segunda-feira, março 02, 2009

Chuvas de Verão


"A vida não é como as águas do rio que passam sem descanso, nem como o sol que vai e volta sempre. A vida é uma chuva de verão, súbita e passageira, que se evapora ao cair."

Quando Isaura (Miriam Pires) lê para Afonso (Jofre Soares) a citação acima, o espectador já está completamente entregue a "Chuvas de Verão" (1978), obra-prima do diretor Carlos Diegues. Não utilizo a palavra "obra-prima" de forma leviana: aula de roteiro, direção, fotografia, e principalmente esforço interpretativo da própria Miriam, Jofre Soares, Rodolfo Arena e Loudes Mayer, transformaram -- passados trinta anos -- "Chuvas de Verão" em um dos melhores filmes do cinema brasileiro.

Ao revê-lo, muito impressiona como a arte fílmica nacional desaprendeu de lá pra cá, brutalizando o olhar atento e individualizado sobre o povo e a vida cotidiana em um arremedo de hipocrisia coletiva, superficialidade sociológica e terror bélico. Dói concluir que, apesar do salto no tempo, aquele subúrbio onírico de "Chuvas de Verão" ainda existe em algum lugar. Os personagens idem. Extinguiu-se, apenas, a vontade de retratá-los novamente.

Isso porque em "Chuvas de Verão" ninguém morre em nome do fetiche estético, a pobreza não busca expiações e a periferia não é tratada por um olhar infantilizante. No entanto, que bela crítica social é a figura de Afonso, um homem que dedicou toda vida à repartição, para em troca ser aposentado e receber como troféu uma caneta dourada. Obediente às normas, ciente dos seus deveres, Afonso jogou a vida fora. Está na hora de substituí-lo e devolvê-lo de pijama para uma casa pobre, onde como tantos esperará sozinho e resignado a morte.

Emulando um personagem qualquer do neo-realismo italiano, o homem velho sabe que viveu para nada. A partir dele fica claro que todos em volta habitam o mesmo dilema: a pianista fracassada, Dona Helô (Loudes Mayer), mãe de um inútil de 32 anos que nunca lhe dará netos; um ex-ponta esquerda do Bangu, que quase jogou no Vasco; o palhaço Guaraná (Rodolfo Arena), amigo de Afonso, que oculta um segredo terrível; e o x9 da polícia, Juracy (Paulo César Peréio), atuante na vizinhança como uma espécie de coringa.

É Juracy, conhecido como Pereba, quem dá as boas-vindas ao funcionário público depois da aposentadoria; é ele também que ajuda a filha de Seu Afonso, Dodora (Marieta Severo), a desmascarar a traição conjugal do marido; e será ele a apontar o dedo para o velho, que escondia em casa o bandido Lacraia (Luis Antonio), namorado da empregada Lurdinha (Cristina Aché). O drama do bandido Lacraia e o crime cometido pelo Palhaço Guaraná servem de informação ao público de que o roteiro não ignorava a violência urbana, tema já presente nos noticiários da época.

A vida futura de Afonso, depois da aposentadoria, resume-se a quatro dias. É cerceada imediatamente por funcionários da prefeitura, que derrubarão sua casa -- e o bairro tradicional -- para construírem um viaduto. O viaduto, metáfora da morte, da temporalidade, mas aceito de bom grado por Seu Afonso depois que concretiza a paixão reprimida por Isaura. Em um filme sobre a mediocridade, o sexo voluntarioso e libertário entre os dois velhos que bebem cerveja e escutam Francisco Alves não é chuva de verão: são águas de março, promessa de vida em resignados corações.

Cacá Diegues passou quase três anos escrevendo o roteiro, talvez para evitar que seu olhar de morador da zona sul -- alagoano de nascimento, foi criado em Botafogo -- contaminasse o espírito suburbano. De fato, chama atenção nos curtos 87 minutos de "Chuvas de Verão" a total ausência de estereótipos, e o despertar natural de uma empatia entre narrativa e público.

Sem qualquer julgamento por parte do diretor, a câmera apenas os observa. Somente Juracy, com suas frases de efeito ( "Eu tenho a cabeça boa, o que atrapalha é os pensamentos"), potencializado pelo tom excessivo e cativante de Paulo César Pereio, força a barra em um confronto. Os outros
existem -- imperfeitos e observáveis.

A equipe passou semanas filmando em Marechal Hermes, zona norte do Rio, e em algumas outras locações da região, inclusive no Conjunto Habitacional Presidente Getúlio Vargas, Guadalupe, onde dez anos depois Cacá fez "Um Trem Para as Estrelas".

