É curioso perceber como a figura de Jean Garrett provoca verdadeiro fascínio nas pouquíssimas pessoas que conhecem seu legado cinematográfico. Falo sobre os espectadores, não-profissionais -- aqueles que vêem os filmes apenas por hobby, e para quem a menção do nome de Garrett, no meio de uma conversa, se deve mais a uma lembrança prazerosa, e menos a qualquer outra circunstância.
O primeiro filme do diretor a que assisti foi "Tchau, Amor", alugado em uma daquelas locadoras bem fornidas de filmes nacionais, lá pelos idos de 1995. Eu era uma adolescente de dezessete anos, e o filme me pareceu pesado demais, sinistro em demasia. Voltei a ele muitas vezes, cada uma delas com uma impressão diferente. Era fascinante ver uma trama em que Antônio Fagundes, o galã charmoso, se suicida estupidamente no final.
Também era fascinante o olhar meticuloso, sem tréguas, sobre a fraudulenta relação de um homem acabado na vida e uma mulher de quem ele espera tudo, mas que o manipula como um brinquedo. Se o "Anjo Azul" tivesse sido filmado ao crepúsculo paulistano do início da década de 80, seria "Tchau, Amor". Com a vantagem de Garrett azucrinar muito mais a vida de seus personagens do que Josef Von Sternberg.
Os anos passaram, e hoje me parece incompreensível que alguém não o ache uma obra-prima pop, gótica e datadíssima. É tudo o que os "neon-realistas", que vinham chegando, gostariam de ser, se tivessem maioridade para tanto. É também declaração de amor torta a uma metrópole cinza, empobrecida e soturna. Dez minutos de "Tchau, Amor" calam a boca de centenas desses filmes azul-anil da Globo, tal como um cão feroz baba para as criancinhas.
Por tudo isso, não se espantem quando um dia decretarem, léguas depois de morto, que Garrett era um gênio da linguagem popular. Enquanto isso, permanece só nosso -- esotérico e maldito -- e dele podemos "descobrir" um filme de tempos em tempos, entre os 18 que realizou até morrer, em 1996, deprimido porque não trabalhava mais.
Minha "descoberta" outro dia foi "Karina, Objeto do Prazer" (1981), realizado um ano antes de "Tchau, Amor", sob forte publicidade -- afinal, Garrett e a estonteante Angelina Muniz, estrela de ambos, começavam uma parceria quentíssima, com direito até a entrevista de página dupla na "Amiga", do Grupo Manchete. Se a "Manchete" e a "Amiga" eram o mais perto que conseguíamos chegar da "People" norte-americana, as fotos de Angelina em biquíni sumário e de Garrett com pose de Quentin Tarantino da Rua do Triumpho, já preenchem a cláusula "porque me ufano do meu país".
Glauber Rocha, no seu intrigante "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro", considerava a produção de São Paulo "um cinema sem possibilidades. (...) Esbanjam dinheiro em shows tipicamente provincianos (...)". Se conhecesse Garrett, Glauber -- que, piada à parte, escreveu o livro em outro contexto, 1963 -- morderia a língua ao se deparar com o universo de possibilidades que aqueles cineastas da Boca inventavam para si próprios, segundo a segundo. Em "Karina", por exemplo, o diretor engana que faz um drama de costumes, trafega para o exploitation-denúncia, até mergulhar de cabeça em autêntico romance GLS, com direito a personagens inusitadas, como a advogada lésbica (Rosina Malbouisson) que protege a tola Karina (Muniz) dos seus malfeitores.
O caso é tão divertido, que um dos perversos exploradores de Karina é interpretado por ninguém menos que Cláudio Cunha, diretor de "Oh! Rebuceteio", "Gosto do Pecado", e colega de Garrett na Boca. Cunha -- produtor do filme, através da "Claudio Cunha - Cinema & Arte" -- rivaliza com Angelina em carisma, perdendo, claro, nas cenas de nudez, como no retumbante strip-tease ao som lounge de "How long has this been going on".
"Karina, você desceu muito. Ver você aí mostrando o corpo, tirando a roupa diante desses tarados, me magoa" -- é assim que Lucas (Cunha) tenta convencer sua presa a acompanhá-lo. Karina fora trocada por um barco de pesca, em negociação dos seus pais com o cafajeste Rufino Xavier Monteiro (Luigi Picchi), que acaba perdendo-a numa partida de pôquer (3 valetes e 2 reis contra 2 damas e 3 ases), para o rival.
Karina resiste à nova troca, e assassina Rufino. Vai parar na cadeia, onde conhece Sheila, a defensora pública, para quem conta sua triste sina: desde a aldeia de pescadores onde nasceu até a prostituição de luxo em São Paulo. Sabendo que Lucas a ganhou no jogo e prestes a receber liberdade condicional, esconde-se na casa de Sheila, sempre narrando histórias escabrosas sobre o falecido amante.
Histórias que incluem -- tirem as crianças da sala -- a preferência do celerado por bonecas-manequim vestidas de noiva, e voyeurismo explícito, oferecendo Karina ao seu púbere sobrinho. Reparem também na cena em que tio, sobrinho e Karina assistem a atividades amorosas eqüinas, em clara alusão ao clássico "Giselle", de dois anos antes.
Há um apelo surpreendente na última meia hora, quando a protagonista e Sheila encontram a felicidade e a redenção uma nos braços da outra. Amorosamente se divertem, dançam Nina Simone de rosto colado -- comemorando os 21 anos de Karina -- e em seguida transam pela primeira vez. Lucas bem que incomoda, mas acaba tendo o mesmo fim de Rufino; e as heroínas terminam juntas, apaixonadas, no desfecho mais feminista e pró-homossexual que o cinema brasileiro já conheceu.
