segunda-feira, março 28, 2011

A Ostra e o Vento


Reza a lenda que Assis Chateaubriand, o todo poderoso da Tv Tupi e dos Diários Associados, era tiete de Lima Duarte. Pois bem, depois de quase meio século na televisão, dublando Manda-Chuva, sacudindo a pulseira e deixando Viúva Porcina fazer-lhe bilu, eis que Lima Duarte aparece em “A Ostra e o Vento” (1997).

Um personagem atípico, diferente das novelas e das rápidas aparições no cinema. “Os Sete Gatinhos”, de Neville D'Almeida, é provavelmente a mais marcante.

Segundo e último filme de Walter Lima Jr. nos anos 90, “A Ostra e o Vento” também redefine a trajetória do diretor. Porque não estamos falando do Walter Lima Jr. de “Menino de Engenho” (1965), nem do desbunde de “A Lira do Delírio” (1978), nem do esquecível “O Monge e a Filha do Carrasco” (1995).

Walter realiza um filme cético, fantasmagórico, sexual. Em um clima distante de “Ele, o Boto” (1987), em que mexia nas assombrações através do regionalismo. No caso, uma lenda do Norte brasileiro.

“A Ostra e o Vento” utiliza um tom escuro, fechado. O frio empresta à ilha deserta uma cara irlandesa, parente de “A Filha de Ryan”. É uma ambientação difícil de aparecer no cinema nacional, ainda mais na escola à qual Walter se ligou: o Cinema Novo – focado nas cores quentes, nos exteriores, no Brasil de Jorge de Lima, Brecht e do novomundo.

Aliás, uma das seqüências de abertura do filme lembra a panorâmica de “Terra em Transe” (1967). As águas se misturando com a terra, apresentando-se ao espectador.

José (Lima Duarte) cria sozinho uma filha (Marcela, Leandra Leal). A mãe surge em flashbacks (Débora Bloch). José trabalha em uma ilha, absolutamente perdido, sem ligação com o continente.

Marcela não sai de lá, o pai não deixa. Presa, coitada – a ostra da história. Entra numa espiral de desejo na chegada da adolescência. Começa a delirar, pensa que está sendo invadida por Saulo – o vento da história. Saulo não existe, é o nome masculino que Marcela atribui à força descomunal da natureza. Exatamente: a menina psicotizou.

Daniel (Fernando Torres), um dos marujos que a viram crescer, tenta ajudá-la. Percebe que ela possui alguma inteligência, alguma perspicácia. Alfabetiza Marcela quando criança, o que dá à garota a oportunidade de escrever diários.

É um pai substituto, bonzinho, agoniado. E que acaba engolido na tragédia de erros. Com o tempo, nem vai conseguir separar o que é certo ou errado. O que é real ou ilusório. O que é vida ou morte. O lado fantástico de “A Ostra e o Vento” embaralha a consciência.

Pepe (Castrinho), outro cupincha de José, entrega a Marcela um vestido amarelo. O mesmo que José passa a ver nas alucinações que tem com a ex-esposa. É o simbolismo do incesto reprimido. De um instinto tão pesado que o faz dominar Marcela. A esposa era prostituta e, portanto, o amor que tem pela filha guarda esse mundo incrível de misoginia.

Única mulher no meio de idosos, Marcela acaba encarando o sexo oposto no automático. Tenta brincar, se divertir, dançar, coisas do gênero. A chegada de Roberto (Floriano Peixoto) não muda a situação. Apesar de mais novo, o rapaz é louco. A garota o trata com falta de paciência e, mesmo sem gritar com todas as letras, parece dizer “tolinhos, nenhum de vocês me apetece. E nem eu sou tão solitária assim.” Afinal, ela tem o Saulo. Ou seja: não tem nada. Apenas uma figura de ficção.

O mundo de Marcela não deveria ser o da ilha. Sonha com o exterior, mas a interdição de José é algo tão poderoso que manter saúde mental nesse buchicho vira um projeto impossível. Resta imitar gaivota, restam as metáforas de liberdade – o diário, o vento.

Baseado no romance de Moacir C. Lopes, o roteiro de Walter Lima Jr. – colaboração de Flávio Tambellini, produtor – é bastante hábil em transformar a origem de literatura. Não fica o ranço tatibitati, pois “A Ostra e o Vento” é cinema. Imagens, sombras, Marcela à milanesa, a areia, o mar salgado. Pedro Farkas, na fotografia, compõe a atmosfera.