Moradia de Vina em "Um Trem Para as Estrelas" o popular Conjunto Deodoro aparece em "Chuvas de Verão" na cena da fuga de Lacraia, quando o motorista do táxi (Procópio Mariano) despeja um monólogo amargo, ilustrando em um desfile de impropérios a inutilidade da própria vida. O gordo Procópio, ator intuitivo e fabuloso, rouba a cena em entreato que deprime e exaspera.

"Chuvas de Verão" estaria no direito de ser, guardadas as ricas circunstâncias, uma experiência soturna, pesada. Pelo contrário, Cacá Diegues a conduz com tanta maestria e suavidade que terminamos o filme quase leves, felizes.

À verdade íntima de Seu Afonso, dos vizinhos, de cada um de nós, não importa a transitoriedade da vida e dos acontecimentos. Importa o que fazemos com eles, o almoço que preparamos para saciar nossa fome. Enquanto Dona Isaura após o sexo passa a usar vestidos claros,
Carpe Diem, o aforismo do romano Horácio, cairia bem como resumo poético deste imperativo.

9 comentários:

Anônimo disse...

É verdade! Não tinha percebido que a personagem Dona Isaura começa a usar roupas claras após o sexo.
Também a metáfora da morte (viaduto)é genial! Obrigado pelo post!

Adilson Marcelino disse...

Além de ser o melhor Cacá Diegues - ao lado de A Grande Cidade e Bye Bye Brasil, e ter todos esses atores fabulosos citados, ainda tem a GRANDE Gracinda Freire, que arrasa - aliás, a sequência em que ela mostra seus dotes dramáticos estará em breve na minha série prológos, aberturas e sequências favoritas do Insensatez.
Bjs

Ailton Monteiro disse...

Eu tenho um carinho especial por esse filme, Andrea. Jofre Soares lembra muito o meu avô. E o filme é uma delícia. A gente começa a ver assim sem muita intenção de ir até o final e é fisgado pela história. Emocionante!

Anônimo disse...

Linda a crítica. Fico pensando sempre nos anos 70, sem saudosisimo, mas com uma certa pena do que foi acontecendo com o modo de pensar as coisas, no cinema e na sociedade. Vc fala bem disso no fim da resenha de "Os homens que eu tive" (algo sobre um tempo perdido, sem qualquer paralelo com a sociedade atual).Lembrei muito disso ao assistir o DVD de "Malu Mulher". Eu adoro e fiquei pensando se aqueles temas interesavam ao grande público da época- aborto, homossexualidade feminina, violência contra a mulher, adoção, casamento e infidelidade -.

Anônimo disse...

Andréa, quero manifestar minha alegria e emoção o ler este post sobre "Chuvas de Verão". Estou de alma lavada. Me deu uma saudade do Jofre Soares, da Miriam Pires, do Rodolfo Arena e outros tantos. Como fazem falta! E como este tipo de cinema faz falta! Um grande abraço para você.

Anônimo disse...

Sou o anônimo acima Andréa. A emoção me fez esquecer de assinar (rsss)

Andrea Ormond disse...

Alexandre, de nada :) O seu pedido e o do Marcio motivaram um desejo antigo de escrever sobre "Chuvas de Verão".

Adilson, querido, a Gracinda Freire está ótima mesmo. A sequência no teatro é maravilhosa, outro ponto alto do filme. E o Insensatez excelente, leio todo dia :) Bjs

Oi, Ailton, quanto tempo. Quer dizer que nosso querido Jofre Soares lembra seu avô? :) A primeira vez que assisti a "Chuvas de Verão" foi assim como vc disse: meio descompromissada, e cheguei chorando ao final. Uma maravilha.

Daniel, acho que o Brasil mudou tanto (pra pior) que é dever da gente diagnosticar isso. Não é saudosismo, é constatação. E falar do cinema brasileiro vira parte desse debate cultural.

Márcio, que ótimo vc gostou :) Além da beleza do filme esse aspecto da saudade tb aperta o coração. Tantos gênios que já se foram e estão ali, vivíssimos. Um forte abraço.

Anônimo disse...

Um dos melhores filmes brasileiros, sem dúvida nenhuma. O assisti às 16h de uma terça-feira no canal Brasil e até minha mãe, que estava na sala e não é muito fã do cinema nacional, perguntou se não estaria disponível em DVD para revê-lo. Merecia uma releitura como essa, perfeita, e ser melhor tratado pela crítica especializada.

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Rafael. O "Chuvas de Verão" é um desses filmes que servem para se aumentar a percepção sobre o cinema brasileiro. Mesmo quem não gosta do rótulo, como a sua mãe, passa a ver que existem outros filmes, que fogem dos estereótipos.