Não há qualquer exagero em dizermos que, entre 1978 e 1982, Jean Garrett foi um dos mais férteis e inovadores cineastas em atividade no país. De títulos oportunistas como "Mulher, Mulher" a pequenas obras-primas como "A Mulher que Inventou o Amor" (1979), o gênio de Garrett encantou platéias, criou paradigmas e relativizou tabus, funcionando como uma resposta popular às transformações sociais e comportamentais dos anos 70 e 80.
Desaparecidos, quase inacessíveis ao público, o encanto destes filmes é plenamente explicado se traçarmos uma analogia simplista: Garrett está para o cinema assim como Roberto Carlos, Paulo Sérgio, Fernando Mendes, ou uma ampla variedade de artistas de sucesso, remando na contramão dos ditames pseudo-intelectuais, estavam para a música. Ainda que essa contextualização mereça um tratamento mais amplo e complexo, em Garrett -- assim como em Roberto, notadamente naqueles anos 70 -- a aparente simplicidade dos temas ocultava uma sofisticação discreta, quase obsessiva, intimista, construída em uma linguagem acessível, plena de entendimentos e significados.
"A Mulher que Inventou o Amor" -- com roteiro do escritor João Silvério Trevisan -- é tudo isso, e o adendo de mostrar Garrett em meio à tragédia clássica, que sabia operar muito bem, melhor talvez do que o erotismo, presente em seus melhores filmes como eletiva ilustração -- na verdade, imposição do mercado da Boca --, pois não faria a mínima diferença no resultado final.
De ingenuidade folhetinesca, a protagonista Doralice (Aldine Muller) é hipnotizada pelos homens e pela idéia de casar. Muito pobre, acaba surpreendida nas quebradas da vida: depois de perder a virgindade em um açougue, conta para a melhor amiga (Heloisa Raso) os detalhes -- e a outra, trocando confidências, revela que faz ponto em um inferninho de prostituição. Se o leitor achar que já viu isso em Nelson Rodrigues, espere pelo que vem a seguir.
Não demora, Doralice também é garota de programa. Passa a ser conhecida como a "Rainha dos Gemidos" e reafirma o sonho de casar, comprando um vestido de noiva em dezoito prestações. Toda noite, quando volta do batente, posiciona-se de véu e grinalda em frente ao poster de um fictício ator César Augusto, seu ídolo, e dá asas à fértil imaginação. Além disso, frequenta discretamente cerimônias de casamento, onde conhece o Doutor Perdigão (Rodolfo Arena), homem de mais de sessenta anos, um cliente que mudará seu destino.
Perdigão assume Doralice, monta para ela um belo apartamento nos Jardins, na Rua Haddock Lobo, e promete que irá transformá-la em dama da sociedade. No terço Pigmaleão da história, Doralice recebe uma tutora (interpretada por Lola Brah), e se transforma na inefável Tallulah -- pseudônimo inspirado na vamp dos silent movies, Tallulah Bankhead. "Que nome incrivel, lembra aranha!", diz a melhor amiga.
Durante o aprendizado, Tallulah frequenta até aulas de inglês, ministradas por ninguém menos que Carlos Reichenbach (apesar das aulas, Reichenbach conseguiu tempo livre para fazer também a bela fotografia do filme). Senhora de si, deixará de ser manipulada pelos homens e adquire postura ativa, fálica, que desagua na inversão sexual de colocar os velhos algozes vestidos de noiva ou simulando sua qualidade na cama: os gemidos.
Uma providencial viagem do Doutor Perdigão leva Tallulah finalmente a cortejar seu amor, o ator César Augusto, que é bissexual e aceita de bom grado usar roupas femininas e até véu e grinalda. Posteriormente, César repudia os hábitos e Tallulah se enfurece -- não só contra ele, mas progressivamente contra todos os homens do mundo representados na figura saudável e atlética do galã de tv.