Elemento curioso, uma parte da ilha não existe, foi criada em computador. Coloca nas encostas a silhueta de um rosto feminino. Acerta belamente. O rosto de Marcela permanece preso no local, naquele ponto qualquer, e indissociável, do nada. Um vulto que nunca o abandonará.

segunda-feira, março 14, 2011

Os Trombadinhas


Vá lá que a birra entre Anselmo Duarte e o cinema brasileiro era recíproca, uma barbaridade. Mas nem por isto “Os Trombadinhas” (1978) merecia o posto de último filme do diretor. Empurrar a cruz da Palma de Ouro, sofrer os ataques díspares, trouxe para Anselmo alguns efeitos patológicos. Dentre eles, o ponto final (apressado) na trajetória de realizador com um pastel de vento que soa kitsch na melhor das hipóteses.

Pelé, o rei, havia acabado de chegar dos Estados Unidos, abandonando o New York Cosmos. Isto mil luas antes de implicar com Galvão Bueno nas transmissões dos anos 90, trocar nomes dos jogadores e pular enquanto o outro gritava o esganiçado “é tetra”.

Em “Os Trombadinhas”, acompanhamos um empresário com boas intenções (Paulo Goulart), que procura a polícia querendo saber como erradicar a delinquência juvenil. O delegado (Raul Cortez, dublado) explica que a sociedade não deve reclamar, precisa agir. Quem sabe, com as próprias mãos.

Resposta esquisita. Estamos aqui no limiar bronsoniano do “Death Wish”, mas que ao mesmo tempo guarda uma outra idéia, mais agradável e calminha. A de mobilização social, em tempos pré-Betinho. E é neste sururu mal explicado de cidadania que o empresário pede ajuda a Pelé.

O ex-jogador sai do CT do Santos, abandona os treinamentos que fazia com jovens, recorre ao culto à personalidade. Chama o problema na chincha. Ao lado do detetive (Paulo Villaça), pula, corre, faz a linha Terence Hill com voadoras dignas de Ted Boy Marino.

Como diria o próprio, existe em “Os Trombadinhas” o Pelé figura pública e o Pelé ator, entende? Sim, ator. Acalmem-se porque ainda não acabou: é também cantor e compositor dos versos de “Moleque Danado”.

A RFF Produções, provavelmente imaginando uma jogada de marketing semelhante à que havia feito com outro petardo pop, Roberto Carlos, embarca na onda. Passam batido o sucesso, a vivacidade, da trilogia “Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa” (1968), “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” (1968), “Roberto Carlos a 300 Quilômetros Por Hora” (1971). “Os Trombadinhas” não parece genuíno. As cenas de ação provocam sono. A crítica social, confusa.

Oposto ao estereótipo que colaram erradamente em Gérson, o canhota de ouro, Pelé fica naquela vibe de Papai Noel. O self made man que nos States é sinônimo de agressividade positiva, mas que no patropi precisa vestir a capa do assistencialismo. Ele surge no filme como um ente regenerador, um Shaft bonzinho sem o lado cafa, protetor das creancenhas. Assunto que, por sinal, interessava ao rei – vide o magnânimo discurso na ocasião do milésimo gol, no Maracanã.

Obcecado pelo bem-estar dos pequeninos, pelas tantas surge uma recriação de presépio no centrão nervoso de São Paulo. Momento dramático da fita, quando os pivetes de camisas estudadamente rasgadas se deitam no chão, se ajoelham e um deles começa a chorar, clamando pela mãe.

Edson, o Arantes do Nascimento, bolou a história e com a ajuda de Carlos Heitor Cony montaram o roteiro cavernoso. Tentam deixar claro que os pequenos meliantes não têm culpa. Há por trás um esquema que movimenta grana preta. A filha do empresário, aluna de sociologia (Kátia D'Ângelo) balanceia a tese – apesar de não ser o que se espera de estudantes, quanto mais de sociologia. Fala alguma coisa sobre a ruindade dos meninos e acaba salva por Pelé quando se mete em uma investigação paralela, acompanhada do arquétipo de jornalista bocó.

Há apenas um gancho cético no fim, que mal diluiu o triunfalismo da vitória. Pelé desmantelou a quadrilha de criminosos, mas o problema não acabou. Em outras palavras: descobrem que o tema é complexo.

Cony, cinéfilo inveterado, em determinada hora faz uma marcação dupla de idas e vindas entre o malfeitor Manteiga (Sérgio Hingst) e seus meninos versus Pelé e seus treinados. O bem e o mal, claro está. Mas as reuniões promovidas por Hingst lembram uma versão capenga de “M., O Vampiro de Dusseldorf”. A marginália trancada numa sala escura, decidindo o que fazer.