Se você imagina a Boca do Lixo como um purgatório de mulheres depravadas -- o título por si só, seria imediatamente adotado -- tem em "Karina" nova chance de rever posições. As personagens de Jean Garrett, quase sempre, são altivas e ativas; os homens, covardes e canalhas. Quando descobrirem que Garrett foi de fato um gênio do cinema popular, descobrirão também que era um libertário ativista da igualdade entre os sexos. Talvez nem ele mesmo soubesse disso, mas a boa intenção é o que vale.
8 comentários:
Andréa, a sua parte com certeza você está fazendo, muito bem aliás, ao divulgar a obra do Garret, ou melhor incentivar seus leitores na descoberta de seus filmes.
Eu mesmo nunca vi Karina. Vou ter que ir atrás rss
Beijos!
Pois é... o que me revolta é se fosse nos Estados Unidos, o cara teria livros e sites em sua homenagem (até porque o Garret e outros diretores da Boca como Cláudio Cunha são melhores do que 90% dos diretores americanos). Aqui, ele tem algumas páginas do livro do Nuno César Abreu, que aliás são bem interessantes. Na entrevista do Nuno com o David Cardoso: "Tinha um camarada que fazia fotonovela por aí. O nome dele era José Gomes e Silva, que é o Jean Garret. Ele era um bom fotógrafo. Um português inteligente. Analfabeto, mas inteligente demais".
E com o Mario Vaz Filho: "Tendo sido assistente de direção de Ody Fraga, David Cardoso, Cláudio Cunha, Luiz Castillini, Antonio Meliande e Cláudio Portiolli, Mario Vaz considera que seu verdadeiro aprendizado deu-se nos trabalhos em colaboração com Jean Garret: 'Em cinema o Jean Garret foi quase um irmão mais velho, embora a gente tenha saído na porrada mesmo...'"
E você tocou num ponto essencial: essas acusações de machismo contra o cinema do Garret e da Boca em geral, eu acho absurdas, porque na verdade, como você bem disse, é um cinema acima de tudo libertário e subversivo (da moral, não da ordem política), na melhor tradição tupiniquim do desbunde geral. Machista, na minha humilde opinião, é o cinema de Hollywood, dos filmes da Demi Moore e da Nicole Kidman, que fazem da mulher uma caricatura - cinema machista, puritano, hipócrita, e que trata o espectador como otário.
Em 1986 até 1988 eu assisti vários filmes dirigidos por Garret. Sempre que ia pra São Paulo à serviço, passava nos cines da boca do lixo e lá assistia tudo que podia e que tivesse a direção de Jean Garret.
Naquela época com vinte e tantos anos nunca havia visto filmes pornos com tanta qualidade, esmero, ousadia e capricho que iam desde a fotografia até o roteiro impecável.
Mesmo não sendo especialista na área, aquilo tudo me impressionou. Nunca mais tirei o nome de Jean Garret da cabeça.
Hoje você encontra "filmetes" pornos por toda parte, produzidos a qualquer tempo em qualquer parte e com vários níveis de qualidade, geralmente sem qualquer conteúdo artístico, mas nada que chegue ao nível de Garret, que saudade!!!
Garret transformava o porno em arte, o "sexo" um ato de puro prazer e emoção, provocando, insitando, fazendo buscar dentro de nós o que temos de mais escondido. Transformava as luzes e os enquadramentos em verdadeiras telas de pintura. Fico imaginando o que ele não faria hoje, se estivesse vivo, com essa tecnologia disponível.
Hoje com 48 anos ainda sinto falta de obras dessa grandiosidade e não consigo esquecer do nome Jean Garret.
Conheço pouco do cinema de Garret - não por desinteresse, mas por falta de oportunidade -, mas tive o prazer de assistir KARINA no cinema quando adolescente e, posteriormente o famoso MULHER, MULHER. Considerando a trajetória de diretores como Garret, Candeias, Mojica e outros geniais da Boca Lixo eles dão show em muitos outros (brasileiros ou não) que tiveram formação acadêmica, estrutura técnica e financeira. Cinema criativo, livre, amoral - vide o final de KARINA. Grande abraço Andréa.
Oi, Sergio, corre atrás do "Karina", ele está passando no Canal Brasil. É um filme surpreendente, em muitos sentidos. Beijos
Jorge, comentário precioso. Sobre a questão do machismo, acho que o Garret, mesmo nos roteiros do Ody Fraga, sempre fazia filmes em que deixava escapar uma ponta de feminismo libertário. Acredito que esse aspecto do cinema da Boca precisa ser melhor estudado, como tantos outros.
Anônimo, obrigada pelo comentário. Tenho apenas uma observação importante a fazer: o cinema de Jean Garret atravessou fases diferentes. "Karina", "Tchau, Amor", "A mulher que inventou o amor" e vários outros, não eram pornográficos, eram exemplos do cinema popular da época. Garret só veio a dirigir os pornôs em meados dos 80, como de resto a maioria dos diretores da Boca. Abraços!
Anônimo, a falta de infra-estrutura produz milagres, como em grande parte do cinema brasileiro. Na base de muita inventidade e know-how, foram-se criando filmes muito particulares. Grande abraço.
Por favor, onde posso encontrar o filme " A Força dos Sentidos" de Jean Garret?
"A Fêmea do Mar" de Jean Garret eu assisti num cinema do centro de Ribeirão Preto (hoje esse cinema virou bingo). Na época eu achei o filme muito bom, com belas cenas filmadas na praia. Gostei mesmo. Lembro-me que era com Aldine Muller. Se tiver oportunidade, assisto de novo. O problema é que é difícil encontrar "aqueles filmes maravilhosos" nas locadoras.
Encontrei o filme,vou ver.
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