A metáfora da figura feminina humilhada e oprimida, que adquire conhecimento para libertar-se da opressão, cria um paralelo interessante entre "A Mulher que Inventou o Amor" e um dos melhores subgêneros do cinema exploitation: aquele da "vingança de mulheres", como no sueco Thriller - A Cruel Picture. A diferença na história de Garrett é a sutileza, arquitetada até a cena final, quando Tallulah, enfim, triunfa.
Português do Açores, contra-regra de José Mojica Marins e editor de fotonovelas, um dia Jean Garrett recebeu de David Cardoso a chance de dirigir. Nascia assim um dos melhores diretores do cinema popular brasileiro, sem grande instrução formal, mas que trabalhando com roteiristas e técnicos diversos, manteve uma coerência admirável em seus trabalhos.
Quem se debruça sobre a obra de Garrett, em pouco tempo reconhece o inconfundível estilo narrativo, ainda que o esmero das produções varie bastante. Perdoado pela meia dúzia de pornôs constrangedores que dirigiu no final da carreira, sob o disfarce de J. A. Nunes, em "A Mulher que Inventou o Amor" fez cinema para adultos, autoral e repleto de poesia bárbara, que não oferece qualquer redenção; apenas cinismo, náusea.
Desaparecidos, quase inacessíveis ao público, o encanto destes filmes é plenamente explicado se traçarmos uma analogia simplista: Garrett está para o cinema assim como Roberto Carlos, Paulo Sérgio, Fernando Mendes, ou uma ampla variedade de artistas de sucesso, remando na contramão dos ditames pseudo-intelectuais, estavam para a música. Ainda que essa contextualização mereça um tratamento mais amplo e complexo, em Garrett -- assim como em Roberto, notadamente naqueles anos 70 -- a aparente simplicidade dos temas ocultava uma sofisticação discreta, quase obsessiva, intimista, construída em uma linguagem acessível, plena de entendimentos e significados.
"A Mulher que Inventou o Amor" -- com roteiro do escritor João Silvério Trevisan -- é tudo isso, e o adendo de mostrar Garrett em meio à tragédia clássica, que sabia operar muito bem, melhor talvez do que o erotismo, presente em seus melhores filmes como eletiva ilustração -- na verdade, imposição do mercado da Boca --, pois não faria a mínima diferença no resultado final.
De ingenuidade folhetinesca, a protagonista Doralice (Aldine Muller) é hipnotizada pelos homens e pela idéia de casar. Muito pobre, acaba surpreendida nas quebradas da vida: depois de perder a virgindade em um açougue, conta para a melhor amiga (Heloisa Raso) os detalhes -- e a outra, trocando confidências, revela que faz ponto em um inferninho de prostituição. Se o leitor achar que já viu isso em Nelson Rodrigues, espere pelo que vem a seguir.
Não demora, Doralice também é garota de programa. Passa a ser conhecida como a "Rainha dos Gemidos" e reafirma o sonho de casar, comprando um vestido de noiva em dezoito prestações. Toda noite, quando volta do batente, posiciona-se de véu e grinalda em frente ao poster de um fictício ator César Augusto, seu ídolo, e dá asas à fértil imaginação. Além disso, frequenta discretamente cerimônias de casamento, onde conhece o Doutor Perdigão (Rodolfo Arena), homem de mais de sessenta anos, um cliente que mudará seu destino.
Perdigão assume Doralice, monta para ela um belo apartamento nos Jardins, na Rua Haddock Lobo, e promete que irá transformá-la em dama da sociedade. No terço Pigmaleão da história, Doralice recebe uma tutora (interpretada por Lola Brah), e se transforma na inefável Tallulah -- pseudônimo inspirado na vamp dos silent movies, Tallulah Bankhead. "Que nome incrivel, lembra aranha!", diz a melhor amiga.
Durante o aprendizado, Tallulah frequenta até aulas de inglês, ministradas por ninguém menos que Carlos Reichenbach (apesar das aulas, Reichenbach conseguiu tempo livre para fazer também a bela fotografia do filme). Senhora de si, deixará de ser manipulada pelos homens e adquire postura ativa, fálica, que desagua na inversão sexual de colocar os velhos algozes vestidos de noiva ou simulando sua qualidade na cama: os gemidos.
