Linda História de Amor" (1989) -- também dirigido por Di Mello --, o maior elenco nacional já reunido em um dos piores filmes de todos os tempos.

Cansadas do Rio, as meninas sirigaitam em São Paulo, e a coisa ganha um ar ainda mais turístico que em Londres. De qualquer forma é bom ver a esquina de Paulista com Augusta irreconhecível, além do Monumento aos Bandeirantes, o Terraço Itália e outros pontos de interesse estereotipados, que certamente os realizadores cariocas puxaram pela memória.

Meg, a personagem de Dilma, é um espetáculo à parte com suas "pesquisas", chegando a vestir-se de mendiga para saber como é a vida nas ruas, tocando flauta de bumbum pra cima ou dirigindo um kart noite adentro. A última cena com Dilma, Mossy e Zózimo Bulbul na cama, sob um poster do futuro banido da vida artística Wilson Simonal, parece nos lembrar da impossibilidade de se compreender aquele espírito nos dias de hoje.

Não tanto pelos dramas descartáveis, mas pelas escolhas que seus personagens faziam, o cinema comercial dos anos 70 ganha ares cada vez mais exóticos e libertários. Responsáveis por seus atos, imunes ao vitimismo e à tutela, os ingênuos de outrora envelhecem como doces transgressores. Se discordam da observação sugiro experimentar em 2009 uma refilmagem de "Quando as Mulheres Paqueram". Depois chamem parte da crítica, do público -- quem sabe alguns alunos da Uniban -- para julgarem o resultado.


segunda-feira, novembro 02, 2009

Pra Frente, Brasil


Poderia ser uma história trágica, sem final feliz. Interditado pela censura, "Pra Frente Brasil" (1982) acabou liberado em instância superior, sem cortes, e estreou no país em fevereiro de 1983.

A liberação foi, antes de tudo, uma conquista da sociedade civil. Em 1982 os brasileiros votaram para governador e julgavam cada vez mais perto a volta da democracia. Ninguém podia imaginar que eleições diretas para presidente só aconteceriam no distante 1989, mas as pequenas vitórias, como a realização de um filme sobre a tortura, eram saborosas. A população, cansada dos militares, começava a enxergar o que de fato acontecera nos vinte anos de ditadura.

Quase três décadas passadas, fica nítido que o diretor Roberto Farias jogava um xadrez perigoso. Não à toa sofisma, entregando o herói Jofre (Reginaldo Faria) nas mãos de um grupo de torturadores operantes à margem do Estado, financiados por um grupo de empresários inescrupulosos. Contornar o enfrentamento, a denúncia, foi saída inteligente para dizer o que precisava ser dito. Farias tinha plena consciência de que, mesmo em 1982, uma veemência maior ainda podia lhe custar caro.

Essa digressão em nada prejudica "Pra Frente, Brasil". As qualidades do filme em causar sensação de paranoia no espectador, em repisar o lado humano do drama político, permanecem intactas -- e constituem imediata associação à repressão estatal, independente desta não ser nomeada com todas as letras.

Dado curioso, o clássico da Boca do Lixo "E agora, José?" trouxe história parecida em 1979, três anos antes da polêmica de "Pra Frente, Brasil". Tanto José, vivido por Arlindo Barreto, quanto o Jofre de Roberto Farias, são inocentes úteis, empastelados pela confusão psicótica que os regimes autoritários produzem. Jofre tem que confessar, apanha desbragadamente, mas não sabe de nada: apenas aceitou carona no aeroporto com um tal de Sarmento (Cláudio Marzo) -- esse sim, militante tocaiado pelo sinistro Dr. Barreto (Carlos Zara).

As investigações do irmão de Jofre, Miguel (Antônio Fagundes), levam ao grupo de empresários em que atua seu próprio patrão, Geraldo (Paulo Porto). Como pano de fundo os jogos do Brasil na Copa de 70 e a esfuziante burocracia policial carioca, incluindo as geladeiras e os "presuntos" do Instituto Médico Legal. Quase se cheira o centro da cidade, angustioso e calorento, por onde arrastam-se Miguel e Marta (Natália do Valle), mulher de Jofre, sem notícias de seu paradeiro.

É fácil associarmos "Pra Frente, Brasil" a tantos outros filmes políticos, principalmente os do diretor grego Constantin Costa-Gravas. Mas Roberto Farias sempre repudiou a comparação, dizendo em entrevista à Revista Veja, de 16 de fevereiro de 1983, que Gravas lhe parecia um cafetão das esquerdas. Morando em Paris, o grego falava sobre realidades distantes à sua. Já o brasileiro prestava contas imediatas ao meio, na cara e coragem.

Aliás, conta a lenda que "Pra Frente, Brasil" inspirou-se em acontecimento real, vivido pelo protagonista Reginaldo. Certo dia, ao cochichar de brincadeira que "portava uma arma" para uma mulher na fila do aeroporto do Galeão, o ator foi levado para interrogatório. Do susto nasceu o argumento "Sala Escura", transformado pelo irmão Roberto no roteiro do longa.

Outra paralelo triste é o de Carlos Zara, que quase recusou o papel de torturador por ter tido seu irmão, Ricardo Zaratini, preso e torturado em 1969. Já a morte do empresário vivido por Paulo Porto remete ao fuzilamento, em 1971, de Henning Albert Boilesen, industrial acusado de ser patrocinador da Operação Bandeirantes, que arrecadava caixinha para a repressão em São Paulo.

Porém a história mais curiosa sobre o filme envolve o atual ministro das Relações Exteriores do governo Lula, Celso Amorim. Em abril de 1982, Amorim era presidente da Embrafilme, e terminou saindo do cargo depois de ter aprovado o financiamento para a produção. Isso só demonstra que a queda de braço entre Farias e a censura foi heroica.

Trívia: a proibição inicial deu-se sob a alínea D do artigo 41 da Lei 20.943, de 1946, que previa "interdição quando a obra for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades e seus agentes".

Provocando ou não provocando, Roberto Farias jogou como Tostão, Pelé e Jairzinho. Durante toda a campanha para a liberação argumentava na imprensa que seu filme não era radical, lembrava os bons serviços frente à Embrafilme entre 1974 e 1979, e mobilizava colegas e público em sua defesa. Claro, beneficiou-se também do momento histórico, quando todos testavam a veracidade da chamada "Abertura". Ao documentar o horror e posteriormente viver um calvário burocrático, Farias ajudou a escancarar novas portas para a liberdade.

Jofre, Miguel e Marta -- pessoas comuns -- conseguem até hoje nos dizer que ninguém pode se dar ao direito de omissão em momentos de exceção política. À certa altura da história uma tomada de consciência dos vivos -- em homenagem ao morto injustiçado -- lembra que, longe da ficção, gente como eles em sua maioria apoiava em 1970 o governo do General Emílio Garrastazu Médici, crentes na ilusão do Brasil Grande.

Em 1983, incomodados na sala escura, os brasileiros podiam ver em cores, no grito de "Pra Frente, Brasil", o que se contava à boca pequena todos aqueles anos, reverso das noites falsamente tranquilas do "milagre econômico". Emblema de um fim, "Pra Frente, Brasil" deixava o país inquieto para a catarse das Diretas-Já. E novas ilusões, aventuras e descontentamentos felizmente agora vividos não mais sob a alínea D, do artigo 41 da Lei 20.943, mas sob o signo iluminado da autodeterminação.