Aparece um arremedo do bom e velho cinema popular na figura da comparsa, que chama Manteiga de otário. Diz que o que dá dinheiro é droga, contrabando, puxar carro. Depois de uns truques de “Foxy Brown”, ela é pega no flagra, se assusta: “Você é o Pelé?” “Não, eu sou o Jô Soares, sua piranha.” E o centroavante joga a arma para o detetive com uma embaixadinha.

“Orca, a baleia assassina”, futuro clássico da TV, estava em exibição no letreiro de um cinema. Para quem se interessa no lado musical e consiga dar atenção a alguma coisa que não sejam os versos de “Moleque Danado”, cabe a nota sobre a banda Made in Brazil. Como não havia intimidade com o assunto, os personagens a tratam de “punk”, vaticínio que faria Johnny Rotten ficar naquelas bravezas de dar dó.

Se o goleiro Andrada do Vasco bateu soquinhos no chão quando viu a bola passar chispando no gol número 1.000, também quero crer que o espectador possa fazer o mesmo exercício em relação ao filme. “Os Trombadinhas” usa o porto seguro do futebol, da caridade, cria um enrosco que mais parece maldição pregada pelos Joões do Garrincha.

domingo, março 06, 2011

O Libertino


A diferença entre o reacionarismo dos anos 60 e 70 para o de hoje é que a vigilância não contaminava endemicamente todos os setores da sociedade. Havia resistência nas artes, no comportamento, além de uma franca dicotomia entre "velhos" e "novos", entre vanguarda e ultrapassado. Em 2011, corremos o risco de presenciar garotos universitários brandindo discursos substantivos de jargões pseudo-iconoclastas, porém repletos daquela ânsia adjetiva de controle social.

Até no moralismo de outrora, sob aspecto de caricatura, havia certo humor. E cínicos, que contrabandeavam sacanagem entre gritos de alerta e avisos sobre a "decadência dos bons costumes".

Leiam a picardia, proibida pela Censura: "Copacabana em Trajes Íntimos", de Diderot Freitas, um moralista que escreveu o fulgurante tratado sobre a dolce vita balneária. Ou recordem o epílogo de "Giselle", quando Victor Di Mello e Carlo Mossy, depois de construírem um monumento à perversão, lançam uma bomba atômica sob a civilização ocidental e saem felizes para beber um chopp no Fiorentina.

"O Libertino" (1973), estrelando o fenomenal Lírio Mário da Costa, vulgo Costinha, manipula justamente este universo exacerbado da moralidade, esta vontade de que a família brasileira não se perca. Claro, o comendador Emanuel, homem de reputação ilibada, dono de uma fábrica de chapéus, acabará tragado pela indecência e malandragem carioca, alugando sem querer sua nobre ex-residência para um prostíbulo.

Dirigido por Victor Lima, veterano das chanchadas, "O Libertino" não conseguiu fazer Costinha render tanto quanto Ronald Golias -- com o mesmo Lima, quatro anos antes -- em "Golias Contra o Homem das Bolinhas" (1969).

Um crítico de teatro contemporâneo diria que o humorista parece "preso", tímido no papel, o que é um paradoxo em se tratando de uma força da natureza como Costinha. Solta, apenas sua consciência. Em papel duplo, Costinha usa bermudas e camiseta florida, contraponto aos vestutos jaquetões do Comendador.

Agradecimentos "ao Deputado Afonso Nunes e à rádio patrulha do Estado da Guanabara", o sofá vermelho-bombeiro do psicanalista e uma palestra na Tv Tupi formam parte do tesouro arqueológico inerente à revisão de qualquer pornochanchada. Cinqüenta e oito anos de repressão sexual, o Comendador ainda sofre com as escapadas da neta rumo à Barra da Tijuca. Na época, um antro de perdição urbana, palco das "corridas de submarino", das ancestrais curras e de tantas mumunhas eróticas da metrópole.

A evolução de Emanuel para sócio da libertinagem incomodou bastante os censores, o filme teve enormes dificuldades para ser exibido. Perde-se em meio ao universo da comédia sexual escapista, utilizando recursos tão didáticos quanto a vinheta sonora na exibição de um derrière feminino.

Victor Lima, hoje esquecido, fabricou momentos melhores, entre eles "Bonga, o Vagabundo" (1971), parceria com outro gênio do humor, Renato Aragão. Morreria em 1981, durante a finalização de "Os Paspalhões em Pinóquio 2000", tragédia que atrasou o lançamento e custou a falência da Vidya Produções, de Carlo Mossy, que enterrara todo seu capital obtido em “Giselle” na malfadada produção infantil. acusada de ser mera cópia de "Os Trapalhões". Ciranda que já nos leva a outras tantas histórias, para serem contadas em breve.