Uma providencial viagem do Doutor Perdigão leva Tallulah finalmente a cortejar seu amor, o ator César Augusto, que é bissexual e aceita de bom grado usar roupas femininas e até véu e grinalda. Posteriormente, César repudia os hábitos e Tallulah se enfurece -- não só contra ele, mas progressivamente contra todos os homens do mundo representados na figura saudável e atlética do galã de tv.
A metáfora da figura feminina humilhada e oprimida, que adquire conhecimento para libertar-se da opressão, cria um paralelo interessante entre "A Mulher que Inventou o Amor" e um dos melhores subgêneros do cinema exploitation: aquele da "vingança de mulheres", como no sueco Thriller - A Cruel Picture. A diferença na história de Garrett é a sutileza, arquitetada até a cena final, quando Tallulah, enfim, triunfa.
Português do Açores, contra-regra de José Mojica Marins e editor de fotonovelas, um dia Jean Garrett recebeu de David Cardoso a chance de dirigir. Nascia assim um dos melhores diretores do cinema popular brasileiro, sem grande instrução formal, mas que trabalhando com roteiristas e técnicos diversos, manteve uma coerência admirável em seus trabalhos.
Quem se debruça sobre a obra de Garrett, em pouco tempo reconhece o inconfundível estilo narrativo, ainda que o esmero das produções varie bastante. Perdoado pela meia dúzia de pornôs constrangedores que dirigiu no final da carreira, sob o disfarce de J. A. Nunes, em "A Mulher que Inventou o Amor" fez cinema para adultos, autoral e repleto de poesia bárbara, que não oferece qualquer redenção; apenas cinismo, náusea.
9 comentários:
É com imenso prazer que, voltando a seu site, que ficou em recesso há algum tempo, reencontro o prazer da leitura de seus textos sempre lúcidos, coerentes, e desbravadores de uma cultura cinematográfica brasileira esnobada pela chamada 'intelligentzia'.
saiu ao menos em vhs alguma coisa do jean garret? é um absurdo um país como esse, onde a gente tem uma facilidade imensa de assitir filmes gringos e tem de mover montanhas, garimpar no meio de muita poeira nos estoques de video locadoras que vendem seus estoques de vhs, ou em sebos, pra pesquisar o cinema nacional, ficar só lendo o que os outros dizem sobre é frustrante, mas é o jeito... pelo menos a informação aguça os sentidos e quem sabe numa dessas aventuras em meio à poeira achamos um título desses.
Oi, André, obrigada. O recesso foi temporário, estou de volta com a corda toda :)
Ítalo, a boa notícia é que quase todos os filmes da fase aúrea do Garret saíram em vhs. Ainda dá para encontrá-los em algumas locadoras do Rio e de São Paulo. Alguns saíram pela Omni Video, outras pela F. J. Lucas e pela Jota Home Video, como é o caso de "A mulher que inventou o amor".
Obrigada, Renbauer. Os explícitos não são minha área, mas ter fotografia do Carlão é algo realmente curioso.
o filme passa hoje - 24.09.2010 (sexta-feira), da 0h30 às 02h20 - no canal brasil.
lázaro luis lucas
brasília-df
Vi no Canal Brasil!!!A Aldine arrebenta no filme,atua muito bem,indico a todos!!!
Aldine Muller foi realmente belíssima quando era morena e muito jovem, mas a morena, esplendorosa, escultural e exuberante atriz de cinema, modelo de moda, bailarina clássica e sex symbol brasileira de longos cabelos negros e lindos olhos azuis violeta Zaira Bueno é simplesmente espetacular e fascinante ao extremo sendo portanto absolutamente comparável à Elizabeth Taylor, Corinne Cléry, Olive Thomas e Dorothy Lamour em termos de beleza e semelhança físicas.
Esse é o outro filme descrito na dissertação que estou lendo.
Gostei da analogia entre o cinema popular e nossos artistas populares e esnobados pela elite cultural do País,cresci ouvindo Roberto Carlos,Odair José,Paulo Sérgio,Fernando Mendes e companhia.
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